Saturday, January 16, 2010

Vício Frenético, de Werner Herzog

Cinema

A compulsão faz o homem

E faz principalmente o cineasta, como demonstra
Werner Herzog no inclassificável Vício Frenético


Isabela Boscov

Divulgação
MUITO ESTRANHO
Cage, como o autodestrutivo policial de Nova Orleans: uma cidade
em que o sentido de moral desapareceu

Na Nova Orleans destruída pelo furacão Katrina, uma cobra desliza pela água escura e oleosa que inundou um xadrez, no qual um único preso foi esquecido. Dois policiais debatem se vale a pena salvá-lo. Um deles, interpretado por Val Kilmer, acha que não. O outro, interpretado por Nicolas Cage, concorda. Mas mesmo assim sacrifica as cuecas importadas pulando na água suja para abrir a cela. O sargento chamado Terence McDonagh sacrifica também as costas, que fere na queda. Ganha por isso uma promoção a tenente e uma dependência febril de analgésicos – logo estendida a qualquer substância química em que consiga pôr as mãos. "Todas as drogas que eu consumo têm receita médica. Bem, exceto pela heroína", diz Terence com o humor sardônico que dá o tom a Vício Frenético (Bad Lieutenant – Port of Call: New Orleans, Estados Unidos, 2009), de Werner Herzog, desde sexta-feira em cartaz no país.

Terence é um personagem maníaco, como todos os outros criados pelo diretor alemão ou retratados em seus vários documentários (e como o próprio Nicolas Cage, que aqui dá vazão aos seus ímpetos dramáticos mais estranhos). Enquanto percorre a toda a velocidade sua espiral autodestrutiva, Terence vai achacar, corromper, mentir e brutalizar. Vai também investigar com seriedade um crime medonho, proteger inocentes, tratar com compaixão sua madrasta alcoólatra. Mas nem as coisas boas nem as ruins vêm acompanhadas de algum sinal de valor: todas são manifestação das obsessões de Terence. E obsessão é o que sempre interessou a Herzog. Ela pode ser insana, como a ideia do protagonista de Fitzcarraldo de içar um navio montanha acima. Pode ser lógica, como no caso de O Sobrevivente, sobre um homem ferreamente determinado a escapar de um campo de prisioneiros. Mas em que medida terceiros e espectadores aprovam ou desaprovam essas ideias fixas é irrelevante. O crucial, para o diretor, é que esses personagens não têm como fugir às suas compulsões. Mais: tendo Herzog desdobrado o tema sob tantos prismas no decorrer de sua carreira (tão obsessivamente, cabe dizer), pode-se concluir que em muitos sentidos ele acredita que a compulsão faz o homem – mesmo quando acaba com ele. Responder a ela seria uma espécie de percurso obrigatório na jornada existencial de cada um.

Vício Frenético tem em comum com o supervalorizado filme de 1992 do diretor americano Abel Ferrara o nome e as linhas gerais do enredo. Mas não é refilmagem, releitura, continuação e nem sequer filme de gênero. É uma criação integralmente original: um filme que se empenha em ser vulgar, exagerado e estridente para assim extinguir noções convencionais de culpa e redenção – e não é acaso que se passe em uma cidade em que todo sentido de moral foi pulverizado com a passagem do Katrina e a indiferença grotesca para com a sorte de suas vítimas. Mais até do que nos velhos "filmes-cabeça" de Herzog, o saldo é desconcertante e inclassificável. Enfim, ao diretor, assim como ao protagonista, pouco interessa estar certo ou errado, ser bom ou ruim: o que lhe importa, e o que ele faz, é seguir até as últimas consequências algo de verdadeiro – seus impulsos.


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