Avatar, o filme de 2 bilhões de dólares
Na segunda-feira, quando as salas de cinema estiverem terminando de computar a frequência do fim de semana, a única dúvida do estúdio Fox será: com que margem Avatar, de James Cameron, ultrapassou a marca dos 2 bilhões de dólares na bilheteria mundial? Que será o primeiro filme da história a fazê-lo, é certo. Na quinta-feira, havia fechado as contas com o total de 1,9 bilhão, em preparação para seu sétimo fim de semana consecutivo como o filme mais popular em cartaz. Um único outro título conseguira até hoje reunir recordes tão impressionantes: Titanic, também de Cameron, que foi a primeira produção a cruzar a marca do 1 bilhão de renda e, durante doze anos, deteve o posto de campeão absoluto, com a soma final de 1,843 bilhão. Essa, Avatar ultrapassou na segunda-feira 25, com a mesma facilidade com que o corredor jamaicano Usain Bolt rompe as linhas de chegada e deixa para trás, na poeira, adversários que até seu advento tinham todo o direito de se considerar quase que super-homens. Como Bolt, Avatar é um velocista de uma categoria até aqui inédita. Levou dezessete dias para alcançar um recorde que, a Titanic, tomara três meses. Em mais 22 dias, acumulou a diferença que o separava do campeão. Com discrição supersticiosa, os executivos da Fox não especulam sobre o número final com que Avatar vai subir ao pódio. Alguns observadores arriscam a cifra de 2,5 bilhões de dólares. Mas, em vista do ritmo com que ele atrai pagantes aos cinemas - até aqui, amealha a média diária de 45 milhões -, essa pode ser uma estimativa conservadora. O que faz um filme ir tão completamente ao encontro das expectativas do público é um segredo cuja chave Hollywood pagaria qualquer preço para possuir. Às vezes ela cai em suas mãos e resulta em ícones culturais (e contábeis), como ...E o Vento Levou, E.T. - O Extraterrestre e a série Star Wars. Mas quase sempre ela se perde de novo: nada é mais difícil do que replicar um sucesso aproveitando-se de sua fórmula. Até porque "fórmula" é uma palavra que se deve usar com reservas. Chumbo não pode ser transformado em ouro, como queriam os alquimistas e desejam os imitadores contumazes que podem ser encontrados em qualquer estúdio de cinema. O que os grandes fenômenos de Hollywood, entre eles os filmes de James Cameron, mostram é que só ouro vira mais ouro. Não apenas no sentido do dinheiro farto para produzir um enredo com todo requinte técnico disponível. As substâncias preciosas que deflagram essa reação química entre público e filme são de outra ordem: criatividade, talento no narrar de uma história e a habilidade para captar os impulsos que afetam uma sociedade em certo instante e traduzi-los na forma de imagens, personagens e tramas. Esse é um dom raro. Ele está para a criação artística assim como está para a química o unobtainium (palavra que é brincadeira corrente entre aficionados da ciência e significa "o que não pode ser obtido"), o minério singular que os seres humanos garimpam na lua Pandora, cenário de Avatar. Cameron iniciou sua carreira com uma produção barata, que imediatamente se integrou à cultura pop graças a esse dom - O Exterminador do Futuro, uma cristalização das angústias então ainda vagas provocadas pela escalada tecnológica e bélica que marcou a década de 80. Desdobrou o tema com estrondo comparável em Aliens - O Resgate e em O Exterminador do Futuro 2. Tomou um tombo com O Segredo do Abismo, um filme instigante, mas que poucos apreciaram. E depurou esse seu talento até um ponto que parecia ser insuperável com Titanic, uma explosão de grandiosidade e romantismo numa Hollywood que andava, em fins dos anos 90, apequenada e exaurida. Em número de ingressos vendidos, Avatar ainda está longe de Titanic - não só o preço real do bilhete aumentou desde então, como os ingressos para as sessões 3D são mais caros, e é deles que vem a maior parte da arrecadação de Avatar. Mas o unobtainium da sintonia com a plateia está lá, cintilando nos recordes que ele vem quebrando. Avatar tem um componente primordial de interesse para o público contemporâneo: a inovação tecnológica, expressa aqui em um salto substancial na aplicação do formato 3D, que o diretor usa não como truque, mas como recurso de imersão no mundo de Pandora. Essa experiência sensorial sem paralelo responde por muito do apelo do filme. Mas, se ele resiste ao esgotamento do aspecto novidadeiro e se mantém firme em sua ascensão, é porque o que Avatar tem a dizer ressoa junto ao espectador. O filme tem uma mensagem ecológica que, claro, está em voga. Prega-a com simplismo irritante: o povo nativo de Pandora, os Na’vi, pertence à natureza e é parte dela (inclusive, liga-se a ela por meio das estranhas fibras