Saturday, April 24, 2010

Condenado, mas não arrependido


No ritmo atual de trabalho, a Argentina levaria 460 anos
para julgar todos os processos sobre crimes da ditadura


Ana Claudia Fonseca

Juan Mabromata/AFP
GUERRA SUJA
Acima, Bignone no julgamento da semana passada. Ao lado, prédio de Buenos Aires destruído
em atentado que matou a filha de um militar e dois civis, em 1978

O general da reserva Reynaldo Bignone, de 82 anos, aceitou como um soldado os 25 anos de prisão a que foi condenado, na semana passada, por crimes cometidos durante a ditadura argentina (1976-1983), que, para os militares, foi apenas a "guerra suja". Disse o velho general: "Prefiro ser condenado a ser repudiado por meus superiores e meus subalternos, que combateram ao meu lado os horrores dessa guerra contra o terrorismo". Vinte e sete anos depois de deixar o poder, o último ditador do país será punido por detenções ilegais, tortura de opositores e um dos crimes mais infames do manual dos militares: o sequestro de filhos de presas políticas. Os bebês eram entregues para adoção e as mães, assassinadas. Estima-se que mais de 500 crianças tenham sido vítimas dessa prática. A condenação de Bignone está longe de encerrar o acerto de contas dos argentinos com o seu passado. Mais de 1 476 agentes da repressão já foram acusados de crimes contra a humanidade. Apenas 74 foram condenados. No ritmo atual, seriam necessários 460 anos para julgar os processos pendentes.

O embate entre os militares argentinos e a oposição foi mesmo uma guerra, e ela foi suja, atestam as evidências da selvageria a que chegaram os militares no governo e os insurgentes comunistas empenhados em instalar sua própria ditadura no país. Estima-se em 30 000 o número de desaparecidos nas mãos da ditadura. Já os grupos terroristas, como os Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo (ERP), mataram 720 pessoas. Desde antes do golpe de 1976, os Montoneros, grupo fundado pelo ex-presidente Juan Domingo Perón (1895-1974), ocupavam fábricas, assassinavam sindicalistas e sequestravam políticos. Depois da morte de Perón, eles se esforçaram para derrubar os militares do poder, à custa de vidas civis. Em 1978, por exemplo, o grupo explodiu uma bomba no apartamento vizinho à casa do almirante Armando Lambruschini, matando sua filha de 15 anos e outros dois inocentes. "Institucionalmente frágeis, as juntas militares abandonaram qualquer vestígio de legalidade no combate às guerrilhas, transformando uma operação de repressão em verdadeira guerra de extermínio", diz o historiador Fernando Devoto, de Buenos Aires. Ao contrário do Brasil, onde a anistia fez parte de uma transição negociada para a democracia, na Argentina as leis de indulto foram aprovadas depois do fim do regime com o objetivo específico de acalmar a caserna. A primeira das anistias, posteriormente anulada pelo ex-presidente Néstor Kirchner, teve seus termos ditados pelo próprio general Bignone poucos dias depois de ser destituído. O indulto aos terroristas, instituído em 1989, caiu em 2007, para atender a um truque político. Ao contrário dos militares, eles não podem ser julgados por crimes contra a humanidade. Por isso, seus delitos já prescreveram.

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