Os muito maus companheiros
Se alguma coisa dá muito errado, o que Chávez faz? Copia. E importa
milhares de fidelitos para tirar a Venezuela da crise. Mas eles estão
lá para doutrinar e espionar. Ou, no caso dos normais, fugir
Duda Teixeira
Reuters |
CHOQUE ELÉTRICO Chávez com o cubano Valdés, chamado para resolver os apagões: para ele, a internet é "um potro selvagem que pode e deve ser dominado" |
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• Exclusivo: Populismo na América Latina |
Imagine você, leitor, chegar ao aeroporto para uma viagem ao exterior, descobrir que seu passaporte foi invalidado por ordens superiores e receber intimação para comparecer a uma repartição do governo federal. Lá, numa sala hermética, ser interrogado durante três longas horas por dois agentes estrangeiros que fazem perguntas como: "Sua família é de origem burguesa ou proletária?" ou "Por que há tantos carimbos no seu passaporte?". Odiosas em todos os sentidos, as cenas ocorreram em 2008 com o professor universitário aposentado Heinz Sonntag, alemão naturalizado venezuelano, de 69 anos. Os agentes eram, pasmem, cubanos. Feitos com quinze dias de intervalo, os interrogatórios seguiram roteiros absolutamente idênticos. "Eles explicaram que faziam isso de propósito, porque queriam encontrar contradições nos meus dois depoimentos", disse a VEJA o sociólogo, que, como se pode deduzir, participa de duas organizações civis de oposição ao regime de Hugo Chávez.
Jornalistas, diretores de veículos de comunicação, economistas e outros professores universitários foram submetidos ao mesmo constrangimento de ser colocados contra a parede por estrangeiros em seu próprio país. Os relatos são uma demonstração assustadora do tamanho e do alcance da intervenção cubana na Venezuela. A face mais amistosa dos 64 000 cubanos atualmente no país é a dos médicos convocados para atender a população carente, a mais sinistra é a dos agentes de inteligência infiltrados nos órgãos de segurança e a mais risível é a do ministro da Informática e das Comunicações, Ramiro Valdés, chamado para "resolver" a crise energética provocada pela incompetência chavista. Lotados em cartórios e nos órgãos públicos que emitem documentos de identidade e passaportes, agentes cubanos atrapalham a vida de oposicionistas como Sonntag e o funcionamento de empresas. Uma rotineira ata de assembleia de sócios, que antes era registrada em um dia, agora pode demorar um ano. "O objetivo dos cubanos é sempre o de prejudicar a empresa privada, qualquer que seja ela", disse a VEJA o diretor da Câmara de Comércio de Caracas, Víctor Maldonado.
Mesmo os venezuelanos que ainda apoiam Chávez repelem veementemente a cubanização. Oito em cada dez habitantes do país declaram não querer que seu país se transforme em uma nova Cuba. Cogita-se até que a renovada e maléfica influência cubana tenha provocado a saída de dois ministros de Chávez nos últimos trinta dias. Ramón Carrizales, da Defesa, teria pedido as contas por essa razão. O uso da ilha castrista como plataforma de doutrinação das Forças Armadas é crescente. Militares que querem ascender às patentes mais altas devem se candidatar a uma promoção batizada de "Fidel Castro", e há até uma "tropa revolucionária cubano-venezuelana", apoiada pelo Exército e pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (as Farc). O ministro da Saúde, Carlos Rotondaro, também teria sido demitido após reclamar da proliferação de intrusos em sua pasta.
No caso dos cubanos não ligados ao aparato policial-repressivo existe um complicador, pois demandam a presença de agentes controladores para convencê-los das vantagens que estarão perdendo se não retornarem às delícias da ilha privada dos irmãos Castro. Trabalhinho difícil. Entre os médicos e enfermeiros mobilizados para o programa Barrio Adentro, que atende moradores de favelas, 65% fugiram para outros países(veja um depoimento no quadro). Cerca de 1 000 escaparam pelas fronteiras terrestres com o Brasil e com a Colômbia. Para os Estados Unidos, onde muitos possuem familiares, já foram mais de 500. Para os que conseguem driblar os vigilantes do G2, o serviço secreto cubano, e compram passagens aéreas, o maior obstáculo é passar pelos funcionários da imigração no aeroporto, quase todos cubanos também. O consentimento normalmente se dá com o pagamento de suborno entre 300 dólares e 2 000 dólares aos conterrâneos.
