Friday, February 12, 2010

Visconti restaurado no Teatro Municipal carioca

O resgate de uma relíquia

Quase destruídas, as pinturas de Visconti no Teatro Municipal
do Rio passaram por um arriscado processo de restauro.
Dele, ressurgiu uma obra-prima da arte decorativa no Brasil


Marcelo Bortoloti

Fotos Eduardo Martino/Documentography

Antes
Vítima de constantes infiltrações, a tela que fica no foyer do teatro estava destruída
e quase ninguém acreditava que fosse possível recuperá-la

Depois
As cores vibrantes, os contrastes e as figuras de marinheiros e sereias voltaram
a aparecer na tela de Visconti


As pinturas que enfeitam as paredes e o teto do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, de autoria do ítalo-brasileiro Eliseu Visconti (1866-1944), compõem a mais importante obra da arte decorativa no Brasil. O conjunto de seis peças impressionistas sobressai pelas dimensões (com 640 metros quadrados, ocupa área semelhante à dos afrescos de Michelangelo no teto da Capela Sistina), pela vivacidade dos contrastes e ainda pela temática – figuras de anjos ladeados por mulheres nuas, que, àquela época, destoavam do padrão mais tradicional da pintura decorativa no Brasil. Malcuidado e exposto por duas décadas à água da chuva, que se infiltrava pelo telhado sem que ninguém fizesse nada e foi gradativamente apagando a tinta, esse tesouro estava fadado a desaparecer. Até que, oito meses atrás, iniciou-se uma operação – literalmente – de guerra para tentar salvar a obra. Para se ter uma ideia, a restauração exigiu o emprego de uma técnica difundida depois da II Guerra Mundial com o objetivo de recuperar pinturas decorativas abrigadas em edifícios bombardeados. O risco, nesses casos, é grande e o resultado, incerto. Por isso, foi com profundo alívio que um grupo de 35 especialistas viu ressurgir, com suas cores luminosas e pinceladas vibrantes, a obra-prima de Visconti. Na semana que vem, as telas serão finalmente fixadas às paredes do foyer, de onde foram retiradas.

É sempre difícil, quando não impossível, recuperar uma obra com esse porte e tão malconservada. As telas de Visconti ainda tinham uma peculiaridade que complicava a tarefa: elas estavam coladas às paredes. O momento de risco máximo foi justamente aquele em que elas precisaram ser removidas de lá. Para isso, os técnicos contratados pelo teatro fixaram sobre as telas um papel finíssimo, além de uma camada de tecido. Essa base serviu de proteção à obra no instante em que ela foi retirada de onde estava, junto a um pedaço da própria parede, com a ajuda de espátulas. O desafio seguinte foi despregar as telas de Visconti, cada qual com 2 milímetros de espessura, tanto do papel como dos destroços da parede – trabalho feito com instrumentos de pedreiro, mas que exige a delicadeza de um artesão. "O medo de rasgar a obra nessas horas é praticamente paralisante", define o restaurador Edson Motta Junior, que participou do trabalho. Ao longo de todo o processo, as telas ficaram presas, por vácuo, a um suporte que, curiosamente, se compõe de material idêntico ao dos cascos de avião. Elas permanecerão agora sobre essa estrutura, que, por sua rigidez, as mantém 100% esticadas, permitindo a visualização perfeita dos relevos originais.

O estado de conservação das telas de Visconti, com as cores já desbotadas e partes em que a pintura havia até desaparecido, chegou a desanimar o grupo à frente do restauro. Relata a diretora do teatro, Carla Camurati: "Quando vimos tudo semidestruído no chão, praticamente perdemos as esperanças". Aos poucos, o otimismo foi recuperado pelo grupo, à medida que as cores de Visconti voltavam à tela com incrível fidelidade em relação ao original. Uma apurada análise química da tinta que restou permitiu chegar às tonalidades exatas. Nessa reconstituição, impressiona saber que três dos painéis – entre eles a pintura central do foyer, batizada de A Música – abrigam na casa de milhões de minúsculos pontos, a exemplo da técnica pontilhista, que teve o francês Georges Seurat (1859-1891) como o seu maior expoente. As micropinceladas de Visconti também foram inteiramente recuperadas.

A obra que agora vem à luz é a mais preciosa no acervo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, prédio inspirado na Ópera de Paris que, de dois anos para cá, passa pela maior reforma desde sua inauguração, em 1909. Há um consenso de que, entre todas as intervenções ali, nenhuma foi tão difícil quanto recuperar as telas de Visconti. Elas foram feitas sob medida para o teatro, entre os anos de 1906 e 1915, em Paris, onde o artista morou. Escoltados pelo próprio pintor, os painéis chegaram a bordo de navios, em duas viagens. Logo foram colados nas paredes e no teto do teatro, por meio de uma técnica conhecida como marouflage, cujo efeito é semelhante ao de um afresco. A obra de Visconti sempre foi uma atração à parte no Teatro Municipal do Rio – até chegar à penúria de meses atrás. Felizmente, esse é um patrimônio que o Brasil terá de volta.

Blog Archive