CAPÍTULO 1
Quem mandou nascer b...
A porta da sala de Roberto Marinho na TV Globo se abriu e de lá saiu um homem com uma tonelada nas costas. Uma tonelada de res- ponsabilidade e risco. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho tinha recebi- do um aviso do chefe supremo. A mais nova atração da emissora, prestes a estrear, não poderia ir ao ar daquela forma.
O programa chamava-se Casseta & Planeta Urgente, e o doutor Ro- berto não gostara do que vira:
— Nós vamos ter problema. O público vai reclamar da grossura. Esse humor é escatológico. Vamos dar uma maneirada nisso aí — deter- minou o presidente das Organizações Globo a Boni, o diretor de operações.
A denominação do cargo, no caso, escondia a face real de seu ocu- pante. Diretor de operações era o nome fantasia para feiticeiro. Boni era o pajé da Globo. Só uma pessoa confiava mais nele do que Roberto Ma- rinho: ele mesmo. E decidiu driblar o patrão.
Recebeu o alerta, e ao fim do percurso de volta à sua sala já decidira fingir que não ouvira direito. Achava que o doutor Roberto tinha razão quanto à grossura do humor encarnado por sete homens feios, debocha- dos e desconhecidos. Mas algo lhe dizia que aquilo ia dar certo. Como era uma fórmula nova, a aposta teria que ser no escuro.
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As palavras do chefe martelaram na cabeça de Boni naquele março de 1992: “Isso aí é pesado. Esse pessoal é perigoso.” Roberto Marinho estava visivelmente assustado com o conteúdo do novo programa. Ele sabia do que seus autores eram capazes. A revista Casseta Popular e o jor- nal O Planeta Diário, que projetaram seu humor anárquico, tinham forçado todos os limites da abertura política no governo Sarney — ami- go e aliado do dono da Globo:
Presidente está indo longe demais:
Depois da China, Sarney irá à merda — anunciava a manchete do Planeta em julho de 1988.
A batalha no Congresso Nacional pela prorrogação do mandato presidencial também rendera notícia no jornal falso, em abril de 88:
Sarney se queixa à Defesa do Consumidor: Deputados comprados vieram com defeito.” A Igreja, outro pilar do sistema e ponto sensível na programação da
emissora, também já tinha sido profanada pelo grupo. Uma edição da Casseta em 1987 anunciava que “Cristo chegou”. Segundo a “reporta- gem”, Jesus desembarcara no Aeroporto Internacional do Galeão e esta- va irritado: tinha sido retido pela Polícia Federal por sua aparência sus- peita (“cabeludão, barbudo e quase despido”).
Depois do contratempo, o messias tinha sido bem recebido pelos populares no saguão. Com exceção de um grupo de manifestantes da CUT, que estendera uma faixa no balcão da Varig: “Cristo Go Rome.” Nenhuma gráfica aceitou rodar a capa com o “furo” da chegada de Jesus Cristo, mas a edição da Casseta circulou com a reportagem completa nas páginas internas.
Outra cobertura “religiosa” acabaria na polícia. Com a edição do Planeta de dezembro de 85, sob a manchete “Papa bota ovo na Missa do Galo”, os editores do jornal foram parar na delegacia, alvos de uma queixa-crime. Iam ficando por lá mesmo, até surgir o advogado Técio Lins e Silva para explicar o jornalismo surrealista às autoridades.
Era evidente que essa linha editorial desvairada no horário nobre da Globo ia dar problema. E a tensão de Roberto Marinho tinha ou- tro motivo forte. Em apenas três anos, a emissora tinha sofrido dois
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golpes duros da concorrência. A perda de Jô So- ares para o SBT deixara um buraco na faixa de humor da programação. E o sucesso estrondoso da novela Pantanal, da Manchete, expusera uma inédita vulnerabilidade dos campeões de audi- ência. Naquele momento, mais do que nunca, errar não estava nos planos.
