Saturday, May 15, 2010

Adotar para maltratar?


A tortura de uma menina de 2 anos por uma procuradora do Rio choca pela barbárie - e expõe as fragilidades do sistema de adoção de crianças no Brasil


Roberta de Abreu Lima e Ronaldo Soares

Domingos Peixoto/ Agência O Globo
As marcas da violência
A menor T.E., de 2 anos, espancada pela procuradora aposentada Vera Lúcia Gomes (à dir.),
que pretendia adotá-la: xingamentos e pancadas na cabeça


Acusada de torturar uma menina de 2 anos que estava sob sua guarda e a quem pretendia adotar, a procuradora aposentada carioca Vera Lúcia de Sant’Anna Gomes, 66 anos, com a prisão decretada, entregou-se na semana passada à Justiça, depois de ficar oito dias foragida. Presa numa penitenciária da Zona Oeste do Rio de Janeiro, ela se limita a dizer, por intermédio de seu advogado: "Acho que me excedi". O caso chama atenção pela extrema brutalidade. Os laudos do Instituto Médico-Legal revelam que T.E., encontrada por Vera Lúcia num abrigo para menores, foi vítima de violentas surras e pancadas na cabeça. Nos 29 dias em que permaneceu na casa da procuradora, ela passava boa parte do tempo trancada no quarto, sozinha. Numa fita em posse da polícia, escutam-se os gritos de Vera Lúcia: "Maluca, engole, você vai comer tudo. Pode chorar, cachorra!". Foi depois de uma denúncia anônima que o conselheiro tutelar Heber Leal esteve no apartamento da procuradora, em Ipanema, para verificar o estado da criança. Segundo relata a VEJA, encontrou-a repleta de hematomas e com os olhos tão inchados que mal conseguia abri-los. Perguntou: "Quem fez isso com você?". E ouviu: "Foi a mamãe".

Uma pergunta se impõe diante de tamanha crueldade: como alguém com o perfil de Vera Lúcia conseguiu autorização da Justiça para adotar uma criança? Seu nome consta em nada menos que quinze boletins de ocorrência. Além disso, a procuradora já havia tentado adotar outra menina, dois anos atrás. Quando a mãe desistiu de lhe entregar a filha, Vera Lúcia foi à maternidade e arrancou do bebê recém-nascido as roupas que havia comprado. Os especialistas concordam que seu comportamento revela traços de psicopatia. "Os acessos de ódio diante da frustração e o hábito de subjugar os outros são típicos", diz a psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva. O caso faz refletir sobre a fragilidade do sistema de adoção no Brasil. A lei é bastante vaga no que diz respeito à avaliação de quem quer adotar: exige dos candidatos um atestado de saúde mental, mas não especifica quem deve emiti-lo. Assim, qualquer médico pode colocar ali a sua assinatura. Conclui o psicanalista Luiz Alberto Py: "Uma avaliação mais séria teria mostrado que essa mulher não está apta a exercer a maternidade".

Outro problema na história de Vera Lúcia se deve à sua motivação para querer adotar uma criança. Solteira e sem filhos, ela nunca escondeu que a razão era ter alguém para deixar sua herança - justificativa que deveria tê-la desqualificado, como é praxe nas varas da infância, justamente por não ser identificada com um desejo genuíno pela maternidade. Afirma o desembargador Siro Darlan: "Tudo indica que a análise desse caso foi, no mínimo, pouco criteriosa". De volta ao abrigo, a pequena T.E. já tem danos enormes. Ainda não se sabe se os maus-tratos deixarão sequelas neurológicas. Depois de 25 anos no Ministério Público do Rio e sete de aposentadoria, a procuradora tentava uma adoção havia quatro anos. As marcas de sua crueldade no rosto da menina mostram que foi um grande erro entregar uma criança a seus cuidados.

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