Saturday, May 01, 2010

A república digital das letras


O passado e o futuro do livro – e do ideal iluminista de torná-lo
acessível a todos – são examinados em ensaios pelo diretor
da biblioteca de Harvard


Jerônimo Teixeira

William Manning/Corbis/Latinstock
CENTRO DO SABER
Biblioteca Pública de Nova York: bem mais do que um depósito de livros


Desculpe se o que estou dizendo parece cheio de santimônia", diz o historiador americano Robert Darnton, 71 anos, depois de uma apaixonada defesa da atualidade do livro em papel. Ao longo de sua entrevista a VEJA (veja o quadro abaixo), Darnton esboçou várias desculpas do mesmo teor: seu tom estaria muito sentencioso, ou até mesmo pio, como o de um pregador religioso. É compreensível. Darnton é uma autoridade na história do livro, autor de O Iluminismo como Negócio e Edição e Sedição, entre outros estudos fundamentais sobre o mercado livreiro na França do século XVIII – e sua relação com o explosivo contexto político que culminaria na Revolução de 1789. O objeto de seus estudos propicia o tom elevado: veículo de vários textos sagrados, o livro é também o centro de um certo culto laico, celebrado em bibliotecas como a da Universidade Harvard, da qual Darnton é diretor. Mas o historiador não se vale dessas metáforas religiosas: nos termos do Iluminismo do século XVIII, ele prefere falar na República das Letras – um país desprovido de fronteiras, no qual todos, leitores e autores, poderiam discutir e trocar ideias sem censura ou restrições. A internet, com sua capacidade inaudita de divulgar textos e imagens, tem, sem dúvida, o potencial de expandir essa república virtual – e Darnton examina essas possibilidades ao mesmo tempo com entusiasmo e ponderação em A Questão dos Livros (tradução de Daniel Pellizzari; Companhia das Letras; 232 páginas; 42,50 reais), coletânea de ensaios recém-lançada no Brasil.

"Este é um livro sobre livros, uma apologia descarada em favor da palavra impressa e seu passado, presente e futuro", anuncia a introdução da obra. Consumado rato de arquivos (em um dos ensaios, ele relata a experiência de ler, na íntegra, o arquivo de 50 000 cartas referentes aos negócios de uma editora franco-suíça do século XVIII), Darnton é amante do papel, do prazer visual e tátil que se extrai do contato com um livro (em particular, com obras antigas e raras). Ele aposta na sobrevivência do códice, o formato de livro que surgiu em torno do século III – com páginas que são viradas, e não desenroladas, como nos rolos de pergaminho que até então conservavam a palavra escrita – e alcançou um público leitor cada vez maior a partir da invenção da imprensa, na década de 1450. Será simplista, argumenta ele, imaginar que uma nova tecnologia vai substituir completamente e de imediato formas mais antigas. A televisão não acabou com o rádio, e nem o YouTube acabou com a TV. O livro em papel, portanto, deverá conviver muito tempo com leitores eletrônicos como o Kindle e o iPad.

Os formatos eletrônicos, porém, configuram um desafio para os bibliotecários, que terão de desenvolver novos métodos e protocolos para conservar o conhecimento em forma digital. "Os arquivos digitais são compostos de números binários, que se corrompem e degradam. E a tecnologia avança rapidamente. Muitos formatos de arquivo se tornam obsoletos e difíceis de acessar em um prazo de poucos anos", alerta Darnton. Outro grande esforço exigido das bibliotecas – o de tornar seus acervos acessíveis on-line – esbarra em problemas não só tecnológicos, mas também legais. A Questão dos Livros faz um exame crítico do ambicioso projeto do Google para digitalizar as obras de algumas das maiores bibliotecas universitárias do mundo, inclusive a de Harvard. O Google Book Search foi contestado por associações americanas de autores e editores, que reclamavam o respeito aos direitos autorais das obras digitalizadas que ainda não se encontram em domínio público. O entrave foi contornado, em 2008, por um acordo entre o Google e essas associações – o qual, no entanto, ainda depende de aprovação judicial. Darnton observa que o acordo, por sua extensão, tornaria o Google Book Search imune à concorrência. O próprio Departamento de Justiça americano já contestou a iniciativa, por seu caráter monopolista.

O Google Book Search é o tópico mais "momentoso" de A Questão dos Livros. Mas a coletânea não se esgota aí: é rica em digressões saborosas sobre as diferentes edições de Shakespeare ou as leituras de Thomas Jefferson. Darnton é, sobretudo, um historiador, um homem que oferece perspectivas amplas para seus temas. E seu assunto central exige isso mesmo: não há objeto mais amplo do que o livro.


Uma missão civilizadora

O historiador Robert Darnton falou a VEJA sobre o papel das bibliotecas
e a polêmica iniciativa de digitalização de livros do Google.

Catherine Helie/Gallimard/Opale
PRAZER DO PAPEL
Robert Darnton: "Apologia descarada
da palavra impressa"


O senhor afirma que a biblioteca é o centro da vida universitária. Faz sentido falar nesses termos quando os estudantes hoje contam com a internet, que não tem um "centro"?

Não devemos pensar nas bibliotecas como meros depósitos de livros, ou como museus em que exemplares raros são expostos em cúpulas de vidro. A biblioteca é um centro de organização do conhecimento – o que se torna ainda mais importante em um universo confuso e sem forma como a internet. Sei que isso pode soar sentencioso, mas acredito nessa missão central das bibliotecas.

E a biblioteca de bairro ou de cidade pequena ainda cumpre a mesma função para o leitor comum?
Sim, e está incorporando novas funções. Faço parte do conselho da Biblioteca Pública de Nova York, que, além de seu conhecido prédio central na Quinta Avenida, administra várias unidades de bairro. A visitação delas aumentou depois da crise econômica. Os trabalhadores que perderam o emprego e não têm computador em casa vão lá para buscar empregos on-line.

O senhor é um crítico do Google Book Search, projeto que pretende digitalizar o acervo de grandes bibliotecas – inclusive a de Harvard – e oferecer acesso aos livros na internet. Por quê?
O Google tem feito um trabalho maravilhoso de digitalização do acervo dessas bibliotecas. Mas, como toda empresa privada, tem por objetivo dar lucro a seus acionistas. Os objetivos das bibliotecas são distintos – entre eles, oferecer conhecimento público. Esse conhecimento não pode ser detido por uma empresa só. O acordo sobre direitos autorais do Google configura uma situação de monopólio.

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