O mártir fictício
Roberto Bolaño tornou-se o mais badalado dos autores
latino-americanos graças a uma biografia na qual lenda e verdade
se confundem - e a uma obra que faz da farsa literária um tema central
Miguel Sanches Neto
Revista Paula |
PÉ NA ESTRADA Roberto Bolaño: o exilado chileno que pode (ou não) ter sido preso pela ditadura |
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• Trecho: Estrela distante |
A literatura, como qualquer outra área, precisa de seus mártires. E o mais recente mártir das letras hispano-americanas se chama Roberto Bolaño, chileno que rodou o mundo em busca de um lugar, encontrando-o apenas na literatura vivida como aventura extrema. Perseguido por uma ditadura, levando a existência precária de quem vive de bicos no exílio, morto precocemente de uma moléstia do fígado, ele traz todos os requisitos para ser cultuado devotamente (ou, pelo menos, essa é a versão autorizada de sua biografia). A aura de outsider ajudou a consagrá-lo nos Estados Unidos, onde o autor de Noturno no Chile encontrou uma entusiástica acolhida de público e crítica, feito raro para um autor de fora do mundo anglófono. Sua obra é realmente uma das mais vigorosas a surgir na América Latina nas últimas décadas. A paródia do mundo literário, a busca de autores lendários e as experiências autobiográficas são seus elementos mais visíveis - todos presentes em Estrela Distante (tradução de Bernardo Ajzenberg; Companhia das Letras; 144 páginas; 33 reais), que acaba de chegar às livrarias brasileiras.
Radicado no México já na adolescência, Bolaño teria voltado ao Chile em 1973, para acabar preso pela recém-instaurada ditadura do general Augusto Pinochet. A acreditar no que dizia o escritor, ele foi solto por amigos de infância que, por acaso, estavam entre os agentes que o guardavam na prisão. Em uma reportagem no The New York Times, o jornalista Larry Rohter entrevistou amigos e conhecidos de Bolaño que desconfiam dessa história - a prisão e a libertação fortuita seriam lendas cultivadas pelo autor, que teria permanecido no México em 1973. Outro boato persistente sobre Bolaño, desmentido por sua viúva, Carolina López, reza que ele teria sido um viciado em heroína. A lenda pode ter surgido de um conto seu, A Praia, cujo protagonista é um escritor heroinômano - e que teria sido equivocadamente lido como um ensaio autobiográfico.
Confusões entre fato e ficção casam bem com um escritor que, em várias obras, explorou o lado farsesco da literatura (e também da política: em um dos contos de Putas Assassinas, o autor se refere, com ironia, à comunidade de exilados chilenos que, no México, falava de uma resistência à ditadura que fora mais "fantasmática" do que real). No México, nos anos 70, Bolaño liderou um movimento poético, o infrarrealismo (parodiado por ele mesmo no romance Os Detetives Selvagens, no qual se fala do "realismo visceral"), mas não se firmou como autor de uma produção lírica, pois os happenings eram, naquele momento, mais importantes do que a obra. Empenhou-se em negar grandes nomes da poesia, como um Octavio Paz, exercendo jovialmente um poder destrutivo. Depois de uma existência errante, tendo trabalhado em todo tipo de subemprego, de lavador de pratos a vigia de camping, Bolaño, já morando na Espanha, foi surpreendido por uma relação amorosa estável, pela paternidade (teve dois filhos) e pela doença hepática (que o mataria, em 2003, aos 50 anos). Nos últimos anos, começou a ganhar a vida participando de concursos literários, ramo bem consolidado na Espanha. Lido como um romancista à beira da morte, fez da ficção uma forma de capitalizar-se, construindo um nome e um patrimônio em um tempo exíguo. É autor de quatro livros de poesia, três de contos, um volume de conferências e artigos e doze romances - alguns monstruosamente imensos, como 2666.
Originalmente publicado em 1996, Estrela Distante, agora lançado no Brasil, retoma personagens e situações de um livro anterior de Bolaño, A Literatura Nazi na América, ainda inédito no Brasil. A figura que catalisa a ação é um poeta de vanguarda que se apresenta com o nome de Alberto Ruiz-Tagle e mantém uma aura de mistério em torno de sua vida e de sua futura obra, esperada como uma revolução estética - revolução que se confundirá com a ditadura de Pinochet. Em meio ao horror da tortura e da repressão, Ruiz-Tagle reaparece com outro nome, Carlos Wieder, um poeta-aviador, símbolo do progresso tecnológico em arte, que escreve seus textos com fumaça nos céus do Chile. Enquanto cresce sua fama, patrocinada pelo governo e por juízes literários de formação católica, ele acaba se isolando, até finalmente se expor em sua obra mais radical - uma instalação num apartamento, feita de fotos de cadáveres, vítimas do próprio artista. Reflexão sobre a contiguidade entre certa vanguarda literária e as posturas autoritárias mais extremas, Estrela Distante é um dos melhores romances de Bolaño, curto e denso, escrito a partir de sua percepção de poetas como mártires de equívocos estéticos e históricos.