Saturday, May 15, 2010

Adotar para maltratar?


A tortura de uma menina de 2 anos por uma procuradora do Rio choca pela barbárie - e expõe as fragilidades do sistema de adoção de crianças no Brasil


Roberta de Abreu Lima e Ronaldo Soares

Domingos Peixoto/ Agência O Globo
As marcas da violência
A menor T.E., de 2 anos, espancada pela procuradora aposentada Vera Lúcia Gomes (à dir.),
que pretendia adotá-la: xingamentos e pancadas na cabeça


Acusada de torturar uma menina de 2 anos que estava sob sua guarda e a quem pretendia adotar, a procuradora aposentada carioca Vera Lúcia de Sant’Anna Gomes, 66 anos, com a prisão decretada, entregou-se na semana passada à Justiça, depois de ficar oito dias foragida. Presa numa penitenciária da Zona Oeste do Rio de Janeiro, ela se limita a dizer, por intermédio de seu advogado: "Acho que me excedi". O caso chama atenção pela extrema brutalidade. Os laudos do Instituto Médico-Legal revelam que T.E., encontrada por Vera Lúcia num abrigo para menores, foi vítima de violentas surras e pancadas na cabeça. Nos 29 dias em que permaneceu na casa da procuradora, ela passava boa parte do tempo trancada no quarto, sozinha. Numa fita em posse da polícia, escutam-se os gritos de Vera Lúcia: "Maluca, engole, você vai comer tudo. Pode chorar, cachorra!". Foi depois de uma denúncia anônima que o conselheiro tutelar Heber Leal esteve no apartamento da procuradora, em Ipanema, para verificar o estado da criança. Segundo relata a VEJA, encontrou-a repleta de hematomas e com os olhos tão inchados que mal conseguia abri-los. Perguntou: "Quem fez isso com você?". E ouviu: "Foi a mamãe".

Uma pergunta se impõe diante de tamanha crueldade: como alguém com o perfil de Vera Lúcia conseguiu autorização da Justiça para adotar uma criança? Seu nome consta em nada menos que quinze boletins de ocorrência. Além disso, a procuradora já havia tentado adotar outra menina, dois anos atrás. Quando a mãe desistiu de lhe entregar a filha, Vera Lúcia foi à maternidade e arrancou do bebê recém-nascido as roupas que havia comprado. Os especialistas concordam que seu comportamento revela traços de psicopatia. "Os acessos de ódio diante da frustração e o hábito de subjugar os outros são típicos", diz a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva. O caso faz refletir sobre a fragilidade do sistema de adoção no Brasil. A lei é bastante vaga no que diz respeito à avaliação de quem quer adotar: exige dos candidatos um atestado de saúde mental, mas não especifica quem deve emiti-lo. Assim, qualquer médico pode colocar ali a sua assinatura. Conclui o psicanalista Luiz Alberto Py: "Uma avaliação mais séria teria mostrado que essa mulher não está apta a exercer a maternidade".

Outro problema na história de Vera Lúcia se deve à sua motivação para querer adotar uma criança. Solteira e sem filhos, ela nunca escondeu que a razão era ter alguém para deixar sua herança - justificativa que deveria tê-la desqualificado, como é praxe nas varas da infância, justamente por não ser identificada com um desejo genuíno pela maternidade. Afirma o desembargador Siro Darlan: "Tudo indica que a análise desse caso foi, no mínimo, pouco criteriosa". De volta ao abrigo, a pequena T.E. já tem danos enormes. Ainda não se sabe se os maus-tratos deixarão sequelas neurológicas. Depois de 25 anos no Ministério Público do Rio e sete de aposentadoria, a procuradora tentava uma adoção havia quatro anos. As marcas de sua crueldade no rosto da menina mostram que foi um grande erro entregar uma criança a seus cuidados.

Melhor ficar longe deles


Em ano eleitoral, o governo ameaça servidores públicos com o fim da lei que permite greve da categoria e endurece o discurso contra ações do MST


Gustavo Ribeiro e Otávio Cabral

Cristiano Mariz
MST
O ministro Guilherme Cassel não quer saber do acampamento da versão sem-terra made in Paraguai


O presidente Lula tem razão quando prega que movimentos sociais, como o MST, e categorias de trabalhadores, como o funcionalismo público federal, nunca tiveram tratamento tão privilegiado. Em sete anos de gestão petista, os sem-terra invadiram, depredaram e saquearam fazendas – sempre com o aval, o respaldo financeiro e a leniência das autoridades. No caso do funcionalismo público, o governo concedeu aumentos médios muito acima da inflação, contratou mais 153 000 funcionários e multiplicou os chamados cargos de confiança. Em alguns órgãos, como o Itamaraty, a Abin e a Polícia Federal, os aumentos superaram 200%. Para se ter uma ideia do que isso significa em termos de recursos, em 2002 gastavam-se 34 bilhões de reais para pagar os salários dos servidores da ativa. Hoje essa cifra ultrapassa os 55 bilhões. Bem tratados, sem-terra e funcionários públicos também sempre se comportaram convenientemente em relação ao governo. Alguma coisa, porém, está mudando radicalmente essa relação.