E ainda tinha o sexo. Os autores/apresenta- dores do Casseta & Planeta Urgente pareciam ter uma casa de tolerância na cabeça. Não desperdi- çavam qualquer possibilidade de casar o duplo
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Manchete do Planeta Diário em abril de 88: o humor anárquico forçava os limites da abertura política antes de invadir a TV.
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sentido com a canalhice. Cerca de um ano antes, após o romance explo- sivo entre o ministro da Justiça, Bernardo Cabral, e a polêmica dama de ferro da economia, Zélia Cardoso de Mello, o Planeta veio com a manchete:
Bernardo Cabral diz que ministra da Economia deu certo.
Em 1989, a capa da edição mais vendida da Casseta — cerca de 100 mil exemplares — trouxera o então candidato a presidente Fernando Collor, o “caçador de marajás”, nu da cintura para baixo, levemente vi- rado de costas. A matéria anunciava toda a verdade sobre o “caçador de maracujás” — sendo a sílaba intrusa uma delicada referência ao que a foto mostrava. Coisa de moleque.
O problema era que os autores levavam a sério sua molecagem, e ela andara fisgando gente grande. Grande como o feiticeiro da Globo. Boni entrara num show dos redatores da Casseta e do Planeta, no Rio, e ficara cismado.
Nas horas vagas entre os absurdos jornalísticos, eles escreviam ab- surdos musicais — e, num vácuo da programação do pequeno Jazzma- nia, tinham ido parar em cima do palco. A brincadeira mais uma vez fi- cou séria e levou-os ao Canecão. Boni foi ver o que era aquilo.
Era o amadorismo mais profissional que já vira. Pegou-se rindo de um jeito diferente, ao assistir à interpretação radiante de Eu Tô Tristão, um “samba-exumação”:
Eu tô tristão, tô sofrendo pra caralho Eu me fudi, sou carta fora do baralho.
A paródia da alegria carnavalesca enfiava um enredo depressivo no ritmo frenético das escolas de samba. Bizarro. Era o desabafo de um corno consciente, que se percebe chato e “meio mais ou menos”, com tudo para dar errado: “quem mandou nascer babaca”.
A cisma de Boni era que aquele espetáculo trash tinha tudo a ver com televisão. Mas nas discussões internas na emissora, era claro o te- mor geral quanto a estrelar uma Terça Nobre com sete boquirrotos, feios e anônimos. Eles tinham chegado à Globo como parte do time de reda-
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Bussunda (caracterizado como Tim Maia), Hubert, Beto e Helio no palco do Jazzmania: o show Eu Vou Tirar Você Desse Lugar fisgou Boni, o pajé da TV Globo.
tores do humorístico TV Pirata. Depois participaram do programa Dó- ris para Maiores, que misturava jornalismo e humor — onde fizeram suas primeiras aparições na tela como repórteres “especiais”. Dois dire- tores chegaram a propor que fossem testados homeopaticamente em outros programas, para que o público se acostumasse com suas caras (de pau).
Boni não quis saber de homeopatia. Tinha que ser de uma vez só, uma Terça Nobre só deles. Um soco. O diretor Carlos Manga convergiu: “É, põe os caras. Se ficar uma merda, tira do ar.” Mas Boni já tinha combinado tudo com a bola de cristal: não ia ficar uma merda.
Passando ao largo das dúvidas — e da advertência de Roberto Ma- rinho —, o feiticeiro bancou o risco. E a certeza cega de sua aposta tinha nome: Cláudio Besserman Vianna, o Bussunda.
Quando as palavras preocupadas do chefe vinham à sua cabeça, era a figura de Bussunda cantando o “samba-exumação” Eu Tô Tristão que não o deixava recuar. O velho homem de TV estava cada vez mais con- victo de que, ao botar aquele gordo debochado no ar, o que era grossura para o doutor Roberto viraria doçura para o público. Bussunda era sa- cana como uma criança endiabrada. Não ia ofender ninguém.
