Crimes de um país complicado
Em seu romance de estreia, o jornalista Edney Silvestre vale-se
da história de uma mulher assassinada em uma cidadezinha
fluminense para compor um retrato do Brasil nos anos 60
Moacyr Scliar
Divulgação |
NADA É O QUE PARECE Edney Silvestre: exame minucioso das conotações políticas, sociais e psicológicas de um assassinato |
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• Trecho: Se eu fechar os olhos agora |
Na sociedade inglesa vitoriana, com sua severa e não raro violenta repressão psicológica e sexual, fazem sentido as investigações quase clínicas de Sherlock Holmes, o detetive criado por Arthur Conan Doyle. No Brasil, o crime misterioso raramente aparece na literatura. A violência sempre foi escarrada, praticada à luz do dia. Exemplos clássicos são o coronel do interior que manda seus jagunços executar um desafeto, o chefe de gangue que liquida um rival, o marido ciumento que mata a mulher. Mesmo Rubem Fonseca, o mais influente autor policial do Brasil, é mais um retratista da brutalidade do submundo carioca do que um articulador de enredos investigativos. Mas as coisas mudaram: o Brasil se urbanizou, a classe média cresceu, as relações entre pessoas se tornaram mais complexas - para o bem e para o mal. O crime obscuro, não esclarecido, passa a fazer parte desse quadro. Se Eu Fechar os Olhos Agora (Record; 304 páginas; 34,90 reais), o primeiro romance do jornalista Edney Silvestre, vale-se de uma história policial, com um crime misterioso, para retratar a alvorada desse novo país - a ação se passa nos anos 60.
Edney Silvestre tem uma longa e sólida carreira jornalística, no Brasil e no exterior. Foi correspondente da Globo em Nova York, onde cobriu os atentados de 11 de setembro de 2001. Em 1996, criou e produziu, com Paulo Francis, o programa de entrevistas Milênio, na Globo News, pelo qual passaram escritores como E.L. Doctorow, Salman Rushdie e Norman Mailer. No mesmo canal, apresenta hoje o Espaço Aberto Literatura, que teve José Saramago e Lobo Antunes entre os convidados. Sua experiência jornalística se faz sentir no romance, no modo como ele constrói um pano de fundo histórico vigoroso e na composição de diálogos rápidos e intensos. O cenário é uma pequena cidade do interior fluminense, onde dois adolescentes, Eduardo e Paulo, encontram, às margens de um lago, o corpo mutilado a facadas de uma jovem e bela mulher. Assustados, os garotos procuram a polícia, mas são tratados mais como suspeitos do que como testemunhas. A partir daí começa uma investigação, à qual se une um ex-prisioneiro político da ditadura Vargas para quem "nada neste país é o que parece". O passado nebuloso da vítima - mulher de um idoso dentista a quem traía abertamente com os figurões da cidade - confirma essa máxima. Edney Silvestre tem uma história para contar, e o faz com habilidade e segurança. Uma história sobre o crime e suas conotações políticas, sociais e psicológicas. A história de um país complicado.
Cadáver da memória
"Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do bico do seio direito."
Trecho de Se Eu Fechar os Olhos Agora