Na semana passada, o presidente Lula se reuniu com todos os ministros e presidentes de empresas estatais. Depois, mandou um recado duro e bem distante do espírito negociador que ele, como ninguém, aprendeu nos muitos anos de sindicalismo: não haverá mais aumento para os servidores públicos neste ano. Segundo a Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal, entre 50 000 e 60 000 servidores estão em greve atualmente. Trabalhadores de órgãos como a Polícia Federal e o Supremo Tribunal Federal também ameaçam cruzar os braços. Preocupado com a onda de greves que pode paralisar serviços essenciais, o governo diz que vai cortar o ponto de quem faltar e não descarta nem mesmo mudar a lei para proibir definitivamente as greves no serviço público (veja entrevista abaixo) – uma bandeira histórica defendida pelo PT no passado.

Os ventos também sopraram ao contrário no campo. Não é de hoje que o MST protagoniza espetáculos de banditismo explícito. Nos últimos meses, porém, a leniência do governo tem se transformado em irritação. Exemplo disso foi uma reunião ocorrida duas semanas atrás em Brasília. Na pauta, uma aberração criada pelo movimento: o sem-terra made in Paraguai. O governo não gostou nada da novidade. Há alguns meses, representantes do MST em Mato Grosso do Sul passaram a aliciar agricultores brasileiros do outro lado da fronteira. Conhecidos como brasiguaios, os trabalhadores estão sendo atraídos pela promessa de que receberão um pedaço de terra no Brasil. Quatrocentas famílias já se alistaram no movimento, aumentando em cinco vezes o acampamento que fica na cidade de Itaquiraí, que hoje conta com mais de 2 000 pessoas amontoadas em barracos de lona. Sinal de confusão iminente. Preocupado, o ministro Guilherme Cassel, do Desenvolvimento Agrário, reuniu-se com a prefeita petista Sandra Cassone, de Itaquiraí, para discutir o assunto. Um representante do MST participou do encontro e ouviu do ministro que, com ou sem brasiguaios, não haverá desapropriação de terras na região. O tom do recado não foi nada ameno.

Pode soar estranho que o governo decida promover um pacote de maldades para servidores públicos e sem-terra exatamente em um ano eleitoral. Por mais contraditório que pareça, contudo, isso só está acontecendo exatamente porque é um ano eleitoral. O governo avalia que uma onda de greves agora seria devastadora para as pretensões presidenciais da ex-ministra Dilma Rousseff. Acredita que os servidores públicos receberam tudo o que queriam e, mesmo com o arrocho na reta final, continuarão aliados fiéis do PT e de sua candidatura. O discurso de acabar com o direito de greve tem por objetivo a intimidação. Com os sem-terra, o problema é mais delicado. O MST goza de terrível reputação em lugares onde Dilma Rousseff precisa muito angariar votos. Manter agora uma aparente distância do movimento é no mínimo prudente.

Wilson Dias/ABR
INTIMIDAÇÃO
A greve é legal, mas o governo ameaça mudar a lei


"Atentado à democracia"

Sergio Dutti/AE
METAMORFOSE
O advogado-geral Luís Adams diz
que greve de servidor é crime

O advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, classifica a greve de servidores públicos como um atentado à democracia – e defende mudanças na lei que permite paralisações no funcionalismo.

Há uma série de ameaças de greve de funcionários públicos de setores essenciais. Isso assusta o governo?
Estamos preocupados. É hora de discutir uma regulação melhor para distinguir o direito de greve do setor privado do direito de greve do serviço público. No serviço público, a greve não é feita contra o patrão, é feita contra a sociedade. É um atentado descarado contra a democracia. Essa característica não permite que os dois setores tenham a mesma legislação sobre greve.

Como regular isso?
O Judiciário deu um primeiro sinal ao derrubar a jurisprudência de que era preciso manter o atendimento de apenas 30% nos serviços em greve. Isso pode valer para o serviço privado, jamais para o serviço público. Serviços essenciais têm de funcionar integralmente sempre. Greve no serviço público tem de ser muito restrita. Agora isso vai mudar.

Mas no governo Lula, que já está no oitavo ano, pouco foi feito nessa direção.
Estou no cargo há pouco mais de seis meses, não posso falar de todo o governo. Há um anteprojeto de lei para regulamentar o direito de greve do servidor. O governo tem cortado o ponto dos servidores grevistas e a AGU vem participando de negociações sobre essas ameaças de greve. Mas há uma característica muito complicada, que são os limites dos direitos da burocracia do estado. A Constituição foi muito pródiga em direitos para essa burocracia, com irredutibilidade salarial, prerrogativas de movimentação, estabilidade, direito de greve.

