Saturday, February 27, 2010

O alvo? Cadê o alvo?


Um ano depois da posse, Obama continua obcecado em reformar
o sistema de saúde, mas os estudiosos estão mostrando
que o que parece problema talvez seja a solução


André Petry, de Nova York

Saul Loeb/AFP
SHOW, MAS SÓ SHOW
Obama, na reunião de seis horas com aliados e adversários e transmissão ao vivo pela TV:
terminou como começou


O grande assunto da política americana – a reforma do sistema de saúde – produziu muitas mistificações. Já se disse que as regras parlamentares no Congresso estão ultrapassadas, que o governo americano perdeu o seu louvável vigor executivo, que a política americana caiu vítima de um sectarismo intransponível, que a própria democracia carece de uma reforma. Tudo porque, mais de um ano depois da posse do presidente Barack Obama, sua principal bandeira de campanha está magistralmente encalacrada no Congresso. Na semana passada, Obama finalmente apresentou uma proposta formal de reforma e, três dias depois, reuniu-se numa cúpula com democratas e republicanos para discutir o tema. A cúpula foi uma extraordinária demonstração de apreço pela troca de ideias – onde mais um presidente se senta durante seis horas para discutir com aliados e adversários com transmissão ao vivo pela TV? Mesmo assim, o encontro terminou como começou: democratas de um lado, republicanos de outro.

O assunto é palpitante e, apesar de ser tratado como tema da agenda doméstica, tem implicações mundiais. Com um sistema que movimenta 2,5 trilhões de dólares e reúne mais de 1 300 empresas privadas que dão assistência a mais de 200 milhões de pessoas, os Estados Unidos praticam a medicina mais avançada do planeta. São a maior e a melhor fonte de inovações na área da saúde. Se essa usina de pesquisas e descobertas entrar em colapso, os americanos não serão os únicos prejudicados. À primeira vista, a reforma da saúde tem alvo claro: como o sistema é caríssimo e exclui 47 milhões de cidadãos, é preciso cortar custos e ampliar o acesso. A discórdia começa no próprio alvo. Entre os 47 milhões de desassistidos, não há pobres nem idosos (ambos têm direito à cobertura oferecida pelo governo) e há jovens abastados, que não têm plano de saúde porque não querem. Cabe ao governo lhes dar assistência?

O outro aspecto é mais complexo: o sistema de saúde americano precisa cortar custos? "A discussão pública está mal colocada", afirma o professor Robert Fogel, que estuda a economia da saúde. "É preciso distinguir se o custo é alto porque os prestadores do serviço de saúde são ineficientes ou se o custo é alto porque a qualidade é cada vez melhor. O preocupante é quando o sistema é caro e ruim, mas esse não é o caso do sistema americano", completa Fogel (veja entrevista na página 82). O gasto com saúde – nos EUA ou no Brasil – aumentou tremendamente ao longo do século XX, mas não é preciso ser especialista para saber que somos mais saudáveis hoje do que há 100 anos. Em 1929, os americanos gastavam 3% do PIB com saúde e a expectativa de vida não chegava a 60 anos. Hoje, gastam 16% do PIB e vivem quase 80 anos. Prevê-se que, em três décadas, o gasto ficará perto de 30% do PIB, e há estudos projetando a expectativa de vida para a faixa dos 90 anos.

Esses números sugerem que a vida vem se prolongando, mas os gastos estão ficando exorbitantes. A boa notícia é que não é bem assim. Os americanos gastam mais com saúde porque têm mais dinheiro sobrando. A velha e boa produtividade explica o milagre. Há um século, uma família americana gastava mais de 70% de sua renda em comida, roupa e habitação. Como a produtividade nessas três áreas aumentou barbaramente, hoje essa mesma família compromete menos de 15% de sua renda para comer, morar e vestir-se. O dinheiro que sobra vai para onde? Os estudos de comportamento financeiro mostram que, quando há renda extra, o destino preferencial é, em primeiríssimo lugar, lazer. Depois, saúde. Em seguida, educação. É por isso que os americanos de hoje, comparados aos do passado, se divertem tanto, e gastam tanto em saúde e em educação.

A previsão mais perturbadora é que, com os crescentes avanços tecnológicos, a saúde ficará insuportavelmente cara. Mas, para entender seu custo real, é preciso ajustá-lo à qualidade. Se uma tecnologia melhora um pouco a saúde do paciente e lhe prolonga um pouco a vida, e faz isso a preços exorbitantes, o custo-benefício não é dos melhores. Mas, de novo, há uma boa notícia. Os professores David Cutler (Harvard) e Mark McClellan (Stanford) colheram dados de crianças com peso baixo ao nascer e pacientes com ataque cardíaco, depressão, cataratas ou câncer de mama – campos em que houve notórios avanços científicos. Só no câncer de mama a relação custo-benefício das novas tecnologias manteve-se estável. Ou seja: nem os benefícios superaram os custos, nem o inverso – o que já é bom. Nos outros quatro casos, os benefícios foram imensos. Nos cardíacos, para cada dólar gasto houve ganho de 7 dólares.

Isso mostra que, ao contrário do que diz o senso comum, as novas tecnologias da saúde não elevam os custos da medicina. Elas os reduzem. "Isso tem muitas implicações para as políticas públicas de saúde", dizem os autores da pesquisa. Uma delas está no centro do debate sobre a reforma da saúde: é necessário reduzir custos? Em seis horas de discussão ao vivo pela TV, democratas e republicanos concordaram em regular melhor as empresas de saúde e discordaram sobre quem deve fazê-lo. Concordaram que o governo deve ajudar pequenas empresas a oferecer plano de saúde aos funcionários e discordaram sobre o leque mínimo de benefícios. Nessa gangorra, nem triscaram a questão do custo e suas adjacências tecnológicas. Talvez isso explique por que a reforma não sai do papel.

Saúde é a locomotiva

Saul Loeb/AFP
GASTO COM GOSTO
Fogel, da Universidade de Chicago: os americanos
gostam de gastar em saúde


O economista Robert Fogel, 84 anos, ganhador de um Nobel e professor da Universidade de Chicago, é um dos pensadores mais originais sobre economia da saúde.

O avanço da medicina nas últimas décadas foi tão fenomenal que pode estar perto de se desacelerar?
Acredito que não. Na economia do século XXI, a saúde terá uma importância semelhante à da eletricidade no século passado. Vai puxar a economia. A assistência à saúde, com seus avanços na biotecnologia, é um setor de ponta e servirá de locomotiva para o avanço de outras áreas, como educação, comunicação, finanças e até construção.

Como a saúde lida com a vida e a economia lida com a frieza dos números, é difícil tratar da saúde como assunto econômico?
Compare com a indústria automobilística. Se ela estivesse vendendo o dobro de automóveis, todo mundo ia festejar, pois é um sinal de que a economia está forte e vibrante. Mas, quando se vende mais serviço de saúde, as pessoas reclamam, dizem que está errado, que não terão como pagar.

Os americanos estão gastando cada vez mais em saúde. Isso é ruim?
Pelo contrário. Isso é bom. Primeiro, porque os preços em saúde são dirigidos pela demanda, que, por sua vez, decorre do nível de renda. Segundo, porque as pessoas querem gastar em saúde. Queremos o melhor tratamento de saúde possível. É um erro dizer que gastamos mais com saúde porque estamos mais doentes. Gastamos mais com saúde justamente porque queremos permanecer mais saudáveis por mais tempo

Blog Archive