Saturday, February 06, 2010

Por que os intelectuais bajulam Fidel

Cem anos de adulação

Os bastidores da amizade entre Fidel Castro e Gabriel García Márquez ajudam a
explicar de onde vem o fascínio de intelectuais pelo autoritarismo de esquerda


Diogo Schelp

Fotos Jose Gotia/AP e Bettmann/Corbis/Latinstock
QUEM COCHICHA O RABO ESPICHA
García Márquez e Fidel trocam confidências em Havana, em 2002. Em seu romance sobre Simón Bolívar(à dir.), o escritor homenageou o ditador cubano


A história da amizade entre o colombiano Gabriel García Márquez, de 82 anos, e o ditador cubano Fidel Castro, de 83, é uma fábula cujo fio condutor é o interesse mútuo, apesar de Castro dizer que o escritor é o seu melhor - e provavelmente único - companheiro do peito, e de García Márquez já ter afirmado que, se o barbudo morrer, não suportará visitar Cuba sem tê-lo por perto. Por trás das constantes trocas de mensagens afetuosas, Fidel aproveita-se do prestígio literário do colombiano para fazer propaganda do regime autoritário que personifica e tentar preservar sua imagem no exterior. García Márquez vale-se da intimidade com o ditador para exercer sua obsessão pelo poder e desfrutar vantagens materiais. Alguns aspectos dessa amizade são descritos na biografia Gabriel García Márquez - Uma Vida, do inglês Gerald Martin, que a Ediouro lança em março no Brasil. Como o próprio Martin é amigo do biografado e dele obteve a autorização para escrever o livro, não se poderia esperar mais do que uma narrativa acrítica e branda sobre o vínculo entre o escritor e o ditador. Uma versão mais honesta dessa relação é apresentada pelo espanhol Ángel Esteban e pela belga Stéphanie Panichelli no livroGabriel García Márquez e Fidel Castro - Os Segredos de uma Amizade, recém-lançado nos Estados Unidos e publicado em Portugal pela editora Ambar. Trata-se de uma obra instigante não só pela riqueza de informações, todas sustentadas por inúmeras entrevistas e documentos, mas por introduzir uma discussão pertinente sobre o que leva intelectuais estrangeiros a apoiar um regime sanguinário como o cubano, que já matou mais de 7 000 pessoas e costuma reprimir qualquer opinião divergente com cadeia ou paredón. Esteban e Panichelli, ambos professores universitários de literatura e letras, buscam a resposta a essa questão com o inconformismo de fãs que descobriram a face nefasta de seu ídolo. "Considero García Márquez um dos maiores escritores do século XX, mas, como pessoa pública, ele precisava ser desmascarado", diz Esteban.

Mais de cinco décadas de repressão política e fracasso econômico, impostos aos cubanos pelo regime comunista, não foram o suficiente para privar Fidel do apoio de escritores e artistas esquerdistas, entre os quais brasileiros como o cantor Chico Buarque e o arquiteto Oscar Niemeyer. "Há uma tradição entre parte dos intelectuais latino-americanos de falar em nome dos outros, de se considerar a voz dos que não falam. É uma visão autoritária que, como não poderia deixar de ser, produz fascínio pela tirania de esquerda", afirma o historiador Marco Antonio Villa. Mas ninguém bajula ditadores com tanta convicção quanto García Márquez. Ele passou mais de quinze anos tentando se aproximar do ditador. Para isso, escreveu artigos chapas-brancas, fez propaganda do regime cubano em entrevistas e empenhou-se para não se envolver em polêmicas que pudessem desagradar a Fidel. Em 1971, quando os principais escritores de sua geração protestaram contra a prisão do poeta cubano Heberto Padilla, García Márquez foi o único que ficou em silêncio. A partir de 1975, ele começou a visitar Cuba com frequência, em busca de amizades que pudessem lhe dar acesso ao círculo de poder em Havana. Fidel, no entanto, só começou a se interessar pelo autor de Cem Anos de Solidão em 1977. Ele fez de García Márquez um embaixador informal de sua imagem no exterior e, em troca, deu ao escritor uma plataforma política para estabelecer contato com outros governantes esquerdistas, como François Mitterrand, da França. García Márquez usou essas amizades para fazer campanha pelo Prêmio Nobel de Literatura, conquistado por ele em 1982.

O prêmio inaugurou uma nova fase na amizade entre o escritor e o ditador. No mesmo ano, Fidel ordenou que fossem dados a García Márquez uma mansão em um bairro nobre de Havana e um automóvel Mercedes-Benz para que ele pudesse desfrutar melhor suas temporadas em Cuba, onde o escritor, posteriormente, ajudou a fundar uma escola de cinema. García Márquez também se acostumou a submeter os seus manuscritos ao ditador, para que ele fizesse observações ao estilo "censura vip". Esteban e Panichelli apresentam boas provas desse fato, incluindo o depoimento de três amigos de García Márquez. Segundo eles, o romance O General em Seu Labirinto, de 1989, é uma homenagem a Fidel. No livro, o colombiano descreve Simón Bolívar (1783-1830), herói da independência dos países andinos, exatamente com as qualidades que ele costuma atribuir, em entrevistas, a Fidel. Quando cobrado por sua conivência com a violação de direitos humanos em Cuba, García Márquez explica que usa sua influência para convencer Fidel a libertar oposicionistas e a deixá-los fugir para o exílio. O escritor deve achar que, assim, está comprando sua própria absolvição na história por desfrutar as benesses de um tirano. Em 1975, ele disse em uma entrevista: "O que eu posso fazer com minha fama? Vou gastá-la em política". Até o momento, foi um péssimo investimento

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