O senhor acha que os direitos dos servidores travam o serviço público?
Às vezes, o excesso de direitos da burocracia inviabiliza a governança. A burocracia de estado é boa tecnicamente, vem evoluindo, mas precisa se afinar mais com os princípios de governança. O direito a esses benefícios não pode ser usado para inviabilizar o estado. A burocracia cria pequenos totalitarismos no governo. Há servidores que não cumprem leis e não são punidos. Isso não pode existir, a lei deve ser cumprida por todos. É outro atentado à democracia.

Mas, ainda assim, a máquina pública continua crescendo no governo petista.
Não quero acabar com a burocracia, com o funcionalismo público, mas qualificá-la. O que há muitas vezes é a politização da atividade burocrática, o que é danoso. O funcionário pode não gostar pessoalmente daquele governo, mas tem obrigação, como servidor, de servi-lo. Eu sempre votei no presidente Lula, desde 1989. Mas quando fui agente público na administração FHC eu a defendi da mesma maneira que defendo hoje o governo. Defendi as privatizações, defendi o Sivam, defendi o governo nas questões de greve, fui assessor do Gilmar Mendes... O que a gente precisa é de um funcionalismo que seja responsável, que sirva ao país independentemente do partido que esteja no governo.

O teste de DNA nas prateleiras


Rede de farmácias americana anuncia a venda de kits
que revelam a predisposição a doenças graves. Para
muitos médicos, talvez seja melhor não saber


Nataly Costa

Michael Nagle/Redox
Alta ansiedade
Casal colhe saliva para o teste de DNA: é melhor fazer isso sob supervisão médica


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O laboratório americano Pathway Genomics anunciou na semana passada, em parceria com 6 000 farmácias da rede Walgreens espalhadas pelos Estados Unidos, a venda de estojos para testes caseiros de DNA feitos com uma amostra de saliva. Há dois anos esse tipo de teste pode ser comprado pela internet, mas pela primeira vez se divulga sua venda nas prateleiras, diretamente ao consumidor. A notícia causou alvoroço entre os médicos e provocou reação imediata da Food and Drug Administration (FDA), a agência que regula o setor farmacêutico nos Estados Unidos. O órgão conseguiu que as duas empresas suspendessem o início das vendas até que se chegue a um consenso sobre a necessidade ou não de regulamentação dos testes. A controvérsia se deve ao fato de que um deles, o Health Kit, informa a predisposição genética a diversos tipos de câncer, Alzheimer, diabetes, glaucoma, infarto do miocárdio, hipertensão e esclerose múltipla, entre outros males. Ele também mede a probabilidade de intolerância a determinados remédios. O outro teste cuja venda foi anunciada, chamado Ancestry Kit, rastreia os antecedentes genômicos em busca das origens étnicas do indivíduo.

Muitos médicos e cientistas avaliam que os conhecimentos acerca da própria saúde proporcionados pelo Health Kit podem trazer mais prejuízos do que benefícios, deflagrando um estado permanente de medo de que a doença se desenvolva. Ocorre que ter predisposição genética a determinada doença não significa que se vá desenvolvê-la. Sua incidência depende de outros fatores, como os hábitos e o estilo de vida. "Os resultados desses testes podem ser muito relativos. Lê-los sem nenhuma orientação médica é loucura, só vai deixar as pessoas paranoicas", diz a geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo, que também é colunista de VEJA on-line. "Uma mulher cujo teste revele que ela tem apenas 10% de probabilidade de desenvolver câncer de mama pode achar que não precisa mais se submeter a mamografias", completa Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica. Em última análise, fica a critério de cada um dispor desse tipo de conhecimento sobre seu DNA

Quadro: O que os testes oferecem


O terrorista e o filho rebelde


O palestino Mosab Hassan Yousef colaborou com o serviço secreto israelense, tornou-se evangélico e entregou o pai, um fundador do Hamas


Duda Teixeira

Fotos Abbas Momani/AFP e Bebeto Matthews/AP
GERAÇÃO PELO AVESSO
O xeque Yousef (à esq.) foi traído pelo filho Mosab (acima) O palestino Mosab Hassan Yousef colaborou
com o serviço secreto israelense, tornou-se evangélico e entregou o pai, um fundador do Hamas


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A vida do palestino Mosab Hassan Yousef, de 32 anos, desafia a lógica do conflito árabe-israe-lense, em que as rivalidades são quase sempre hereditárias. Filho mais velho do xeque palestino Hassan Yousef, um dos sete fundadores do Hamas, grupo terrorista transformado em partido, o jovem foi criado para ser um líder extremista. Contra todas as possibilidades, traiu o pai, colaborou com o inimigo, denunciou os companheiros e converteu-se ao cristianismo. Após dez anos de bons serviços prestados como agente duplo do Shin Bet, o serviço secreto militar de Israel, hoje Mosab Yousef vive na Califórnia, nos Estados Unidos, onde divide o seu tempo entre o surfe e os cultos em uma igreja evangélica de San Diego. Em entrevista concedida a VEJA por telefone, ele definiu o Corão como "um livro doente que deveria ser banido das escolas, das bibliotecas, das mesquitas". Em sua biografia, Filho do Hamas(Sextante), lançado no Brasil na semana passada, a vocação de Yousef para fazer proselitismo religioso ganha, felizmente, menos espaço do que as histórias de espionagem e traição que envolvem sua trajetória.