Essa era a teoria de Boni. Mas chegou o dia da prática. Na noite de 28 de abril de 92, ao assistir à estreia do Casseta & Planeta Urgente, o di- retor de operações sentiu um calafrio. Nada de arrependimento, apenas a certeza de um dia seguinte tumultuado. Aquele “humor escatológico”
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no horário nobre de terça não prometia uma quarta muito nobre. Ia ren- der, no barato, um caminhão de reclamações. Boni precisaria se municiar de argumentos fortes para enfrentar o doutor Roberto.
Na manhã seguinte, seu primeiro ato depois de escovar os dentes foi consultar a Central de Atendimento ao Telespectador, o para-raios das queixas à Globo. Precisava conhecer o tipo predominante de reclama- ção, para saber em qual faixa de público a rejeição ao programa tinha sido maior. Mas o funcionário da CAT não tinha essa informação.
Nem essa, nem outra:
— O atendimento está zerado pro Casseta & Planeta. Ninguém telefonou.
Não era possível. Boni acreditava numa boa receptividade, mas não se lembrava de ter posto uma fórmula nova no ar sem uma queixa se- quer. Checadas, as linhas da central pareciam tecnicamente ok. Ainda estava cedo, era preciso domar a ansiedade e esperar a avalanche, que fa- talmente viria. Com o passar das horas, porém, o placar da CAT teima- va em não sair do zero. E não sairia.
Na sala do diretor de operações, a secretária também não tinha ne- nhum recado para o chefe. Ele não fora procurado pelo cardeal — nem o da Arquidiocese, que ligava de vez em quando, nem o da Globo, que ligava sempre. Com a pista livre, Boni foi verificar os índices de audiên- cia: os cassetas grosseiros e anônimos tinham superado os trinta pontos no ibope. Sucesso total. Com a alma lavada e os números mágicos na mão, o diretor correu à sala de Roberto Marinho.
O chefe ficou feliz com as notícias sobre a ampla aceitação do pú- blico. Mas continuava ressabiado:
— Boni, eu acho pesado. Vai ser sempre assim?
— Não, doutor Roberto. Quando os rapazes ficarem mais à vonta- de vai piorar um pouquinho...
***
Dez anos antes de aparecer na bola de cristal de Boni, Bussunda aparecia no centro de uma discussão familiar. Ou melhor: não aparecia.
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A reunião entre seus pais e seus dois irmãos mais velhos era, deliberada- mente, sem a presença dele. Ali seria selado um pacto de socorro ao caçula-problema.
Cláudio estava para completar 20 anos e seu pai, o cirurgião Luiz Guilherme Vianna, relutava em chamá-lo de Bussunda — apelido que praticamente substituíra seu nome na maioria das relações. Relutava em aceitar o filho, péssimo aluno em tudo, vestindo-se de palhaço para ani- mar festa infantil. Via o garoto sem vocações, sem interesses — e sem querer tê-los. Cláudio queria ser Bussunda na vida. Isto é, não queria nada.
Luiz bem que tentara dar ao filho alguma noção de compromisso. Uns cinco anos antes, lhe dera dinheiro para fazer sua própria matrícula no curso de inglês. O adolescente foi em frente. Na semana seguinte já estava acordando religiosamente no horário da aula matinal, e nunca deixava de ir.
No lugar aonde ia, porém, o único inglês que poderia ouvir seria o de algum turista passeando pela cidade. Bussunda saía de seu aparta- mento em Copacabana e seguia diretamente para um banco no calça- dão da avenida Atlântica. Ali se esticava e retomava tranquilamente o sono interrompido. Se o sol estivesse forte, escolhia um banco de praça na sombra, geralmente no bucólico Bairro Peixoto. Acordava pontual- mente no final da aula, voltava para casa e dormia um pouco mais.
Era tão assíduo no ritual que um dia acabou flagrado por um co- nhecido numa de suas camas públicas. Não foi fácil para o pai saber que o menino andava dormindo na rua como um mendigo. Mas ele de fato não faltara a nenhuma aula — pelo simples fato de que não estava ins- crito em nenhum curso. O dinheiro da matrícula tinha sumido, ao mes- mo tempo em que aparecia, no portador, uma certa habilidade com ta- cos de sinuca. A verba fora realocada para o departamento do lazer.
