Friday, January 01, 2010

Brasiliana Itaú, um poderoso acervo

O Brasil do banqueiro

Olavo Setubal, do Itaú, reuniu um dos mais preciosos acervos
de documentos sobre a história do país. A coleção é prova de
que dinheiro e interesse cultural podem compor uma mistura poderosa


Marcelo Bortoloti

Fotos Divulgação
VISÕES ORIGINAIS
O primeiro panorama de São Paulo, pelo francês Pallière (acima), e a Baía de Guanabara retratada pelo príncipe Adalberto da Prússia: a arte dos viajantes


Nos últimos anos de vida, o banqueiro Olavo Setubal, morto em 2008, passava boa parte do tempo numa biblioteca próxima ao seu escritório, na sede do banco Itaú, em São Paulo. Era um espaço reservado a poucas pessoas, escolhidas a dedo por Setubal para desfrutar com ele uma impressionante coleção de livros, obras de arte e documentos raros. Esse precioso conjunto, de 5 000 peças, foi reunido num período extremamente curto – dez anos – e tornou-se uma das mais importantes brasilianas (ou seja, um acervo abrangente de imagens e documentos sobre a história brasileira) do país. Embora ao longo da vida Setubal tenha adquirido inúmeras obras de arte que hoje compõem o acervo do Itaú, essa coleção mostra o momento em que seu interesse se expandiu para livros, manuscritos e objetos de importância mais histórica que artística, como mapas e registros da administração pública. A partir deste ano, o acervo estará disponível ao público. Em março, será exposto na Pinacoteca de São Paulo. Depois disso, passará a ocupar um andar inteiro no instituto Itaú Cultural e estará acessível também pela internet. O primeiro movimento para tornar público o acervo foi o lançamento de um catálogo completo, publicado pela editora Capivara.

O conjunto amealhado por Setubal abrange o período que vai do século XVI até o século passado, e foi adquirido de forma mais intuitiva do que sistemática. Somente nos últimos anos de vida ele se deu conta de que havia montado uma coleção com tal fôlego. Há pouco mais de cinco anos, o banqueiro pediu a orientação de seu ex-genro, o colecionador Ruy Souza e Silva, e de Pedro Corrêa do Lago, que é o organizador do catálogo, para suprir as lacunas que, preenchidas, permitiriam dar o título de brasiliana ao conjunto. Com esse objetivo ele adquiriu, por exemplo, seu primeiro quadro a óleo de Rugendas, datado de 1850, que veio se somar a uma coleção que já contava com quadros dos principais artistas viajantes que passaram pelo país, de Frans Post e Albert Eckhout, no século XVII, até Debret, no século XIX. Algumas obras de arte do acervo são extremamente valiosas. Uma delas é a primeira panorâmica da cidade de São Paulo, pintada num quadro a óleo de 1821. A tela, do pintor francês Arnaud Julien Pallière, foi encomendada pelo príncipe regente dom Pedro I e mostra a então pequena cidade à beira do Rio Tamanduateí, por onde se veem as igrejas da Sé, do Carmo e de Santa Teresa. Comprada em 2001 por 850 000 dólares, tem valor estimado atualmente em 6 milhões de dólares.

Mas não é o valor individual das peças o que se destaca na coleção, e sim a sua impressionante abrangência. Isso fica patente no conjunto de 1 500 livros, quase todos ricamente ilustrados, que entre os séculos XVI e XIX mostraram para o público europeu diferentes Brasis – inicialmente, uma terra selvagem de canibais, mais tarde um local que chamava atenção pela variedade das espécies de fauna e flora e finalmente um país que começava a se urbanizar, onde portugueses e escravos compunham uma sociedade exótica. Sua apreciação em conjunto é um dos pontos altos da coleção, que permite um passeio no tempo. Ainda no segmento de livros, a brasiliana avança até o século XX, com as primeiras edições dos principais escritores da literatura brasileira, muitas delas autografadas, outras ilustradas por artistas como Portinari e Di Cavalcanti. Há ainda manuscritos, incluindo uma extensa coleção de cartas e documentos assinados por figuras ilustres, a começar por dom Manuel, o Venturoso, num decreto autografado de 1498, passando por Maurício de Nassau, dona Maria I, a Louca, um raríssimo documento assinado por Tiradentes, até cartas mais recentes de artistas como Machado de Assis, Villa-Lobos e João Cabral de Melo Neto. E, finalmente, um conjunto cartográfico cujo primeiro mapa data de 1522, e só faz referência ao Brasil por uma menção ao canibalismo praticado na região.

Parte da brasiliana de Olavo Setubal foi formada com a aquisição de outras coleções, o que ajudou o banqueiro a reunir uma variedade tão grande de peças em tão pouco tempo. Por exemplo, um conjunto com 250 documentos relativos à escravidão, incluindo certidões de nascimento, aluguel, venda e seguro de escravos, foi adquirido de um médico que percorria fazendas antigas no interior de Minas Gerais atrás desse tipo de registro. O banqueiro era famoso por tomar decisões rápidas e não regatear no preço. "Doutor Olavo tinha três critérios de aquisição. Precisava gostar da obra, achar seu valor justo e ter onde colocá-la", diz Ruy Souza e Silva. O legado que deixou evidencia que dinheiro e interesse cultural podem ser, de fato, uma mistura poderosa.

RARIDADES
Aquarela do naturalista alemão Von Martius, com paisagem amazônica (à dir.), e ilustração de Di Cavalcanti: facetas menos conhecidas do trabalho de ambos

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