Saturday, April 24, 2010

Entrevista: Tony Judt


"Não faço planos Para o próximo mês"


Naiara Magalhães

Saul Goldberg/Álbum de família
"Para a minha família, é tudo muito difícil, mas falamos abertamente sobre o assunto. As coisas devem ser mais pesadas para minha mulher, que tem de desempenhar sozinha todos os papéis domésticos, fazer o trabalho por dois e ainda conviver com a perspectiva de ficar viúva precocemente"

VEJA TAMBÉM

O inglês Tony Judt, 62 anos, é um produtivo e original historiador. Ele é autor de Pós-Guerra,uma ampla e minuciosa história das últimas seis décadas da Europa. Sua coletânea de ensaios Reflexões sobre um Século Esquecido, 1901-2000 será lançada no Brasil no próximo mês. Desde março de 2008, Tony Judt enfrenta o avanço de uma incapacitante doença neurodegenerativa conhecida como esclerose lateral amiotrófica. Esse distúrbio incurável e fatal ataca progressivamente os neurônios que comandam as funções motoras, matando-os. Em pouco tempo, suas vítimas perdem os movimentos do pescoço para baixo. Em estágio avançado, a doença limita também os movimentos involuntários e os pacientes precisam de ajuda de ventiladores mecânicos para respirar. É essa a situação atual de Judt. Os médicos nada podem fazer por ele. Um de seus ex-alunos, Saul Goldberg, planeja atravessar os Estados Unidos de bicicleta na esperança de que seu repto chame atenção para a necessidade de apressar as pesquisas que produzam um tratamento eficiente para a esclerose lateral amiotrófica. De seu apartamento em Nova York e com a ajuda de um assistente que transcreveu suas respostas e as enviou por e-mail, Judt concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Qual foi o primeiro sinal da doença?
Em março de 2008, comecei a sentir uma fraqueza nos dedos das mãos. Três meses depois, já não tinha mais força nos braços. Jogava beisebol e as bolas não iam a lugar algum. Em agosto, comecei a ter dificuldade para subir ladeiras. Não sentia uma falta de ar normal. Era algo muito estranho, difícil de descrever... No começo de setembro, fui ao médico suspeitando já de alguma doença neuromuscular. Mas, obviamente, não cogitava a hipótese de que fosse a pior de todas elas.

E como foi receber o diagnóstico de uma doença progressiva e fatal, para a qual não há cura?
Foi um choque. Mas logo me acalmei. Fiquei preocupado com meus filhos e minha mulher. Não pensei no meu sofrimento. A esclerose lateral amiotrófica não causa dor. No início, os doentes não conseguem sequer imaginar os sofrimentos que os esperam. Portanto, ficou mais fácil
eu me concentrar nos aspectos mentais e emocionais da doença. Os médicos queriam me dar antidepressivos, mas nunca quis tomar nenhum remédio que mudasse o meu humor – já abusei muito deles nos anos 60. Até agora estou conseguindo me manter longe desse tipo de medicação.

Como a doença evoluiu?
Em outubro de 2008, eu ainda conseguia dirigir. Em novembro, já não podia. Em dezembro, tinha muita dificuldade para mover minhas mãos e braços. Um dia, entre fevereiro e março de 2009, eu caminhava para o banheiro quando despenquei no chão como se fosse o tronco de uma árvore. Minha perna esquerda se paralisou. Desde então, nunca mais consegui caminhar sem ajuda. Um mês depois, estava preso a uma cadeira de rodas. Ao mesmo tempo, passei a usar um aparelho de ventilação artificial para poder dormir mais tranquilamente. Em seis semanas, dependia integralmente da máquina. Tem sido assim desde então. A falência muscular foi muito rápida, como se eu tivesse perdido todos os músculos de uma hora para outra.

Sua mente se mantém intacta. Qual a sensação de acompanhar a deterioração física de seu corpo?
Antes de ficar doente, eu estava em forma e tinha bastante energia para uma pessoa de 60 anos. Eu me cuidava porque tenho uma esposa treze anos mais jovem e dois filhos adolescentes. Agora, eu tenho de conviver com o total colapso físico, e isso é difícil. Perdi 11 dos meus 81 quilos, por causa da atrofia dos músculos. Só consigo mexer um dedo e movimentar minha cabeça. Sinto muita falta das minhas pernas. Eu era uma pessoa independente, que gostava de ficar a sós. Sem conseguir andar, não posso mais ir a nenhum lugar por conta própria. Hoje já não penso em movimento, penso em permanência. Em decorrência de todas essas perdas, não me olho mais no espelho. Já não penso mais em mim como um ser físico. Nos três meses que se seguiram ao diagnóstico, fiquei em estado de choque e não fiz absolutamente nada. Foi então que eu comecei a dar uma série de entrevistas para um livro sobre minhas teorias a respeito do século XX e descobri que eu podia falar e pensar perfeitamente. As entrevistas tornaram-se uma distração maravilhosa. Ocorreu-me que eu poderia ditar meus textos, já que estava incapacitado para escrevê-los. Encontrei aí a energia e a vontade para voltar a trabalhar. Minha vida se tornou tolerável. A doença não degenera a mente como degenera o corpo. O melhor de tudo é que eu estou realmente interessado no que estou fazendo. Descobri que minha memória é ainda melhor do que eu pensava. Posso conceber um livro ou um ensaio inteiro na minha cabeça durante a noite.