A desilusão com o Islã e com o Hamas começou no período em que Yousef esteve preso em Megiddo, uma penitenciária israelense a 5 quilômetros da fronteira com a Cisjordânia. Detido por porte de armas em 1996, quando tinha 18 anos, Yousef permaneceu em uma área exclusiva para integrantes do Hamas. Durante os dezoito meses em que esteve preso, testemunhou membros do grupo torturando os próprios colegas. Qualquer um que demorasse um pouco mais no banho ou tivesse um sotaque diferente podia ser acusado de agente duplo e receber uma punição. Os terroristas enfiavam agulhas sob as unhas dos suspeitos e derretiam embalagens plásticas para queimar sua pele. Para não deixar que os gritos das vítimas chamassem a atenção dos guardas israelenses, ligavam a televisão no volume máximo. "Era um grau de brutalidade que nem mesmo os israelenses tinham conosco", diz Yousef. Depois de ser libertado, ele encontrou um jovem estrangeiro que lhe apresentou os dogmas evangélicos. Começou, então, a ter aulas noturnas de religião em uma escola católica de Ramallah, na Cisjordânia. O processo de conversão ocorreu às escondidas e durou seis anos. Já na prisão Yousef fora convidado a colaborar com o Shin Bet. Ele acredita que seus colegas palestinos nunca desconfiaram de sua vida dupla simplesmente por ser o filho de quem era: um dos mais influentes líderes do Hamas. O parentesco dava ao jovem acesso à elite política palestina, como Yasser Arafat, e aos bastidores dos planos terroristas de grupos como o Hamas e a Brigada dos Mártires de Al Aqsa, ligada ao partido secular Fatah.

Foi graças a informações passadas por Yousef que alguns dos homens mais perigosos dos territórios ocupados puderam ser presos. Em 2001, Yousef telefonou de seu carro para o Shin Bet e deu as coordenadas para a localização do veí-culo em que se encontrava Muhaned Abu Halawa, um traficante de armas de 23 anos procurado por dar apoio logístico aos atentados da Brigada dos Mártires de Al Aqsa. Em seguida, do alto de uma colina, um tanque israelense fez disparos precisos em direção ao carro de Halawa, estacionado em uma rua de Ramallah. "Um dos projéteis atravessou o para-brisa, mas Halawa deve ter percebido o ataque, porque abriu a porta a tempo e pulou para fora, em chamas", diz Yousef, que se encontrava a poucos metros do alvo. O informante, acompanhado do pai, ainda visitou o terrorista chamuscado no hospital. Meses depois, os israelenses eliminaram Halawa com mísseis lançados de dois helicópteros, dessa vez sem a ajuda de Yousef. "Posso dizer que, durante toda a minha colaboração com o Shin Bet, sempre me preocupei em apenas participar de operações que não atentassem contra a vida humana", diz o ex-agente duplo.

Nem sempre esse princípio funcionou. Em 2002, Yousef recebeu cinco homens pedindo ajuda em sua casa, em Ramallah. Eles estavam com um automóvel cheio de explosivos e precisavam de um lugar seguro para se esconder antes de realizar um atentado em Israel. Yousef deu dinheiro a eles e recomendou que encontrassem um hotel nas proximidades. Em seguida, ligou para o Shin Bet, que, discretamente, recolheu o carro-bomba. O informante palestino pediu para poupar os militantes. A condição foi aceita. Durante a noite, os militares israelenses invadiram o quarto dos terroristas para prendê-los. Um deles tentou escapar pela janela, mas foi abatido a tiros antes de alcançar a rua. Yousef garante que nunca colaborou com os israelenses por dinheiro. Em pelo menos três ocasiões, contudo, ele recebeu uma espécie de ajuda de custo de Tel-Aviv. Em uma delas, ganhou algumas centenas de dólares para "comprar algumas roupas, cuidar de mim mesmo e curtir a vida", como ele descreve no livro. Em 2005, seu pai, Hassan Yousef, estava sendo procurado pelos israelenses, e ele resolveu ajudá-lo, escondendo-o. Yousef, o filho, enfrentava um dilema: se continuasse escondido com o pai, poderia ser morto junto com ele; se o delatasse, temia que sua identidade como informante fosse descoberta pelo Hamas. Resolveu telefonar para o Shin Bet, pedindo para ser preso junto com o pai. O líder do Hamas está até hoje na cadeia. Seu filho ficou apenas três meses preso. Na sua avaliação, o pai, por ser da ala política do Hamas, não pode ser considerado um terrorista. Ainda assim, Mosab Yousef acha que fez a coisa certa.