Matriculado pelos pais no IBEU, Cláudio conseguiu algo raro em cursos de inglês: foi reprovado por faltas. No período seguinte, Luiz Guilherme fez nova matrícula e decidiu passar a levar o marmanjo às aulas. Estacionava o carro, saltava com ele e só ia embora depois de vê-lo dentro da sala. Um dia, em vez de seguir direto para o trabalho, resolveu
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ficar um pouco mais ali pelo quarteirão. Cinco minutos depois, veria o filho reaparecer na portaria e sair andando calmamente pela rua, com a cara mais normal do mundo.
A blitz dos pais foi se intensificando. O garoto tinha ao menos que se conscientizar da fortuna já gasta para ele (não) estudar. Foi assim que, aos 18 anos, Bussunda traçou um objetivo: passar no vestibular para uma universidade pública e gratuita. Aí poderia finalmente matar aula em paz, sem onerar ninguém.
Cumpriu o projeto com afinco e, no segundo semestre de 1981, aos 19 anos, estava no curso de Comunicação Social da Universidade Fede- ral do Rio de Janeiro. Desde o início, uma de suas áreas favoritas no curso era o ponto de ônibus. Ficava ali, na calçada em frente à universi- dade, próximo ao hospital Pinel, de óculos escuros. Não mais para dor- mir, mas para interpretar o papel de cego.
Entrava nos ônibus, geralmente acompanhado do colega Luiz No- ronha, um rapaz alto e bem-falante, que pedia contribuições aos pas- sageiros para ajudar seu “irmão deficiente”. A renda era aplicada em comes, bebes e outras atividades extraclasse dos estudantes de Comunicação.
E era uma boa renda. Bussunda interpretava um cego débil mental, e sua aparência tornava o personagem altamente convincente. Dentes enormes saltando para fora dos lábios grossos (ele se negara a qualquer tratamento ortodôntico), cabelos desgrenhados passando pela cara gor- da até os ombros, barriga volumosa abrindo caminho entre a camisa e a calça, nenhum vestígio de banho. Entre a comiseração e o asco, era me- lhor dar logo um trocado.
Mesmo fora do personagem, a aparência de Cláudio era impactante. E, para a ala mais conservadora da família Vianna, indigesta. Certa vez, ali pelo final da adolescência, ele pegou o mesmo ônibus em que estava Patrícia, sua prima por parte de pai. Era uma menina estudiosa, espor- tista, que fazia balé clássico e andava impecavelmente arrumada. Não via o primo havia um bom tempo e, ao vê-lo embarcar, descalço e mal- trapilho, se encolheu toda. Não era o número do cego, mas não precisa- va. Ao natural mesmo, o ônibus já tinha virado um cubículo para ela.
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Imaginou-o sentando ao seu lado e calculou quantos piolhos pode- riam tentar o salto para sua maria-chiquinha. Ficou invisível e rezou para o seu ponto chegar logo. O primo se aproximou, entrou em seu campo de visão, e ela precisou fingir ostensivamente que não o conhe- cia. Acabou enfim saltando incólume, sem saber se tinha conseguido despistá-lo ou inibi-lo.
Patrícia era filha do engenheiro Marcos Vianna, irmão de Luiz Gui- lherme e, na época, presidente do BNDES. O Brasil ainda estava sob ditadura, e seu pai era figura expressiva do governo militar. A possibili- dade de identificação com o sobrinho Cláudio era, evidentemente, re- mota. Mas havia um ponto importante de ligação entre os dois: o Fla- mengo. Para Marcos, uma paixão. Para Bussunda, uma religião.