Não cansa estar em atividade intelectual 100% do tempo?
Sim. Mas com essa doença a pessoa fica cansada só por existir. O esforço para mover o dedinho ou falar é comparável ao despendido por uma pessoa saudável em uma hora de exercícios. Portanto, eu pareço não fazer nada e, ainda assim, fico exausto.

O senhor já aceitou o fato de que a morte está próxima?
Sim. Mas a sensação será diferente quando a morte estiver realmente próxima. No estágio atual, ela é uma realidade intelectual com evidências físicas, mas não me afeta emocionalmente na maior parte do tempo. Eu não tenho medo da morte. Afinal, não estarei aqui para sofrer as conse-quências da minha própria ausência. Estou mais preocupado com o impacto dela sobre a minha família.

O que mudou com a proximidade da morte?
Sempre fui uma pessoa sarcástica, que gosta de comandar, detesta ineficiência e quer as coisas feitas com rapidez e precisão. Ainda sou assim. Ao mesmo tempo, detesto a pretensão, o politicamente correto e a falsa polidez. Essa é uma doença infernal e não há nenhum mérito em fingir que ela tem aspectos bons. Talvez eu me sinta mais livre para ser um pouco mais autoindulgente e escrever ensaios sarcásticos ou simplesmente engraçados. Essa é a liberdade de não ter de me preocupar mais com minha vida profissional. Outra coisa nova é que eu aprendi a conviver com uma das piores doenças da face da Terra.

De que forma a doença afetou sua vida profissional?
Eu viajava o tempo todo. Só assim me sentia confiante para escrever. Um bom historiador tem de ter um quê de jornalista – e os bons jornalistas têm grande mobilidade. Eu voava para a Europa e outros lugares do mundo pelo menos quatro vezes por ano. E lá ficava viajando de ônibus e de trem, andava pelas cidades e via as coisas acontecendo. Sempre tive muitos amigos nesses lugares e costumava encontrá-los para conversar. Frequentemente dava conferências, uma ótima oportunidade para encontrar e conhecer mais gente, especialmente estudantes. Ao escrever sobre um país, uma pessoa ou um problema, meu primeiro instinto sempre foi ir até eles. Mas eu tenho sorte porque também sou um teórico de política e posso continuar esse trabalho na minha atual condição.

Como sua mulher e seus filhos lidam com a sua doença?
Para a minha família, é tudo muito difícil, mas falamos abertamente sobre o assunto. As coisas devem ser mais pesadas para minha mulher, que tem de desempenhar sozinha todos os papéis domésticos, fazer o trabalho por dois e ainda conviver com a perspectiva de ficar viúva precocemente. Creio que no fundo estamos lidando bem com a situação. Eu fiquei perplexo com o número de casos de divórcio provocados pela esclerose. Realmente é muito pesado para quem cuida, principalmente pela ausência de cura, o que causa uma sensação de grande frustração.

A experiência que o senhor teve no passado com um câncer se assemelha de alguma maneira à experiência de agora?
Em 2002, tive um sarcoma no braço esquerdo. Mas o câncer, por si só, não ameaçava minha vida. Além disso, câncer é frequentemente curável: responde a cirurgias, radiação e quimioterapia. Os oncologistas são proativos e otimistas. Já os neurologistas, que tratam a esclerose lateral amiotrófica, são pessimistas e não podem fazer muita coisa. Tirando a dor (o câncer dói; a esclerose, não), preferiria ter um câncer.

O senhor já pediu aos seus médicos um prognóstico a respeito de quanto tempo eles lhe dão de vida?
Sim, mas eles não servem para nada! A informação que eu tive foi que a expectativa média de vida para uma pessoa com a minha doença é de um a três anos a partir do diagnóstico. Eles, no entanto, admitem que cada paciente tem sua própria trajetória... Eu não faço a menor ideia de quanto tempo ainda vou viver. Como a minha doença progrediu muito rápido no começo, os médicos acreditavam que eu já estaria morto a esta hora. Eu e minha família decidimos viver sem fazer conjecturas sobre o próximo mês. E assim tem funcionado.

Gina Levay/Redux
Rapidez
Em um ano, Judt (em foto de 2006) perdeu os movimentos
do corpo e a capacidade de respirar sem aparelhos

O senhor cogita valer-se da eutanásia?
Minha vida não precisa de ajuda para me deixar. Sofro de uma doença incurável, progressiva e fatal. No meu caso, a questão que se coloca é até que ponto deixá-la seguir seu curso. Existem implicações legais e pode ser muito arriscado para alguém ajudar uma pessoa a morrer. Mas, no caso de doenças como a minha, se o paciente deixa instruções a esse respeito, acho que não deveria haver controvérsia alguma. Se dois ou mais médicos atestam que um paciente está próximo do fim, por que um profissional de saúde, a esposa ou o filho não poderiam ser autorizados a ajudá-lo a morrer?

Qual é o seu limite para continuar vivendo?
Isso muda a cada dia. Dois anos atrás, eu diria que viver do jeito que vivo hoje seria insuportável. Agora, penso que o limite vai chegar quando eu não puder mais falar e não tiver meios de comunicar meus sentimentos e minhas ideias.

Blog Archive