Sem começo ou meio - RUY CASTRO
FOLHA DE SP - 17/10
FOLHA DE SP - 17/10
RIO DE JANEIRO - Há décadas tenho privado com alcoólatras em vários estágios de dependência. Todos resistentes a tratamento. Um deles nem admitia o assunto, mesmo quando os vômitos matinais de sangue já tornavam sua situação desesperadora. A eventualidade de uma internação, com a interrupção do fornecimento de bebida, lhe era intolerável. A alternativa podia ser a morte, mas ele não parecia com medo. A dependência é mais forte do que o medo da morte.
Quando se trata de álcool, a dependência leva anos para se instalar, durante os quais o bebedor tem tempo para constituir família, aprender um ofício e afirmar-se profissionalmente -até que a progressão da doença acabe com tudo. Às vezes, uma última centelha de consciência o faz procurar ajuda. Se esta vier a tempo, e o processo destrutivo for interrompido e controlado, a pessoa, com esforço e sorte, pode retomar sua vida e tentar devolvê-la ao que era antes de a dependência ter se instalado.
Anteontem, vi pela TV os dependentes de crack da favela do Jacarezinho, no Rio, ocupada pelos militares, sendo levados pelos assistentes sociais. A maioria, inconformada, pedalava o ar com as poucas forças que lhe restavam -ninguém queria sair do lixão onde morava.
No fim do dia, todos (exceto, por algum tempo, os menores) estavam de volta à cracolândia.
A ideia da internação compulsória para os dependentes de crack não deveria se confundir com as normas de internação para outros tipos de dependência. Ao fim e ao cabo, todas as dependências são iguais, mas a do crack não tem começo ou meio. Já começa pelo fim.
Não pode haver internação "consentida" de um dependente de crack, pelo simples fato de que esse dependente não tem mais o que consentir ou negar. Para ele, a morte não é nada diante da ideia de ficar sem o produto.