de suas tranças, o que rende um punhado de cenas meio embaraçosas). Isso, diz o filme, é certo. Errado é violar essa relação telúrica com propósitos comerciais, como faz a corporação industrial-militar que extrai minério em Pandora. É inegável, contudo, que Cameron faz a plateia - inclusive a parte dela que se irrita com seu ecossentimentalismo - amar Pandora e desejar estar lá, como seu protagonista, o ex-marine paraplégico Jake Sully (Sam Worthington), que, quando ocupa seu avatar, pode correr livre por cenários de beleza estupefaciente. O diretor, um narrador habilíssimo, leva quem vê essas paisagens a sentir a embriaguez de Jake. Ele é, em muitos sentidos, o avatar do espectador em outro mundo. Cameron é um aficionado da ciência que detesta ser pego em erros. Em Avatar, cercou-se de especialistas em áreas tão diversas quanto a linguística, a botânica e a astrofísica para que o mundo de Pandora, ainda que fantasioso, fosse hipoteticamente possível. Muitos dos aspectos do roteiro que podem parecer invenção pura têm na verdade sólidos fundamentos científicos (veja as explicações nos quadros que acompanham esta reportagem). Não por acaso, o diretor é simpático aos personagens que têm ligação com a ciência, como a botânica interpretada por Sigourney Weaver. Mas Cameron é um entusiasta também da tecnologia, e não só da que serve ao cinema. Já foi consultor da Nasa em projetos de exploração de Marte. Pode-se deduzir, portanto, que não é contrário à presença humana em mundos intocados. Alguns deles, os das profundezas dos oceanos, já visitou várias vezes. Em Avatar, entretanto, tudo o que seja associado à tecnologia é carregado de negatividade (um traço que está no cerne também de O Exterminador do Futuro eTitanic). Existe aí um paradoxo. Cameron, que vai a extremos em tudo o que faz, é um apaixonado pela natureza e um obcecado pelo aprimoramento tecnológico. É, assim, também ele um avatar de qualquer um de nós, desejosos de todo avanço e ao mesmo tempo nostálgicos de uma natureza que, nessa corrida, tratamos de massacrar. O cineasta, enfim, é um homem cindido por uma contradição - mas ela é a contradição essencial do seu tempo. Por isso tantas pessoas sentem que ele lhes fala de perto, e pagam para ver o som, a fúria e a beleza que ele sabe criar. O povo nativo de Pandora é o ponto em que Avatar mais 2. Altura de 3 metros 3. Cauda 4. Corpo delgado e musculoso 5. Pele azul Fontes: Rafael Campos Duarte, biólogo do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo; Guilherme Melo Serrano, mestre em genética da Unicamp; Sérgio Bueno, biólogo e professor do departamento de zoologia da Universidade de São Paulo; Renato Sabbatini, neurocientista da UnicampO fenômeno Avatar
Não é só por ser inovadora e linda que a ficção científica do diretor
James Cameron está prestes a romper a barreira dos 2 bilhões
de dólares. É também porque fala às contradições de seu tempo
Isabela Boscov• Quadro: Um voo vertiginoso • Trailer do filme: Avatar • Crítica: Avatar, a caixa de Pandora ANATOMIA DE UMA NA’VI
toma liberdades com a ciência - mas nem tantas assim
1. Seios e umbigo
Fazem sentido?
Não. Os Na’vi não são mamíferos placentários. Ou seja, não são gestados no útero, recebendo nutrientes e hormônios por meio de um cordão umbilical ligado à placenta. Assim, não deveriam ter umbigo, e as mulheres não necessitariam ter glândulas mamárias para alimentar seus filhos. Mas ambos expressam a forma humana. "Se estivessem ausentes, isso poderia causar um choque no espectador", diz Renato Sabbatini, neurocientista da Unicamp
Faz sentido?
Sim. A gravidade em Pandora é ligeiramente menor que a da Terra, o que possibilita a existência de seres maiores. Para tanto, porém, são necessários um sistema circulatório que consiga transportar o sangue até os extremos, como nas girafas, e uma estrutura óssea que suporte o peso - e o esqueleto dos Na’vi, segundo o filme, é ultrarresistente
Faz sentido?
Mais ou menos. A cauda é um contrapeso necessário para o equilíbrio. Os Na’vi a utilizam para se movimentar sobre as árvores - mas seu esqueleto já bastaria para tal. Já a sua postura ereta, como a dos seres humanos, é de fato fundamental para a locomoção eficiente de um bípede. As crianças, por exemplo, que ainda não fortaleceram os músculos das costas e do abdômen, têm dificuldade na locomoção sobre as duas pernas - por isso, engatinham e caem quando tentam andar
Faz sentido?
Sim. Pouca gordura corporal e muito músculo, características dos Na’vi, ajudam na agilidade e na locomoção
Faz sentido?
Sim. A lua Pandora provavelmente recebe grandes quantidades de radiação do planeta gasoso a cuja órbita pertence. A cor azul tem muita energia, e funcionaria como uma espécie de proteção