Saturday, January 16, 2010

Amor sem Escalas, com George Clooney


De porto em porto

No triste, engraçado e excepcional Amor sem Escalas, George Clooney
é um homem sem amarras que começa a ansiar por algo de estável


Isabela Boscov

TUDO NO AR
Clooney, como o especialista em demissões, ensina sua pupila, interpretada por Anna Kendrick, a fazer uma mala: lições úteis para o trabalho, mas inúteis para a vida


Em uma sequência fabulosamente bem montada, Amor sem Escalas (Up in the Air, Estados Unidos, 2009) comprime em uns poucos minutos o ritual que seu protagonista, Ryan Bingham, executa mais de 320 dias ao ano: roupas e pertences são milimetricamente acomodados em uma mala pequena; Ryan aperta o botão da alça, puxa-a para cima, roda com a mala para fora de mais um quarto de hotel. Aperta o botão, recolhe a alça, põe a mala no carro, vai até o aeroporto. Aperta o botão, puxa a alça, check-in. Aperta o botão, recolhe a alça, tira os sapatos, passa pelo raio X. Aperta o botão, puxa a alça, roda até o portão, embarca - tudo em cadências ritmadas, como se cada etapa fosse um compasso de uma música. Mas Ryan, interpretado por George Clooney com nuances que ele vem tornando mais sugestivas a cada filme, não é um autômato. É um homem que se compraz nesse ritual, orgulha-se da precisão a que nele chegou e, principalmente, ama o que ele significa: mais um dia no ar, rumo a mais uma cidade que pouco significa para quem não more nela - Tulsa, Des Moines, Wichita, Kansas City -, para mais um dia de um trabalho que ele desempenha com maestria, em todo o seu trágico exotismo.

É preciso recorrer a um neologismo para descrever a atividade de Ryan. No filme que estreia no país na próxima sexta-feira, ele é um "demissor". Trabalha para uma empresa que é contratada por outras empresas quando há corte de pessoal a fazer. Ryan viaja, senta-se em um escritório no qual nunca esteve e demite pessoas que nunca viu antes. No seu entender, ele desempenha uma espécie de serviço social. Com suavidade e ciência, impele essas pessoas a interpretar esse momento catastrófico como a chance de recomeçar ou de se tornarem o que sempre estiveram destinadas a ser. Ryan sabe que poucas vezes o enunciado vai se provar verdadeiro. Mas, como um agente funerário, compreende que o consolo de um rito de passagem é essencial. É um homem tão compassivo, paradoxalmente, que sua própria impessoalidade é um gesto de piedade. Nunca diga ao demitido quanto é desagradável demiti-lo, ensina a Natalie, sua pupila: o seu incômodo nada significa diante do sofrimento de perder o sustento e o respeito, e ninguém deveria ser solicitado a pensar nas emoções alheias em um instante como esse.

O FLANCO ABERTO
Vera e Clooney saem do ar condicionado e de sua redoma profissional: para Reitman (no detalhe), quando duas pessoas baixam a guarda uma para a outra, a indefinição passa a ser a única certeza


Dirigido por Jason Reitman, que despontou com Obrigado por Fumar e Juno e agora confirma que nada houve de acidental em seu sucesso, Amor sem Escalas é um parêntese no progressivamente infantilizado e pasteurizado cinema americano. Não um parêntese no sentido em que Bastardos Inglórios, Sangue Negro ou mesmo Avatar o são - filmes concebidos a partir de visões desafiadoramente pessoais por cineastas que têm uma ambição feroz de serem únicos. Amor sem Escalas toma personagens frequentes na iconografia americana, aquelas pessoas que compensam a paralisia emocional com a eficiência profissional. Cuida, então, de expô-las no que têm de mais tenro e terno. Cada demissão efetuada por Ryan é uma pequena tragédia distinta: não importa qual o estereótipo apresentado, se o da executiva carreirista ou o do funcionário tarefeiro - Reitman descobre, sob cada um deles, um íntimo repleto e palpitante. O que se tem aqui, portanto, é uma visão ampliada das agonias pessoais deflagradas pela depressão econômica. E, como só em um roteiro superlativo como este seria possível (Reitman é coautor do script, a partir do romance homônimo de Walter Kirn publicado aqui pela Record), cada pequena história revela algum novo detalhe sobre Ryan, sobre Alex (Vera Farmiga), a mulher madura com quem ele inicia um relacionamento que se pretende apenas casual e sexual, e sobre Natalie (Anna Kendrick), a novata que tem o plano de tornar as demissões mais econômicas - e impessoais -, realizando-as via internet.

Vale dizer que o título nacional nada significa; o original, Up in the Air, além de mencionar o modo de vida itinerante do protagonista, quer dizer que as coisas estão "no ar", indefinidas. Diz respeito, também, a jogar tudo para o alto e agir de maneira que se julgue livre ou inconsequente. Ryan, porém, é a autocontenção em pessoa; é um homem que cortou suas amarras, uma a uma, com deliberação, e defende em palestras motivacionais que qualquer posse material ou vínculo pessoal é peso extra a carregar. Por que ele se tornou assim o roteiro, felizmente, não explica. Este é um filme sobre como alguém vive o presente; e, nele, Ryan subitamente ganha essas duas âncoras, uma figura conjugal e uma figura filial, e contra suas próprias convicções começa a gostar de arrastá-las para lá e para cá. Ambas as atrizes, Anna Kendrick e Vera Farmiga, são sensacionais. Mas é com Vera que Clooney tem a oportunidade de oferecer um espetáculo magnífico: o de um homem se apaixonando e, pouco a pouco, com surpresa e com mais alegria do que imaginaria, percebendo estar apaixonado. Mas, em que pesem seu humor vivaz e seus momentos tão jubilosos, Amor sem Escalas é de uma tristeza profunda. Uma vez rompido seu insulamento, Ryan estará desprotegido tanto da possibilidade de ser feliz quanto, claro, da de ser infeliz - porque a vida tem momentos-chave e poucos daqueles que se deixou passar podem ser recuperados; porque algumas decisões são incanceláveis; e porque, quando duas pessoas baixam a guarda uma para a outra, a indefinição é a única certeza. Tudo, de fato, fica no ar. Menos o belíssimo filme de Reitman, que tem a cabeça nas nuvens, mas os pés plantados bem firmes no chão

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