Saturday, February 06, 2010

Rio: o mau exemplo da prefeitura

Falta botar ordem na casa

Com centenas de camelôs e sem habite-se, o prédio da prefeitura
do Rio de Janeiro é um símbolo da desordem reinante na cidade


Ronaldo Soares

Fotos Oscar Cabral
Bandalha oficial
No espigão que abriga a administração municipal do Rio (no alto, à esq.), os funcionários se apoderaram das copas para montar restaurantes próprios (à esq.) e o pátio do prédio se transformou em abrigo para gatos abandonados (à dir.): um mau exemplo na cidade-sede da Olimpíada


Até a Olimpíada de 2016, a prefeitura do Rio de Janeiro tem o desafio de empreender na cidade uma verdadeira faxina nas mais diversas áreas - mas é preciso que comece a operação limpeza pela própria casa, e já. O edifício que abriga a administração municipal, um espigão de quinze andares por onde circulam todos os dias 10 000 pessoas, transformou-se no símbolo-mor da desordem reinante no restante da cidade. Sob os olhos complacentes das autoridades e dos guardas municipais que ali estão para, supostamente, zelar pelo cumprimento da lei, dão expediente no prédio, todos os dias, nada menos que 200 vendedores ambulantes. Eles circulam livremente, oferecendo suas mercadorias de sala em sala, sem discriminar o escalão nem se preocupar com o silêncio. Vende-se de tudo um pouco na prefeitura: canga de praia, bijuteria, queijo da fazenda, sanduíche e, pasme-se, até DVD pirata. "Montei tipo um delivery", conta Neli Machado, 54 anos, há vinte vivendo da venda de biscoitos no prédio. É apenas uma de várias aberrações. Para se ter uma ideia, o próprio edifício está à margem da lei: ele não possui sequer o habite-se, certidão que atesta se uma construção se encontra em boas condições para ser ocupada. Ninguém nunca se preocupou com isso até que, coisa de seis meses atrás, o noticiário trouxe o fato à luz. Depois disso, o prefeito Eduardo Paes prometeu regularizar a situação.

Não é de hoje que se vê flagrante afronta à lei no prédio que, desde 1982, serve de sede à administração municipal do Rio de Janeiro. Mais conhecido como Piranhão, por estar encravado num terreno que antes sediava uma zona de prostituição, no centro da cidade, o edifício, que já abrigou sete prefeitos, sempre registrou certa balbúrdia. Mas não há dúvida: com o passar do tempo, houve uma escalada da baderna sem que isso tenha causado nenhuma estranheza. Diz a historiadora Marly Motta, da Fundação Getulio Vargas: "Há outros prédios da administração pública brasileira em que se vê gênero semelhante de irregularidades, mas no Rio há um exagero delas - fruto de um maior grau de tolerância coletivo".

É nesse cenário que um grupo de funcionários chegou ao ponto de apoderar-se das pequenas cozinhas distribuídas pelo prédio para transformá-las num negócio próprio, tocado em pleno horário de expediente. O que deveria ser o lugar para o preparo do cafezinho, como é praxe nas repartições públicas, virou uma rede de quatro restaurantes, cada qual de um dono. O mais requisitado se chama Copa Lanches, com cardápio afixado na porta e até serviço de entrega no edifício. Pela ausência de exaustores, o cheiro de carne assada, frango frito e outras iguarias fica impregnado nos corredores. Não há nenhum constrangimento quanto à irregularidade do negócio. "O restaurante não atrapalha ninguém. Ao contrário: aqui, todo mundo adora minha comida", orgulha-se Sônia da Silva, 50 anos, à frente da cantina montada no 10º andar, vizinha à Secretaria de Urbanismo.

Os governantes que passaram pelo prédio permitiram que o caos se instaurasse e até contribuíram para institucionalizar a desordem. É do punho do ex-prefeito Cesar Maia, por exemplo, um decreto de 2004 que legalizou a estada de um bando de gatos abandonados que já vivia no edifício. Dali para a frente, ficou estabelecido que a própria prefeitura se encarregaria dos cuidados básicos e da alimentação dos felinos. Foi o sinal verde para que proliferasse no imóvel uma população que hoje beira cinquenta representantes da espécie. Quem quer desfazer-se de um gato na cidade já sabe: o melhor lugar para isso é o prédio da administração pública. Além do mau cheiro que deixam por toda parte, os bichanos são responsáveis pelas frequentes panes nos elevadores. Toda vez que um se infiltra na sala de máquinas, elas precisam ser desligadas, até o resgate do felino. Vítima de uma situação dessas no mês passado, o prefeito Eduardo Paes precisou esperar dez minutos para subir ao gabinete. Ele reconhece: "A situação do prédio é uma vergonha mesmo". Paes já prometeu lançar um edital para substituir os restaurantes informais por negócios legalizados e coibir a presença dos camelôs. Até então, o choque de ordem - pacote lançado pela prefeitura para combater práticas ilegais, como comércio informal e habitações em situação irregular - passou longe do prédio oficial. Situação inaceitável para uma cidade que, nos próximos seis anos, pretende se transformar em exemplo de civilidade.

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