Saturday, May 01, 2010

O perdedor riu por último


Bussunda, do Casseta & Planeta, foi a figura mais marcante
do humor nacional do fim dos anos 80 até sua morte, em 2006.
Mas antes do sucesso, diz uma biografia, era tido como um caso
perdido pela família


Marcelo Marthe

Fotos Guilherme Pinto/Ag. O Globo; Camila Maia/Ag. O Globo; Gianne Carvalho/Ag. O Globo; Andre Arruda
FALA SÉRIO!
Bussunda em suas imitações mais famosas – o presidente Luiz "Inércio" Lula da Silva (à dir., acima),
a versão mocreia de Vera Fischer (à dir., com os colegas do Casseta) e o craque Ronaldo "Fofômeno":
"doçura ogra" capaz de espantar qualquer rejeição


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Cláudio Besserman Vianna havia acabado de ingressar no curso de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e já matava aulas para ganhar uns trocados. De óculos escuros, o rapaz de 19 anos embarcava em lotações e pedia esmolas fingindo-se de cego – e de deficiente mental. Sua aparência contribuía para que os passageiros caíssem na farsa: barriga volumosa, cabelos desgrenhados e uma cara redonda na qual se destacavam os dentes saltados. O aspecto de quem não via um chuveiro fazia tempo dava a pincelada final no quadro. O golpista era Bussunda – comediante que, na condição de integrante de maior popularidade da turma do Casseta & Planeta, se tornaria a figura mais marcante do humor brasileiro entre o fim dos anos 80 e 2006, quando morreu de infarto durante a cobertura da Copa do Mundo da Alemanha, aos 43 anos. O episódio é uma síntese do personagem. Como se constata na recém-lançada biografia Bussunda – A Vida do Casseta (Objetiva; 408 páginas; 49,90 reais), o tipo anárquico da TV era uma extensão de sua contraparte de carne e osso: alguém cujo simples ato de existir já provocava riso. Por causa desse mesmo jeito de ser, ele chegou a ser tido pela família como um caso perdido. Foi, portanto, um perdedor que riu por último.

O jornalista Guilherme Fiuza (autor de Meu Nome Não É Johnny, em que se baseia o filme com Selton Mello) decidiu escrever a biografia de Bussunda ao ler um artigo de seu irmão mais velho, Sérgio Besserman Vianna. Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o economista chamava atenção para a pessoa que havia por trás do comediante. Bussunda era o caçula do cirurgião Luiz Guilherme Vianna e da psicanalista Helena Besserman. Helena, de origem judia, educava os três filhos com o rigor de uma iídiche mama.Os dois primeiros logo se encaminharam, mas o mais novo – que até os 10 anos foi tão magro que não se poderia supor que um dia teria quase 130 quilos – parecia não ter rumo. Na pré-adolescência, Bussunda acordava cedo para, dizia ele, cursar aulas de inglês. A família acabou descobrindo que, na verdade, ele se deitava em um banco no calçadão de Copacabana e continuava puxando um ronco. Os pais tinham ojeriza ao seu apelido, surgido durante temporada em uma colônia juvenil. Como o rapaz odiava banhos, os colegas chamavam-no de "Besserimundo" – junção de Besserman e sujismundo. O nome foi se modificando até chegar à sua forma meio chula.

Helena era uma comunista fanática. Por influência materna, Bussunda se filiou ao Partidão na adolescência, mas logo começaria a se insurgir contra a linha justa. Embora Helena proibisse os filhos de ver TV, por achá-la "alienante", o filho rebelde dava um jeito de assistir às novelas da Globo. Após a invasão do Afeganistão por tropas soviéticas, em 1979, a mãe leu num jornal tosco a seguinte referência ao líder Leonid Brejnev: "Festa Junina no Kremlin: Brejnev convida para queima de fogos e afegãos". E ficou consternada ao constatar que o autor da notícia-piada era seu filho. O jornal era a Casseta Popular – no qual Bussunda encontraria, enfim, uma ocupação capaz de abarcar sua figura. Em torno do panfleto humorístico e de seu similar Planeta Diário já orbitavam os sete nomes do Casseta & Planeta Urgente. Quando despontaram nas duas publicações alternativas, Bussunda e seus colegas simbolizavam a transgressão. Voltavam suas baterias para todas as direções, da ditadura à Igreja. Mas, ao contrário da geração anterior do humorismo, não contemporizavam com a esquerda. Em 1982, na eleição para governador do Rio de Janeiro, Bussunda inventou uma forma singela de fazer campanha contra Leonel Brizola, cujo discurso populista inebriava os pobres. Sempre que encontrava um mendigo dormindo na calçada, arrancava suas cobertas e gritava: "Brizola!"

No fim dos anos 80, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, contratou os cassetas como roteiristas de um humorístico inovador, o TV Pirata. Bussunda e seus comparsas atuaram apenas como redatores, atrás das câmeras. Só em 1992 a trupe ganharia seu programa. E ainda assustava: num encontro com Boni, o dono da emissora, Roberto Marinho, se mostrou horrorizado. "Esse humor é escatológico. Vamos dar uma maneirada", disse. Boni, felizmente, ignorou a ordem do patrão. Estava certo de que a doçura ogra de Bussunda espantaria qualquer rejeição.

O carisma peculiar de Bussunda já despontara antes do programa, no show cômico-musical montado pela trupe do Casseta & Planeta. Bussunda imitava Tim Maia no hit Mãe É Mãe, em que começava dizendo que "mãe é mãe, paca é paca", e emendava a estrofe com uma rima que descrevia as outras mulheres, por sua vez, como – bem, outra coisa. Foi bombardeado pelas feministas. Uma injustiça: era só a forma de o humorista exprimir sua dor de cotovelo. Tímido, Bussunda por anos não conseguiu se declarar à paixonite Angélica. Já tinha desistido da moça quando fez seu desabafo na letra. Ao vê-lo num show, Angélica entendeu na hora: a figura descrita pela rima era ela. Sucumbiu à "cantada" e se casou com o seu autor.

Nas frequentes e inflamadas discussões entre os cassetas, Bussunda era o promotor do consenso. Com a, digamos, institucionalização do grupo, o limite do escracho tornou-se um tema delicado. A trupe foi obrigada a engolir vetos da Globo. A pedido da cantora Sandy, não se permitiu que sua atuação na novela Estrela-Guia (2001) fosse satirizada. Se a atriz Vera Fischer adorou sua versão mocreia, incorporada por Bussunda numa gozação de Laços de Família(2000), Ronaldo Fenômeno a princípio ficou magoado em virar Ronaldo Fofômeno. Bussunda tinha lá seus instantes de autocensura. Eleitor de Lula, ele se decepcionou ao visitar o presidente, em 2003. Não gostou de ver Lula cercado de bajuladores e falando de si próprio num tom senhorial. Ainda assim, no ano seguinte (só abandonaria o lulismo de vez em 2005, com o escândalo do mensalão), Bussunda sustentou que o programa não deveria repercutir a polêmica sobre os hábitos etílicos do presidente. Foi voto vencido. Seu Luiz "Inércio" Lula da Silva será lembrado como uma sátira sem retoques do político. Bussunda ganhou a vida brincando, mas não brincava em serviço.

Fotos Oscar Cabral; Arquivo Pessoal
VOZ DO CONSENSO
A trupe do Casseta & Planeta (à esq.) e Bussunda na infância: de criança magrela a palhaço de 130 quilos

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