Enric Marti/AP
VIOLÊNCIA
Desfile de homens-bomba do Hamas, em 2002, ano de intensa colaboração
de Mosab com Israe

O traidor do Hamas


14/05/2010 18:25

Por Duda Teixeira


O filho do xeque palestino que abandonou o Islamismo, denunciou terroristas e contribuiu para o serviço secreto israelense diz que sua fonte de inspiração foi Jesus Cristo (Foto: Divulgação)

Em 1987, o xeque palestino Hassan Yousef foi um dos sete fundadores do Hamas, grupo extremista islâmico que atua na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Os radicais da organização já comandaram 350 atentados contra israelenses provocando mais de 500 mortes. Seu filho, Mosab Hassan Yousef, 32 anos, é o autor do livro Filho do Hamas (Sextante), que chegou às livrarias brasileiras na semana passada. Na obra, revela como colaborou para o serviço secreto israelense, o Shin Bet, e explica por que converteu-se ao cristianismo. Yousef conversou com o repórter Duda Teixeira, pelo telefone, de Nova York.

Seu pai é um imã. Ele pregava o Islamismo nas mesquitas e ajudou a fundar o Hamas. O que o levou a converter-se ao Cristianismo? Depois de ser preso pelos soldados israelenses por porte de armas, em 1996, fui levado à prisão em Megiddo, Israel. Dentro do prédio, os detentos eram divididos segundo a filiação. Havia a ala do Hamas, que era a maior, a do Fatah, a da Jihad Islâmica e outras. Eu fiquei na do Hamas. Do interior das celas, testemunhei o que os integrantes do grupo faziam com seus próprios colegas. Quando os líderes do Hamas suspeitavam que um dos nossos estivesse dando informações aos israelenses, eles o torturavam. Havia interrogatórios diários. Isso fez com que eu repensasse alguns conceitos. Era um grau de brutalidade que nem mesmo os israelenses tinham conosco. Saí da prisão um pouco desnorteado. Mais tarde, comecei a estudar a Bíblia com amigos. O livro falava em “amar os seus inimigos”, o que fez todo sentido para mim.

Quem eram os torturadores? Como eles procediam? Eram os homens que integram o braço de segurança do Hamas. Quando iam punir alguém, esvaziavam uma cela e ligavam a televisão em volume bem alto para que os outros não ouvissem os gritos de desespero. Na falta de uma televisão ou rádio, começavam a rezar bem alto. Então, colocavam agulhas embaixo das unhas dos suspeitos. Derretiam embalagens plásticas e as colocavam sob a pele das pessoas. Queimavam cabelos e pelos. Eram sessões de aproximadamente meia hora. Às vezes, impediam o interrogado de dormir por vários dias. Entre 1993 e 1996, dezesseis pessoas foram mortas pelo Hamas em prisões israelenses. Sob tortura, as vítimas confessavam as coisas mais absurdas. Como eu digitava rápido, fui chamado para redigir muitos desses depoimentos. Era loucura. Depois, entregavam as confissões para os familiares. Caso o detento fosse solto, seus parentes e amigos passavam a evitá-lo. A vida social dele acabava.

O Hamas continua usando as mesmas práticas? Provavelmente, mas não na mesma intensidade como no passado. Meu pai esteve detido em Megiddo e coibiu muito as torturas. Ele mudou o jeito de pensar daqueles homens. Mas o Hamas continua praticando-as. Quando pensam que alguém colabora com Israel, torturam e matam. É isso o que está acontecendo na Faixa de Gaza agora. Ao contrário do que diz o Hamas, Israel não é o principal inimigo dos palestinos, e sim os próprios palestinos.

Um dos principais desafios do mundo hoje é conseguir que o Hamas participe das negociações de paz. Existe a possibilidade de o grupo sentar-se com os rivais do Fatah e com o governo de Israel para conversar? Os líderes do Hamas até podem dizer que buscam uma solução e dizer que abrem mão de Jerusalém como capital. Mas eles não manterão a palavra simplesmente porque o Deus deles não permite isso. É um bloqueio religioso. O Hamas não reconhece Israel. Ponto. O Corão diz que os israelenses são macacos e porcos. Toda vez que algum representante do grupo obtem algum progresso, esbarram no muro da ideologia ou no da religião.

O governo israelense deveria soltar prisioneiros palestinos em troca da liberdade do soldado Gilad Shalit, capturado pelo Hamas em 2006? Entendo que todos esses presos necessitem de liberdade. Eu fui um deles e sei o quanto sofrem. Mas é preciso preparar o ambiente para que eles sejam soltos. Sem isso, eles poderiam ser mortos nas ruas por facções rivais ou tornarem-se terroristas novamente. Alguns detentos não são perigosos e poderiam se tornar até defensores da paz. Outros são extremamente cruéis. Foram responsáveis pela morte de dezenas de israelenses e consideram-se heróis. Se voltassem a praticar o que faziam, eles comprometeriam as negociações de paz e o sonho de um estado palestino. Olhando o cenário hoje, vejo que não chegou o momento de abrir as celas. Talvez tenham de ficar a vida toda na prisão. Não me sinto culpado por esse sentimento. Sinto pelas suas famílias, que são vítimas da situação, mas não há opção.