Quem dizia que o garoto destrambelhado levava tudo na brincadei- ra estava enganado. Futebol era coisa séria, e o Flamengo era sacerdócio. Antes dos 10 anos de idade ele já era uma enciclopédia rubro-negra. Dizer que sabia a escalação do seu time (e dos outros grandes) em várias épocas seria diminuí-lo. Cláudio sabia o que tinha se passado em cada jogo, e fichava tudo. O estudante sofrível era, no mundo da bola, um catedrático.
E um passional. Chorava com gols de Zico, mesmo em videoteipe. Mas preferia ao vivo, da geral. O setor mais popular do Maracanã, abai- xo do nível do campo, era quase o quintal da sua casa. Batia ponto lá, com sua camisa 5 surrada — que, segundo ele, passou a dar sorte depois que rasgou. Era a camisa do Merica, negro raçudo que um dia, de tão intensa vibração com um gol, cuspiu a dentadura no gramado. Por pou- cos metros, Bussunda poderia ter voltado para casa com a camisa e os dentes do Merica.
No Maracanã, Marcos Vianna ficava muito distante da rota de uma possível dentadura voadora. Poderia estar na tribuna de honra, entre as autoridades, ou nas cadeiras especiais, entre os mais abastados, muito acima do campo e dos geraldinos. Mas houve o dia em que, num jogo não muito cheio, algo que vinha de baixo o atingiu. Era um grito. Vá- rios gritos:
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— Tio Marcos! Tio Marcos!
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Não demorou a distinguir ao longe a figura inconfundível do sobri- nho, que não só o avistara, como resolvera tentar a comunicação impro- vável no estádio gigante. Poderoso e insistente, o chamado chegou ao destino tão nitidamente que um figurão ao lado de Marcos Vianna aler- tou-o, como se estivessem numa sala de estar:
— Acho que estão te chamando ali...
Desviando o olhar do torcedor mulambo que lhe era tão familiar, o tio de Bussunda disfarçou o constrangimento:
— Não, deve ser outro Marcos.
Flamengo à parte, um muro político passava no meio da família Vianna. Os irmãos Marcos e Luiz Guilherme compartilhavam a sólida formação intelectual, a conduta legalista e a firmeza de princípios. Mas o princípio de um era o fim do outro, quando se tratava de ideologia. O engenheiro servia a um regime ao qual o médico era oposição frontal. Mais do que isso, Luiz era casado com uma destacada militante da resis- tência à ditadura.
A psicanalista Helena Besserman Vianna, filiada ao Partido Comu- nista Brasileiro, tivera que se separar momentaneamente dos três filhos na ocasião do golpe militar de 1964. Por razões de segurança, os meni- nos Sérgio, Marcos e Cláudio foram mandados cada um para a casa de um amigo ou parente. Da trincheira que lhe coube, aos 7 anos de idade, Sérgio ouviu a voz exasperada da mãe ao vivo na rádio Nacional, inves- tindo contra os militares: “Gorilas! Gorilas!” Seria presa em seguida.
No início dos anos 70, quando o chumbo era mais pesado, Helena faria história denunciando o médico Amílcar Lobo por conivência com a tortura. A essa altura, o adolescente Sérgio já era membro do “Parti- dão”, caminho que seria seguido pelos irmãos Marcos e Cláudio. Aos olhos “do sistema”, no Maracanã, no ônibus ou na vida, Bussunda era feio, sujo, vagabundo — e comunista. Um zero, literalmente, à esquerda.
Muito menos à esquerda do que Helena gostaria. Ela detestava fute- bol — pelo viés ideológico, naturalmente. Torcera convicta contra o Bra- sil no tricampeonato de 70. Aquele negócio de bola era um mal, uma droga dissimulada, um instrumento de alienação a serviço do regime, e
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estamos conversados. Cláudio lhe dava, portanto, mais esse desgosto. Aficionado por futebol, era um soldado involuntário do sistema.
