Saturday, May 22, 2010

Tsunami literário


2666, o caudaloso romance póstumo de Roberto Bolaño,
faz jus à fama heroica do escritor chileno. É uma torrente
de citações, ironias – e, sobretudo, de boas histórias,
narradas com prazer contagiante


Moacyr Scliar

Basso Cannarsa /Opale
ENCICLOPÉDICO E ANÁRQUICO
Roberto Bolaño: seu livro tem assassinatos em série e um escritor
de identidade misteriosa. Mas o maior enigma ainda é o título

Morto aos 50 anos, em 2003, de uma doença hepática, o chileno Roberto Bolaño converteu-se no escritor mais badalado deste início de século. Ganhou certa aura de herói das letras: o latino-americano exilado que levou vida errante até se estabelecer na Espanha e fazer nome como ficcionista. Certos episódios de sua biografia ocupam uma zona indecisa entre a lenda e a realidade – como a história de que teria sido preso no Chile, em 1973, logo depois do golpe de estado que levou o general Augusto Pinochet ao poder (amigos de Bolaño ouvidos em uma reportagem do The New York Times acreditam que ele estava a salvo no México ao tempo do golpe). A publicação póstuma de 2666 (tradução de Eduardo Brandão; Companhia das Letras; 856 páginas; 55 reais), romance em que o autor trabalhou nos seus últimos cinco anos, e que acaba de chegar às livrarias brasileiras, provocou uma previsível comoção. Lançada há dois anos nos Estados Unidos, a obra angariou entusiastas de todos os naipes, do escritor cult Jonathan Lethem a Stephen King. A aclamação justifica-se: 2666 é uma narrativa torrencial, caudalosa, um tsunami literário. Dotado de um esplêndido domínio da técnica ficcional, Bolaño é um compulsivo contador de histórias. Narra com volúpia, com um prazer que contagia o leitor.

Que a obra é intrigante, mostra-o já o título, um número ao qual não há referência alguma no texto (em Amuleto, outro livro póstumo, uma via na Cidade do México é comparada a "um cemitério do ano 2666", mas, de novo, não se explica por que esse ano). O copioso texto está dividido em cinco partes relativamente autônomas. Por razões práticas, de mercado, Bolaño – que via em 2666 um pecúlio para os dois filhos ainda pequenos – pensava em dividir a obra em cinco volumes. Mas os herdeiros, assessorados pelo crítico Ignacio Echevarría, consultor literário da edição póstuma, decidiram respeitar a unidade de 2666, publicando-a como um livro único.

A narrativa começa seguindo a vida acadêmica de quatro críticos obcecados pela obra de um misterioso escritor alemão, Benno von Archimboldi – cuja identidade real só se esclarece na parte final. Daí progride para um enredo policial, envolvendo o assassinato de dezenas de mulheres em Santa Teresa, cidade mexicana fictícia inspirada em Ciudad Juarez, na fronteira com os Estados Unidos. É um gigantesco painel ficcional, no qual uma trama puxa a outra. Citações de eventos, livros e figuras históricas sucedem-se vertiginosamente. A certa altura, dois personagens falam sobre fobias, e nada menos do que 31 delas são comentadas. Outro trecho fala de erros ridículos cometidos por escritores, e treze desses cochilos são arrolados (como este, do francês Alphonse Daudet: "O duque apareceu seguido de seu séquito, que ia na frente"). Essa cultura enciclopédica é modulada pelo humor e pela ironia com que Bolaño tratava até mesmo a vida literária – como a referência ferina à "coorte de escritores inúteis" cooptados pelo estado no México. 2666 é uma obra desde já consagrada. Merecidamente.

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