Israel viola os direitos humanos ao manter pessoas que não são comprovadamente terroristas nas prisões? Diga para mim qual é o governo que não viola os direitos humanos. Não há estado perfeito. Todo governo comete erros. Israel é um deles. A questão é que muitos israelenses foram mortos em sinagogas, em ônibus e em supermercados e seus dirigentes tiveram de tomar medidas para defender seus cidadãos. O mais importante é abster-se de usar métodos violentos, pois isso só gera mais violência. Quando trabalhei com o Shin Bet, não assassinei ninguém e não participei de nenhuma operação contra a vida de um ser humano. Hoje, mesmo longe, dou a mesma recomendação para eles.

Quantas vidas você calcula que salvou ao ajudar o Shin Bet? Como você fazia isso? Não importa se eu salvei uma ou mil pessoas. Eu não tenho esperança de receber retribuições de ninguém. Uma vez, em 2002, eu estava em casa, em Ramallah, quando dois homens assustados bateram na minha porta e falaram: “Temos um carro lá fora cheio de explosivos. Precisamos de um lugar seguro para ficar”. Eles procuravam o meu pai e havia outros três no carro, estacionado ali perto. Dei um dinheiro a eles encontrarem um hotel e pedi que retornassem à noite. Rapidamente, telefonei para o Shin Bet e pedi que levassem o automóvel embora. Foi um alívio enorme. Meia hora depois, o primeiro-ministro Ariel Sharon já tinha ordenado o assassinato daqueles cinco homens. Eu, então, fui contra. Não queria me envolver com coisas assim, mesmo sendo eles terroristas. E os israelenses aceitaram minha objeção. O exército então entrou no quarto dos terroristas durante a noite e os prendeu de surpresa, pois ainda possuíam os cintos com explosivos.

Mas você deu informações que levaram à tentativa de assassinato de Muhaned Abu Halawa, de 23 anos, ligado ao Fatah. Após um telefonema seu, um tanque israelense disparou um míssil contra o carro dele. Halawa escapou, mas foi morto meses depois. Você se arrepende disso? Halawa fornecia armas poderosas para os terroristas. Eu apenas ajudei a localizá-lo. Mas a tentativa falhou, e fiquei contente quando isso aconteceu. Na realidade, eu não estava muito certo sobre o que deveria fazer naquela ocasião. Ao final, Halawa foi morto em outra operação, da qual não tomei parte. Então, posso dizer que, durante toda minha colaboração com o Shin Bet, sempre me preocupei em apenas participar de operações que não atentassem contra a vida humana. Não sou responsável pela morte de nenhum palestino ou israelense.

Quando foi a última vez que você falou com seu pai? O que ele disse para você?Conversei com ele por telefone alguns dias antes do lançamento do meu livro. Ele foi muito compreensivo no início. Porém, após a pressão da sociedade e de outros religiosos, ele não teve outra opção a não ser me recusar. Desde então, não fala comigo.

Seu pai convocou manifestações de palestinos, as quais resultaram em mortes de israelenses e árabes. Ele é um terrorista? Meu pai não é terrorista por natureza. Aliás, nenhum palestino é. Mas eles têm as suas razões para se comportar assim, para tentarem se vingar. Também é preciso levar em conta que o Hamas também é muito complicado. Existe o braço político, do qual meu pai faz parte. E existe o militar, que tem umas dez pessoas operando independentemente e que raramente se encontram. São esses últimos os responsáveis pelos ataques contra pessoas. Meu pai não sabia o que essas pessoas planejavam, mas deu cobertura a eles. Se ele continuar fazendo isso, aí acho que ele poderia, sim, ser considerado um terrorista.

O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad declarou que suas centrífugas já são capazes de enriquecer urânio a 20%. Se chegar a 90%, esse material já poderia rechear uma bomba atômica. O que o Irã faria com um artefato nuclear? O deus do Corão não hesitaria em bombardear qualquer país que não acreditasse nele. Pode usar qualquer arma para lutar contra infiéis. Seus devotos estão prontos para lutar pela religião e alcançar a glória, com a bomba ou o que mais tiverem è mão.

De que maneira o Irã ajuda o Hamas? O Irã treina soldados do Hamas e os prepara para o combate em seu território. Muitos viajaram para lá em anos recentes. E o Irã também dá apoio financeiro e logístico. Como os membros do Hamas não podem ter contas bancárias, pois isso é contra as decisões da comunidade internacional, seus membros fazem contrabando de dinheiro. Essa operação complicada ocorre de duas maneiras. A primeira é usando as centenas de túneis que ligam a Faixa de Gaza ao Egito. A segunda é pela fronteira terrestre nesse mesmo local, aproveitando as viagens de membros do grupo para o exterior. Em 2006, o primeiro-ministro do Hamas, Ismail Haniya, foi pego quando tentava entrar na Faixa de Gaza com 35 milhões de dólares. Ele vinha do Irã e disse que o valor era para pagar salários, remédios e armamentos. É comum que esses homens do Hamas sejam detidos com dinheiro. Em 2009, o ministro de relações exteriores do Hamas, Mahmoud Zahar, foi flagrado com vinte milhões de dólares na mesma situação. Segundo o Fatah, parte das notas tinha como destino o braço militar do Hamas.