Para piorar, tinha sido cumprimentado pessoalmente pelo presiden- te Emílio Garrastazu Médici, no auge da ditadura. Os Besserman Vianna saíam do Maracanã numa noite de abril de 1970, ao final do último jogo do Brasil antes da Copa do México (1 a 0 na Áustria, gol de Riveli- no), quando se deu a cena inusitada. Caminhavam próximo a um dos portões de saída, do qual surgiu, abrindo passagem no meio do público, o carro oficial do presidente da República.
Era a época do “Pra frente, Brasil”, do milagre econômico, e o ge- neral-presidente resolveu abrir a janela para saudar os torcedores após a vitória. Luiz Guilherme e seus filhos estavam a dois metros do carro presidencial, e Médici dirigiu seu aceno ao pequeno Cláudio, de 8 anos. Sérgio e Marcos, gaiatos, se encarregariam de manter viva a homena- gem, através dos anos, na memória familiar: “Bussunda foi cumprimen- tado pelo Médici.”
Mas haveria motivo melhor para o constrangimento de Helena. E também dos comunistas históricos que, nos anos de chumbo, eram fre- quentemente escondidos na residência dos Besserman Vianna. Pouco depois da invasão do Afeganistão pela União Soviética, tema importan- te da esquerda no final dos anos 70, Cláudio apareceu em casa com uma notícia estranha.
Tinha nas mãos um jornal meio tosco, cuja manchete fazia referên- cia a Leonid Brejnev, o presidente soviético. A notícia trazia, por assim dizer, um lado diferente da guerra: “Festa Junina no Kremlin: Brejnev convida para queima de fogos e afegãos.”
Entre os autores da publicação, assinava um certo “Bussunda II”. Cláudio admitiu que era ele mesmo, sob pseudônimo, para “confundir a censura”. O tal “jornal” se chamava Casseta Popular e vinha sepultar de vez as esperanças de Helena no futuro do filho como militante comu- nista. Restava saber se ele teria futuro como alguma outra coisa qualquer.
A reunião familiar dos Besserman Vianna em 1982 terminou com um acordo vitalício: em caso de morte ou invalidez de Luiz Guilherme
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Bussunda e Sérgio Besserman, em 1979, no apartamento da família, em Copacabana: se acontecesse algo com os pais, caberia aos irmãos mais velhos sustentar o caçula-problema.
e Helena, Sérgio e Marcos — já despontando como economista e médi- co promissores — assumiriam a responsabilidade pela sobrevivência do irmão caçula. De imediato, seguiriam fazendo o possível para dar-lhe algum rumo, e para minimizar os prejuízos.
Apesar das tentativas, pouco mais de um ano depois Bussunda da- ria um prejuízo insólito à família. Conseguiu o que talvez nenhum ser humano tivesse conseguido antes: perder um piano.
Ao fim de um dia de trabalho no consultório, que ficava no segundo andar do apartamento da família na rua Anita Garibaldi, em Copacaba- na, Helena foi à sala e teve a surpresa: o piano não estava lá. Cláudio sur- giu para tranquilizá-la:
— Vou fazer um show com uns amigos, e o maestro tava precisando de um piano.
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Aquela conversa de “show” e “maestro” podia ser tudo, menos tran- quilizadora. A musicalidade do filho não dava para cantar nem Atirei o Pau no Gato. Mas ele já tinha providenciado o frete, e o piano da família já estava longe, num bar em Botafogo.
Terminada a nobre missão do instrumento musical, Luiz e Helena disseram ao filho que providenciasse imediatamente o transporte de volta. Ele acatou a ordem, mas ressalvou que não precisavam se preocu- par tanto. O piano estava lá, não ia fugir. Era um piano, não uma flauta.
A cobrança dos pais se repetiu no dia seguinte, na semana seguinte, no mês seguinte. Até o dia em que Cláudio resolveu se livrar daquele es- tresse e ir fazer o resgate. Mas não foi possível.
Não era que o piano tivesse fugido: o bar não estava mais lá.
A família Besserman Vianna era unida, tolerante e amava o seu ca- çula. Mas perder um piano era demais. A chapa esquentou, e Bussunda decidiu ir procurar um emprego.
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