A instalação do camarada Ramiro Valdés no comando da comissão criada para resolver a crise energética na Venezuela seria cômica se não fosse trágica. Valdés tem mais familiaridade com a eletricidade usada com fins policialescos do que com aquela que, cada vez menos, fornece luz e energia aos venezuelanos. Em Cuba, foi chefe do G2, ordenou fuzilamentos e criou a nefanda lei de "periculosidade social", que permite ao regime prender qualquer um sem provas, sob a acusação de que poderia cometer um crime no futuro. Mais recentemente, mostrou serviço na censura à internet, considerada por ele "um dos mecanismos de extermínio global" e um "potro selvagem que pode e deve ser dominado".
Archivo Latino |
OI, OI, TCHAU, TCHAU Chávez recebe médicos cubanos em Caracas: 65% já fugiram |
Ao buscar um atalho para resolver problemas que ele próprio criou, Chávez importou tudo o que deu errado na ilha e criou uma categoria nova, a do no know-how. Cuba importa 80% dos alimentos que consome. Mesmo assim, cubanos foram chamados para coordenar os projetos de reforma agrária em terras expropriadas pelo Exército venezuelano. Cuba tem apagões de doze horas e fábricas fecham as portas para economizar energia. Não obstante, Valdés recebeu a absurdamente patética função de "czar do apagão". Cuba não tem sistemas funcionais de transporte. Não tem carro, não tem ônibus, não tem metrô e não tem gasolina. Não importa. Técnicos cubanos estão prestando assessoria para as obras do metrô de Valencia, cidade com 1,3 milhão de habitantes. Chávez também importou algumas coisas que funcionam? Sim, mas que era melhor nunca terem funcionado, como o aparato repressivo e a censura. O presidente só confia nos cubanos para o seu esquema de segurança. Tem guarda-costas cubanos e viaja em um avião da Cubana de Aviación. O que Chávez mais admira, evidentemente, é o sistema castrista de eternização no poder, uma tragédia facilitada pelo maior de todos os muros, o formado pelas águas do Atlântico. Na Venezuela, não vai ser tão fácil.
Relato de um fugitivoConvocado para trabalhar na Venezuela em 2006, no ano seguinte o médico cubano M. conseguiu fugir para os Estados Unidos. Para proteger a família ainda em Cuba, sua identidade foi preservada. Seu depoimento: "Era um domingo de tarde quando recebi um telefonema me convocando com urgência para integrar uma missão social na Venezuela. Como são raríssimas as chances de deixar a ilha, decidi ir. Em Havana, fiquei em uma escola com outros trinta médicos, num regime de internação forçada destinado a detectar qualquer indício de plano de fuga. Três semanas depois, embarcamos em um aeroporto militar e chegamos a Caracas. Na primeira noite na cidade onde ficaríamos, dormimos todos no chão de um hospital, com a porta trancada a cadeado. Depois nos transferiram para uma casa em uma favela muito perigosa. Quando chegou a hora de trabalhar, fui morar no 3º andar de um hospital com catorze pessoas e um banheiro. Com o tempo, conseguimos juntar algum dinheiro. Fazíamos maravilhas com o pouco que tínhamos. Afinal, nós, cubanos, somos especialistas em racionar comida. Nunca falei em fuga com os colegas. Pelas minhas contas, 40% do pessoal que vivia comigo era do G2, o serviço secreto cubano. Certa vez, numa conversa de bar, um venezuelano me falou que a embaixada americana poderia me ajudar. Uma semana depois, eu avisei à sentinela que teria um encontro amoroso, corri até o terminal e peguei o primeiro ônibus para a capital. Fui de táxi até a embaixada. O cônsul me atendeu e prometeu telefonar quando os papéis estivessem prontos. Passaram-se dias até que ligasse. No aeroporto de Caracas, fizeram muitas perguntas para me intimidar, mas consegui. Amigos meus precisaram pagar suborno. Outros fraquejaram e foram presos. Hoje, nos Estados Unidos, dedico meu tempo a trazer para a liberdade minhas duas filhas." |