A reinvenção do belo
Ao eleger a pintura mais importante do século XX, o crítico e historiador da arte italiano Giulio Carlo Argan não se deixou seduzir pelas musas sensuais do francês Henri Matisse nem pelo turbilhão de tintas abstratas do americano Jackson Pollock. Para Argan (1909-1992), um dos mais influentes pensadores da arte do século passado, a obra-prima que melhor define esse tempo é Guernica, pintada em 1937 pelo cubista espanhol Pablo Picasso, em protesto ao bombardeio a um povoado basco durante a Guerra Civil Espanhola. "O quadro, como uma bomba que explode, destrói a si mesmo. Guernica é o acontecimento que encerra para sempre o ciclo da cultura clássica", observa Argan em A Arte Moderna na Europa – de Hogarth a Picasso (Companhia das Letras; 776 páginas; 89 reais). O livro, que chega ao Brasil na elegante tradução de Lorenzo Mammì, cobre mais de dois séculos – dos primórdios da modernidade, em meados do século XVIII, até Picasso e seus contemporâneos. Produzidos ao longo de mais de cinquenta anos, tais escritos, que além da pintura examinam gêneros como a escultura, a arquitetura e o design, constituem boa parte da matéria-prima da mais ambiciosa obra de Argan sobre o período, o formidável Arte Moderna – do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos,editado no Brasil em 1992. Enquanto esse livro consolida as ideias de Argan sobre o tema, os quarenta ensaios independentes do novo volume traçam um mapa minucioso de suas reflexões sobre a arte e o ambiente em que a modernidade se forjou. Duas teses centrais emergem dos textos. A primeira defende que a Revolução Industrial marcou o divórcio entre a produção artística e a dos objetos comuns: antes elaborados por artesãos em oficinas, eles perderam sua individualidade quando passaram a brotar das linhas de montagem. Por outro lado, a ascensão da burguesia propiciou uma autonomia inédita para a criação artística. Na arte clássica, os cânones estéticos, com regras sobre proporção, cor, luz e perspectiva, eram ditados pela Igreja e pela nobreza – mas, na passagem para a era moderna, o artista se tornou senhor de seu projeto criativo. Essa ruptura engendrou uma verdadeira reinvenção da arte, assim como o nascimento de uma nova postura crítica, que, como observa Mammì no posfácio, "obriga o artista a pensar e a avaliar cada passo". É no inglês William Hogarth, um dublê de pintor, gravador e articulista de jornal, que Argan vislumbra o primeiro artista moderno. Em vez de pintar temas heroicos, Hogarth produzia retratos realistas e gravuras que ridicularizavam a alta burguesia inglesa, que gostava de forrar suas paredes com quadros italianos de segunda linha. Já a segunda tese de Argan é que, com o avanço da modernidade, o próprio conceito de beleza sofreria uma mudança radical. Desencantado com o progresso tecnológico a serviço da guerra, o Picasso de Guernica marca o ápice dessa convulsão. Inspirado nas cenas heroicas do pintor neoclássico Nicolas Poussin, ele compõe um quadro sombrio, à moda de uma notícia de jornal: "uma casa em chamas, as mulheres que fogem, uma mãe que grita sobre a criança morta, um cavalo moribundo". Na porção esquerda da pintura aparece um touro, encarnando a violência bestial. "Picasso percebeu que a sociedade industrial de seu tempo se vangloriava de uma potencialidade criativa totalmente fictícia e que era, ao contrário, dominada por uma sombria, profunda, incontrolável pulsão destrutiva", diz Argan. "Por isso, buscou e encontrou beleza em tudo o que o mundo descartava como feio; concebeu a deformidade como uma metamorfose libertadora de essências profundas." Segundo Argan, depois de Guernica, a arte perderia relevância. No fim da vida, com ironia, ele confessaria ainda sonhar com uma nova utopia estética. "Mas não vejo no horizonte nenhuma Bauhaus", disse, em alusão à vibrante vanguarda alemã dos anos 20 e 30. "Só vejo novas bienais", desdenhou. Para Argan, o sentido da arte encontra-se na própria história. Logo, os apuros da modernidade tardia – e, por extensão, das bienais pós-moderninhas – são sintoma de uma crise mais ampla, ligada à massificação da cultura e ao domínio da racionalidade científica. Dono de uma sólida formação marxista, Argan se elegeu prefeito de Roma nos anos 70 e, posteriormente, senador pelo Partido Comunista. Mas nem o Argan militante nem o Argan pensador da arte jamais se curvaram ao stalinismo. Aliando erudição, clareza e uma interpretação profundamente pessoal da modernidade, seu pensamento crítico segue vivo no século XXI.Em A Arte Moderna na Europa, o italiano Giulio Argan traça um panorama soberbo do ambiente em que a modernidade se forjou
Angela PimentaFotos The art archive/AFP e British/Divulgação O FIM E O COMEÇO
Guernica, de Picasso: beleza tirada do horror, em uma transformação iniciada com o autorretrato
do inglês William Hogarth (à esq.)• Trecho: A Arte Moderna na Europa – de Hogarth a Picasso
A nova poética de Hogarth se traduz no autorretrato de 1745. Nele, em cores sóbrias, o pintor monta uma engenhosa equação visual. Segundo Argan, Hogarth se pinta dentro de um quadro, numa alusão à representação artística, e ao lado de uma cortina, que simboliza a revelação da verdade. Ao lado do pintor está um cão, que representa a fidelidade. Há ainda uma pilha de livros de Shakespeare, um autêntico gênio inglês, e uma palheta de pintor, em que se lê a inscrição "a linha da Beleza". Para o crítico, Hogarth pintou aí um manifesto: quando se soma a fidelidade ao gênio, não se tem mais apenas a graça – tem-se o belo, que é um resultado bem mais elevado.Divulgação UM VERDADEIRO PENSADOR
Argan: nem a militância maculou sua agudeza crítica