Saturday, January 16, 2010

A morte da protetora de Anne Frank

Livros

Uma heroína da memória

Miep Gies, que morreu na semana passada, aos 100 anos,
não conseguiu salvar Anne Frank dos nazistas. Mas conservou
o diário da menina, uma das obras mais marcantes do século XX

Base/Anne Frank House/Getty Images
A GUARDIÃ E A ESCRITORA
Miep Gies e Anne Frank (à dir.): no esconderijo fornecido pela protetora, a menina só podia escrever – e revisar

Não sou uma heroína", escreveu a holandesa (nascida na Áustria) Miep Gies em seu livro de memórias, Anne Frank Relembrada, publicado em 1987. Mas ela mereceu, sim, ser chamada de heroína. Entre 1942 e 1944, durante a ocupação nazista na Holanda, Miep, seu marido e alguns amigos ajudaram a ocultar oito judeus no anexo do escritório onde ela trabalhava, em Amsterdã. Uma denúncia anônima acabou levando a Gestapo até o esconderijo. Sete dos oito protegidos de Miep morreram em campos de concentração. Miep conservou a memória dos que se foram: zelou pelos escritos que a mais jovem do grupo deixara no anexo. Anne Frank, a menina, morreu em Bergen-Belsen, com 15 anos. Seu diário, editado depois da guerra pelo pai, Otto, o único sobrevivente da família, tornou-se o mais conhecido testemunho direto do terror nazista, vendendo mais de 20 milhões de exemplares no mundo todo. Miep morreu na segunda-feira 11, em Hoorn, Holanda, depois de uma breve enfermidade. Tinha 100 anos e podia se orgulhar de ter contribuído para que o século XX conhecesse uma obra-prima.

O encanto que o diário de Anne Frank tem levado a milhões de leitores de sucessivas gerações costuma ser explicado pela espontaneidade da autora, uma pré-adolescente ingênua brutalmente acossada pelo ódio racial. Essa é uma percepção enganosa. "O livro de Anne Frank é uma obra de arte construída conscientemente", afirma a escritora americana Francine Prose em Anne Frank, um belo exame literário do diário e sua repercussão, lançado em 2009. Escritora obsessiva, Anne corrigia, emendava, cortava seus textos sucessivas vezes. Essas várias revisões até hoje atrapalham os editores. Em 1995, foi lançada uma edição "definitiva" do diário, incorporando trechos que haviam ficado de fora da versão produzida por Otto Frank – mas alguns estudiosos afirmam que a própria menina desejava excluir essas páginas da versão final. Em qualquer edição, porém, podem-se apreciar uma prosa direta e clara, uma observação aguda dos companheiros de esconderijo e um profundo poder de introspecção. Miep Gies arriscou sua segurança para salvar Anne Frank, a menina. Conseguiu salvar Anne Frank, a escritora.

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