Sem esse apoio do Irã, o Hamas ficaria enfraquecido? O Irã é um dos grandes patrocinadores dos terroristas, mas não o único. Há muitos doadores no Catar, na Arábia Saudita, na Síria e no Egito. São, em geral, pessoas e empresas que entregam parte de suas economias em mesquitas, com o objetivo claro de fomentar a resistência do Hamas. Bloquear a ajuda iraniana pode ajudar, mas não necessariamente enfraquecerá o Hamas.

Como o presidente da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat assinou com o primeiro primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin, o Acordo de Paz de Oslo, o que lhe valeu o prêmio Nobel da Paz em 1994. Qual sua opinião sobre ele? Arafat era um político e, como tal, fez coisas boas e ruins para o seu povo. Era um centralizador que colocou o seu nome em todas as contas bancárias. Também tinha um posicionamento dúbio. Arafat estava no comando da Organização da Libertação da Palestina, quando esse entidade ordenou a Segunda Intifada, em 2000. A revolta de palestinos contra israelenses gerou milhares de mortos. A guarda pessoal de Arafat promoveu os mais virulentos ataques a Israel, sob o nome de Brigadas dos Mártires de Al Aqsa. O grupo foi criado por Arafat com o dinheiro que recebia de doações de outros países, incluindo dos Estados Unidos. Mesmo assim, para muita gente no mundo, Arafat sempre foi um grande promotor da paz.

Agora que você se converteu ao cristianismo, como enxerga as diferenças entre o Corão e a Bíblia? Não é justo comparar os dois livros. O Corão está cheio de ódio, de ignorância, de erros. Não tem ética. É um livro doente que deveria ser banido das escolas, das bibliotecas, das mesquitas. A Bíblia, por outro lado, tem Jesus Cristo, que foi perseguido, torturado, e mesmo assim continuou amando as pessoas e seus opressores. Os dois livros têm deuses completamente diferentes. Um, o do Islã, é o do ódio. O deus da Bíblia é o do amor. Muitas coisas que fiz durante o meu trabalho com o Shin Bet foram inspiradas pelos ensinamentos de Jesus Cristo. Tenho um amor incondicional por ele. Cristo é o meu herói.

Mas a Bíblia também foi usada para justificar torturas e mortes durante a Inquisição, por exemplo. Ok... Mas essas coisas foram feitas por pessoas que não entenderam a principal mensagem da Bíblia. Não compreenderam as falas de Jesus Cristo, que é o nosso maior exemplo. O amor incondicional de Jesus não é um capítulo separado do livro, mas sua principal mensagem.

Você não teme promover o ódio entre religiões e se tornar um fundamentalista cristão? Eu sei quais são as minhas responsabilidades. Não quero promover uma rixa entre religiões. Eu amo os muçulmanos. Falo com eles com carinho. Mas preciso ajudar a consertar a religião deles. Ser forte e dizer a verdade, mesmo que isso possa causar confrontações. No mais, não há o risco de eu incitar uma guerra religiosa porque isso já acontece no Oriente Médio. Não seria algo novo.

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Trajetória-relâmpago
Ricardo, Renan e Alex (da esq. para a dir.): direto da escola para o mestrado

A biografia dos estudantes que aparecem na foto acima contém um fato raríssimo que os faz destoar completamente da média: eles alcançaram o feito de saltar do ensino médio direto para a pós-graduação em matemática – sem jamais ter pisado numa faculdade. O grupo pertence ao Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), no Rio de Janeiro, um dos melhores centros de pesquisa do mundo na área, de acordo com os rankings internacionais. Pois até mesmo ali, um celeiro de cérebros, a precocidade do trio chama atenção. Aos 18 anos, o catarinense Renan Finder já cursa o mestrado em matemática pura e cultiva o hábito de gravar na memória os problemas que, só por diversão, soluciona mentalmente nas horas vagas. O estudante resume o pensamento comum ao grupo dos prodígios: "Desde que me entendo por gente, penso o mundo como um matemático". Recrutados pelo Impa em olimpíadas dedicadas à disciplina, nas quais colecionaram medalhas, esses estudantes compõem um caso emblemático de como rastrear e lapidar talentos bem cedo pode trazer resultados excepcionais. Com todos os estímulos necessários, eles não apenas potencializaram suas aptidões como se conectaram a alguns dos melhores polos de pesquisa do mundo – algo decisivo para sua carreira. Avalia o doutor em matemática Seme Gebara: "Cultivar o talento dos jovens é crucial para o desenvolvimento de qualquer país – mas trata-se ainda de uma exceção no Brasil".

