'Avatar', a caixa de Pandora
12/12/2009 00:14 Por Isabela Boscov, de Los Angeles Avatar (Estados Unidos, 2009), que estreia na sexta-feira 18 no país, é um feito técnico de proporções colossais. Particularmente porque, da maneira como foi articulado por James Cameron, esse mutirão de avanços tecnológicos usados para imergir o espectador no 3D mais fotorrealista que se poderia conceber tem em vista um propósito lírico e até honrado: o de criar beleza, transportar, surpreender pela imaginação e compartilhar um deslumbramento pela natureza que o próprio diretor só descobriu por completo ao ter-se retirado de cena - era o que parecia ter acontecido - depois de Titanic. Um avatar é uma versão de um ser existente; e é isso que o fuzileiro naval Jake Sully (Sam Worthington) ganha ao desembarcar no planeta Pandora: uma encarnação de si mesmo na forma de um Na’vi, como são chamados os habitantes indígenas desse mundo remoto. Jake ficou paraplégico em combate na Terra; em Pandora, tem mais de três metros de altura, pele azulada, cauda e fisionomia ligeiramente felinas e um físico tão forte e apto que, ao experimentá-lo pela primeira vez, ele se embriaga com tanta liberdade. Embriagador também é o terreno que ele pode percorrer nesse corpo. De dia, Pandora é um espetáculo de cores tropicais, árvores que se esfumaçam de tão altas e montanhas que vagam pelo céu como nuvens sólidas. De noite, é um sonho espectral de luminescências azuladas e arroxeadas, ressaltadas por brancos opalescentes e verdes fantasmagóricos - como um recife de corais que tivesse subido à superfície. Cameron é um apaixonado pelas profundezas marinhas, e não poderia ter imaginado argumento mais convincente para justificar sua fixação do que essas imagens. Mais notável ainda é a delicadeza do diretor. Em vez de atirar objetos contra a plateia, como os filmes em três dimensões fizeram até aqui, ele põe de lado os golpes baixos, o fácil e o pedestre e mira em algo muito acima: mostrar que o 3D é percepção, sensação e profundidade. Conjura tanta perícia, enfim, para simplesmente pousar o espectador em Pandora e deixar que, assim como Jake, ele viva a ilusão de estar dentro dessa ilusão. Essa é, de certa forma, a primeira história de amor de Avatar - a de Jake por uma natureza que, no futuro em que o filme se passa, na Terra já é só uma lembrança. A segunda história de amor, e a central, é a de Jake por Neytiri, uma amazona Na’vi que, apesar do seu rancor contra os seres humanos - Pandora está sob ameaça de devastação por uma corporação mineradora -, recebe um sinal de que esse homem é diferente. Neytiri (Zoë Saldana, a Tenente Uhura da recente versão cinematográfica de Star Trek) é encarregada de proteger Jake e de ensiná-lo a ser verdadeiramente um Na’vi. Entre domar uma montaria alada aqui, aprender a usar o arco ali e escorregar por folhagens acolá, o inevitável acontece. A paixão está nas cartas, claro, desde a primeira cena em que Neytiri e Jake se encontram, na qual ela previsivelmente o salva das feras que o rondam. Mas, pelo menos, Cameron introduz o romance por meio de uma camaradagem que diz muito sobre seu respeito pelas mulheres. Os Na’vi são também um povo da terra, e estão ligados a ela de maneiras bem literais - são parte efetiva dela, como descobrirá a botânica interpretada com excelentes humor e desembaraço por Sigourney Weaver. Há uma boa margem para tomar como eco-sentimentalismo (ou como ecobaboseira, conforme o ponto de vista) essa mensagem verde de Avatar, que em geral vem sublinhada por coros de vozes genericamente "nativos". Mas Cameron a contrapesa com lances mais lúcidos, como a sensação cinza e opaca com que Jake volta para seu corpo humano e limitado após cada excursão por Pandora - e o australiano Sam Worthington, o acerto de Exterminador Salvação, dosa no personagem as medidas corretas de gravidade e intrepidez. (Aliás, que se comente o desempenho de um humanóide azul de três metros já é sinal do quanto a transposição das atuações reais para os personagens digitais é bem-sucedida.) No terço final, em que se desenrola a batalha da mineradora contra os Na’vi e sua selva, são inspiradas também as alusões a outras imagens icônicas sobre a insensatez da guerra, como a da floresta se inflamando com napalm em Apocalypse Now, ou a do sofrimento dos cavalos sob fogo emKagemusha. Esse contraponto entre uma civilização tão mecanizada e outra tão próxima de um estado natural é uma surpresa em Avatar - mas, considerado em retrospecto, é também um passo lógico na carreira de seu diretor. Cameron sempre foi o cineasta do equipamento pesado, do metal guinchando e triturando na forma de robôs, de estações submarinas, de transatlânticos. Executar visualmente o fascínio e o terror que as máquinas exercem foi, desde o início, o que o distinguiu. Ao contrário de mestres da estupidez como o Michael Bay de Transformers, Cameron entende que essa relação com o mundo físico não é um pretexto para a catarse, para a sublimação da violência ou para efeitos mais e mais estrepitosos. De uma forma instintiva, não intelectualizada, porém não menos filosófica, todo seu cinema tem sido um comentário sobre a imaginação simultaneamente artística e tecnológica da espécie humana - e sobre como, nessa ânsia biologicamente programada de multiplicar até o infinito suas capacidades, ela perde controle sobre o que cria na mesma medida em que o aumenta, e toca tanto o belo como o terrível. Imaginar, dizem os filmes de Cameron - todos eles -, é abrir uma caixa de Pandora. Se o cinema for tomado como tal, então dela podem sair um sem-fim de burrices, algumas inclusive velhacas, como as que o avanço dos efeitos já produziu. Ou pode sair algo como Avatar - em alguns momentos redundante, em outros até um pouco cafona. Mas, em todos os instantes, invariavelmente animado pelo desejo de se alçar, de ir além e de engrandecer.