Saturday, April 24, 2010

Faroeste olímpico


A ocupação ilegal de terras na área vizinha à sede
da Olimpíada no Rio é um obstáculo para que
a cidade se desenvolva com os Jogos


Ronaldo França

Oscar Cabral
Retrato da desordem
Condomínios construídos em áreas usurpadas por grileiros, na Zona Oeste: ausência do poder público


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Antes de 2016, ano da Olimpíada, o Rio de Janeiro precisa dar fim a um problema que perdura há décadas, e só piora: na região em torno da futura sede olímpica, na Zona Oeste da cidade, impera a mais completa desordem urbana. Um levantamento sobre a área, com base em dados da prefeitura, revela não apenas a existência de dez favelas, que ali proliferam livremente, como também a de 191 condomínios de classe média em que 8 000 pessoas residem, a maioria sem pagar sequer IPTU. Sob o olhar complacente do poder público, boa parte dessas casas é abastecida de água e luz por meio de ligações clandestinas. Trata-se de um retrato acabado de anos a fio de domínio da região por quadrilhas de grileiros. No controle da área, que equivale a três vezes a de Copacabana e se estende por quatro bairros, eles chegam a circular armados, em plena luz do dia, sem que nenhuma autoridade coíba sua ação – cena de faroeste. À base da força, os bandidos vão se apoderando dos terrenos, que passam adiante a preços de mercado, como se o negócio fosse legal. É justamente a não mais que cinco minutos de carro dali que será erguido o maior dos quatro polos com instalações olímpicas no Rio – com quatro estádios, centro de imprensa e alojamento para os atletas. Arquiteto responsável pelos projetos de infraestrutura nos Jogos de Barcelona, em 1992, o catalão Lluís Millet lança luz sobre as consequências do caos vizinho ao polo: "Além de insegurança, a desordem representa um obstáculo para que o Rio se desenvolva com a Olimpíada".

Tradicionalmente, a região no entorno dos centros olímpicos experimenta um surto de crescimento à medida que obras de estruturas previstas para os Jogos começam a ser colocadas de pé. Com maciços investimentos em novas vias de acesso à área e mais transporte público, os terrenos situados em volta dos estádios costumam subir de preço em ritmo acelerado, desencadeando um ciclo virtuoso que traz riqueza à cidade. Diante da perspectiva de valorização imobiliária, as construtoras passam a investir nessas regiões (em geral menos desenvolvidas), o que faz aumentar ali a oferta de imóveis de bom padrão, atrai moradores de maior poder aquisitivo e leva ao florescimento do comércio – como se viu em Barcelona e, mais recentemente, em Pequim. Em Londres, sede dos Jogos de 2012, esse processo corre a pleno vapor na região de East End, bairro tomado por fábricas abandonadas que, até há pouco tempo, era sinônimo de decadência. O avanço econômico em todos esses casos é impulsionado por um ambiente de negócios pavimentado sobre a legalidade e com regras claras, pré-requisitos básicos a que o Rio de Janeiro não atende. Diz o economista André Urani: "O Rio tem um problema crônico de falta de respeito ao direito de propriedade – o que, no caso específico da Olimpíada, pode trazer enormes prejuízos."

Anna Serrano/Corbis/Latinstock
A cidade renasceu
Barcelona é o melhor exemplo de como se desenvolver
com uma Olimpíada: uma lição para o Rio de Janeiro


O cenário atual já aponta nessa direção. Para se ter uma ideia, a seis anos dos Jogos, as construtoras inglesas não só haviam começado a adquirir terrenos vizinhos ao sítio olímpico londrino como plantavam ali novos edifícios – coisa que no Rio, à mesma distância de tempo da Olimpíada, está longe de acontecer. "Nenhum empresário com um mínimo de sanidade vai se aventurar por uma terra sem estado nem lei", resume Rogério Chor, presidente da construtora CHL, uma das maiores no país. Um novo estudo do Sindicato da Habitação (Secovi) ajuda a dimensionar o problema: ele mostra que o metro quadrado nas regiões vizinhas à sede dos Jogos, que hoje vale 650 reais, poderia estar custando o dobro caso ali vigorasse a lei. Entre outras variáveis, o cálculo considera a valorização já registrada nos empreendimentos próximos dessa área, só que plantados sobre terrenos a salvo da ação dos grileiros. Toda essa vizinhança olímpica é considerada a nova fronteira de expansão do Rio, uma vez que a Zona Sul da cidade, que fica espremida entre o mar e as montanhas, está completamente saturada. Por isso, o rol de ilegalidades que reina ali representa um entrave ao crescimento da própria cidade.

Desde que o Rio foi apontado como sede para a Olimpíada de 2016, não houve nenhum avanço na região – apenas retrocessos. Com a chance de valorização dos terrenos, os grileiros trataram de acelerar as invasões. Um sinal disso é o número de processos movidos pelas próprias quadrilhas, que tentam legitimar a propriedade da terra usurpada por meio de ações judiciais (o que às vezes conseguem). Enquanto antes do anúncio dos Jogos havia apenas dezoito dessas ações, hoje tramitam 106 delas. Vítima do golpe, a psicóloga Maria Cristina Ihssen, 55 anos, que desembolsou 60 000 reais por um lote grilado, descreve assim o cenário: "Aquilo ali é uma selva no meio do Rio de Janeiro". Depois de décadas de ausência do estado nessa terra de faroeste, a iminência dos Jogos finalmente escancara o problema – e torna premente a sua solução.

Com reportagem de Ronaldo Soares

Oscar Cabral
Vítima do golpe
A psicóloga Maria Ihssen, que pagou 60 000 reais por um lote:
"Eu me vi no meio de um faroeste"

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