Saturday, April 10, 2010

O chefe, esse eterno vilão


Georges Perec foi um dos grandes prosadores franceses. Mas, na hora
de ensinar a pedir um aumento, tudo o que ele oferece é um clichê


Carlos Graieb

Michel Clement/AFP
ELE ERA DE VÊNUS
Perec: forma inventiva que as ideias nem sempre acompanham


Se você quer pleitear um salário melhor no trabalho, A Arte e a Maneira de Abordar Seu Chefe para Pedir um Aumento (Companhia das Letras; tradução de Bernardo Carvalho; 88 páginas; 29,50 reais) não é, de jeito nenhum, o livro que vai ajudá-lo. Ele entrega o exato contrário do que o título promete: não conselhos e regras práticas, mas uma narrativa experimental, sem vírgulas nem pontos finais, cujo desfecho inevitável é a frustração do projeto. E nem seria diferente, em se tratando de uma obra do escritor Georges Perec (1936-1982). Se os autores de autoajuda são de Marte, Perec era de Vênus. Ou melhor, do planeta cujos habitantes se descrevem com as palavras do modernista Franz Kafka: "Sou feito de literatura". Muitos o consideram o prosador francês mais importante da segunda metade do século XX. Não há dúvida de que, formalmente, foi o mais inventivo.

Cada um de seus livros obedecia a restrições autoimpostas. A letra "e" está ausente do romanceLa Disparition (O Sumiço), mas é a única vogal empregada em Les Revenentes (algo como Os Retornantes). Dezenas de pequenas regras operam na obra-prima A Vida Modo de Usar – a mais célebre obriga a narrativa a saltar pelos apartamentos de um edifício como um cavalo no tabuleiro de xadrez. Para o livrinho agora lançado no Brasil, Perec partiu de um organograma simples e explorou, um a um, os percursos que levariam à sala do chefe, bem como os contratempos que impediriam que se chegasse até lá. Fez isso de maneira tão cabal que o título mais preciso para o texto seria Como Construir um Labirinto. A despeito da engenhosidade literária, contudo, a visão que Perec transmite da vida num escritório nada tem de penetrante: é um clichê.

Desde o século XIX, boa parte da literatura ocidental tem sido "antiburguesa". A condenação não é necessariamente política. Antes mesmo de ser um inimigo das classes mais baixas, o burguês é um inimigo do espírito livre. A ficção sobre funcionários, gerentes e executivos é uma fatia importante dessa literatura. Seu tema central é a mutilação da individualidade. O homem do escritório tem mente estreita, é conformado e tacanho. Nas versões mais extremas, transforma-se numa figura oca, num autômato.

Bartleby, o escriturário inventado pelo americano Herman Melville num conto de 1853, é um dos exemplos mais antigos desse homem vazio. No fim da história, sua interação com o mundo se resume a uma frase: "Prefiro não fazer". Também memoráveis são os burocratas de pesadelo criados por Kafka em romances como O Castelo. Na primeira metade do século XX, romancistas americanos como Theodore Dreiser e Sinclair Lewis procuraram descrever as salas das grandes empresas para onde se deslocava a existência de um contingente cada vez maior de pessoas. Em 1922, Lewis congelou a figura do funcionário de corporação em Babbitt, anti-herói do romance de mesmo nome. A palavra babbittry entrou para a língua inglesa, significando estreiteza e complacência. Publicado em 1961 e recentemente redescoberto (com direito a filme com Leonardo DiCaprio e Kate Winslet), o romance Foi Apenas um Sonho, de Richard Yates, traz o retrato amargo de um homem que, ao sonho de uma vida boêmia na Europa, acalentado por sua mulher, prefere o cotidiano num departamento de vendas.

É claro que a rotina numa grande empresa pode fomentar a mediocridade e levar a uma vida cinzenta. Mas as companhias modernas também são lugares de inovação e abrigam, com frequência, uma fauna pitoresca – como sabe qualquer um que trabalhe nelas. Retratar essa realidade mais nuançada tem ficado a cargo da cultura "popular" – do cinema ou da televisão. Na literatura dita "séria", tudo o que se encontra é o lugar-comum centenário. Como no livro de Georges Perec, em que as pessoas ganham nomes como sr. X e sr. Z, e o virtuosismo da forma não mascara a mesmice das ideias.


Corporações do tédio

A vida em empresas e escritórios na versão cinzenta de três escritores

Bettmann/Corbis/Latinstock
Sinclair Lewis (1885-1951)
No romance Babbitt, o escritor americano
fez do funcionário corporativo um
tipo complacente e de mente estreita


Hulton Archive/Getty Images
Herman Melville (1819-1891)
Em Bartleby, o autor americano criou
um escriturário que reaje ao mundo
com uma única frase: "Prefiro não fazer"


Hulton Archive/Getty Images
Franz Kafka (1883-1924)
Em obras como o romance inacabado
O Castelo, o autor checo retratou
a burocracia como um pesadelo

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