Há evidências científicas de que os estímulos providos desde muito cedo àqueles de talento especial para a matemática têm efeitos poderosos. Isso porque em nenhuma outra etapa da vida eles estão tão propensos a ser criativos com os números. Explica o especialista alemão Martin Grötschel, da Universidade Técnica de Berlim: "Os estudos mostram que, até cerca dos 20 anos, os jovens ainda não mecanizaram os caminhos para solucionar os problemas, o que deixa o cérebro mais livre para o exercício da criatividade – fundamental para avançar nesse campo". A teoria pode ajudar a entender por que tantos gênios da matemática afloraram ainda na adolescência. Foi com apenas 16 anos que o francês Blaise Pascal (1623-1662) criou seus primeiros teoremas na área da geo-metria. O americano John Nash, por sua vez, escreveu sua tese sobre a teoria dos jogos, aquela que lhe renderia o Prêmio Nobel de Economia em 1994, aos 21 anos.

Najlah Feanny/Corbis/Latin Stock
Genialidade precoce
O americano John Nash: ele ganhou
o Nobel pela tese sobre a teoria
dos jogos que escreveu aos 21 anos


A história dos jovens prodígios do Impa reforça ainda a ideia de como um ambiente favorável ao aprendizado pode ser decisivo. Em casa, todos eles receberam incentivos para que o gosto pelas equações se perpetuasse. "Desde pequeno, meu pai adorava me colocar diante de desafios matemáticos", lembra o paulista Ricardo Turolla, 21 anos, que na 8ª série do ensino fundamental já havia resolvido 100% dos exercícios dos livros do 3º ano do ensino médio. Foi uma questão de tempo para que o pai de Ricardo, um engenheiro elétrico, acabasse ultrapassado pelo filho – hoje cursando o doutorado na área de sistemas dinâmicos, cujas aplicações vão da previsão do tempo às cotações da bolsa de valores. Como esperado, o grupo também passou por boas escolas de ensino particular, onde encontraram professores que conseguiram mantê-los interessados, apesar do abismo que os separava do restante da turma. O fato de terem participado de uma série de olimpíadas de matemática – competições que têm revelado talentos como o do pernambucano João Lucas Gambarra, 15 anos (veja o quadro abaixo) – também foi relevante. Diz o carioca Alex Correa, 23 anos e um doutorado recém-concluído: "Um ambiente tão competitivo é desafiador à inteligência. Depois de uma olimpíada, eu já pensava em me preparar para a seguinte". Sim, todos estudam madrugada adentro. Por exigência do Ministério da Educação (MEC), também começaram a cursar a faculdade, pré-requisito para que o título de doutor seja válido no Brasil.

Como outros de sua geração, os três jovens do Impa gostam de videogame, cinema, internet e festas com amigos. O que os distingue é justamente a adoração pela matemática – disciplina que a maioria dos estudantes no Brasil não só detesta como ignora. Numa comparação com alunos de 57 países, conduzida pela OCDE (organização que reúne os mais desenvolvidos), os brasileiros patinaram na 54ª posição, à frente apenas da Turquia, Catar e Quirguistão. A razão central para o flagrante atraso em relação aos demais países diz respeito ao baixo nível dos professores. Para se ter uma ideia, apenas 4% dos docentes do ensino fundamental se especializaram na área. Entre os que têm o diploma, a situação não melhora muito: em exame aplicado pelo MEC aos recém-formados, menos de um terço das questões foi respondido corretamente. Estamos a anos-luz, portanto, daquilo que o matemático americano John Allen Paulos, autor do livro Innumeracy (em português, "analfamatismo"), verificou ser mais eficaz para o ensino da matéria: "O desafio é apresentá-la como uma fantástica ferramenta para enxergar o mundo em que vivemos".


O campeão de Quixaba

Josue da Mata
Coleção de medalhas
O destaque olímpico João Gambarra:
seus livros já são os do doutorado


No 2º ano do ensino médio, o pernambucano João Lucas Gambarra, 15 anos, gosta de dedicar o tempo livre a atividades que causam estranheza aos colegas – todas relacionadas à matemática. Atualmente, ele se divide entre a leitura de um calhamaço sobre análise combinatória (indicado para alunos de doutorado) e a participação diária num fórum em que gente de todas as idades discute a resolução de problemas na internet. Frequentemente, o adolescente chega à resposta antes de todo mundo. Medalhista em cinco olimpíadas de matemática consecutivas entre escolas públicas, competição da qual participa desde os 10 anos, João Lucas tem uma trajetória distinta da maioria dos estudantes que sobressaem pelo talento. Filho de uma historiadora e de um professor do ensino fundamental, ele nunca teve condições financeiras para estudar em escola particular, tampouco para comprar todos os livros que o interessavam. Cientes de sua aptidão fora do comum, no entanto, os pais fizeram de tudo para incentivá-lo. Moradores do município de Princesa Isabel, no interior da Paraíba, eles decidiram matricular João Lucas numa escola pública da cidade vizinha, Quixaba, esta em Pernambuco – justamente pela notória excelência. Entre os 7 000 habitantes de lá, os feitos olímpicos do menino o alçaram à condição de celebridade. "Desde pequeno, matemática para mim sempre foi pura diversão", diz ele, que está em dúvida entre a carreira de engenheiro e a de analista de sistemas.

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