Saturday, May 29, 2010

Livros


O terceiro lugar

Hoje um tanto fora de moda mesmo entre os fiéis, o purgatório
representou um lance de criatividade teológica: permitiu que
os cristãos administrassem melhor sua relação com os morto


Jerônimo Teixeira

Fotos AFP, Catedral Notre Dame de Tournai e AKG
TERRÍVEL, MAS PASSAGEIRO
O purgatório em uma iluminura do século XV (extrema esq.), em uma pintura de Rubens e na ilustração de Doré para a Divina Comédia: o espaço indeciso entre a danação e a salvação sempre foi um desafio para as artes visuais


Os virtuosos vão para o céu; os pecadores, para o inferno. A doutrina cristã primitiva não poderia ser mais simples – nem mais assustadora: não há recurso para aqueles que ficam a meio caminho da redenção. Ou, pelo menos, não havia até que, lá pelo século XII, se estabeleceu um terceiro lugar na geografia escatológica: o purgatório. Esse espaço equívoco, ao mesmo tempo prisão e lugar de passagem, é objeto de um estudo abrangente e minucioso do historiador francês Michel Vovelle, As Almas do Purgatório ou o Trabalho de Luto (tradução de Aline Meyer e Roberto Cattani; Editora Unesp; 343 páginas; 65 reais). Expoente contemporâneo da história das mentalidades – escola que se originou nos anos 30, com historiadores como Marc Bloch e Fernand Braudel –, Vovelle toma um caminho na aparência limitado para tema tão metafísico: o estudo das imagens. Mas seu método compensa. Percorrendo iluminuras, afrescos, retábulos, estátuas, telas, gravuras e até histórias em quadrinhos, o autor documenta diferentes inflexões do pensamento religioso, da Idade Média até o século XX. Sobretudo, ele demonstra que o purgatório propiciou formas novas e mais abertas para que os vivos lidem com os que já se foram.

Vovelle toma como ponto de partida o trabalho do medievalista Jacques Le Goff, autor de um estudo sobre as origens da ideia de purgatório. Embora uma vaga passagem sobre a purificação pelo fogo na primeira epístola de São Paulo aos coríntios costume ser lembrada, o fato é que aBíblia não afirma a existência de uma antecâmara purificadora que precede à admissão ao céu. O termo latino purgatorium, com esse sentido, parece ter sido empregado pela primeira vez no fim do século XII, por Pierre le Mangeur, um douto de Paris. No Concílio de Lyon, em 1274, o purgatório já era promulgado como dogma – e confirmado nessa condição no Concílio de Florença, em 1439. O novo conceito ajudou a Igreja a administrar crenças populares antigas e renitentes: a noção supersticiosa de que os falecidos conservam influência sobre os vivos, seja na forma de entes protetores do lar, seja na de assombrações de cemitério. Essas concepções chocavam-se com o esquema binário céu-inferno, no qual não se admite acesso ao mundo dos mortos. O purgatório, ao contrário, é permeável às súplicas dos viventes. O fiel pode rezar pela salvação de seus entes queridos. E ainda pagar indulgência à Igreja, para redimi-los – ou, antecipadamente, para salvar a si mesmo. A reprovação a essa prática está no cerne das dissidências que levariam à Reforma Protestante, no século XVI. Lutero e seus seguidores, aliás, aboliram o purgatório.

A natureza intermediária do purgatório representou um desafio à arte sacra. O italiano Dante, naDivina Comédia, monumental poema cosmológico do século XIV, descreveu-o como uma montanha escarpada, mas tal concepção teve influência limitada sobre as representações visuais (o mais conhecido ilustrador da Comédia, o francês Gustave Doré, é do século XIX). Uma iluminura de um livro de horas do século XV apresenta o purgatório como uma sucessão de castigos, pelo fogo e pela água. Outras representações mostravam demônios fervendo e espetando os penitentes (bem mais raramente, até anjos infligiam castigos). Aos poucos, fixou-se a imagem de um lugar de tormentos, geralmente pelo fogo (mas sem diabinhos), no qual as almas aguardam o providencial anjo que as elevará ao céu – a magistral pintura barroca de Peter Paul Rubens na Catedral de Tournai, na Bélgica, estampada na foto maior desta reportagem, segue esse molde.

No fim do século XIX, um padre francês publicou um livro no qual calculava que, por alto, cada vinte anos de vida em pecado resultariam em três anos no purgatório. Essas interpretações literais do terceiro lugar perderam o sentido no desencantado século XX – mesmo entre os católicos, hoje o purgatório parece fora de moda. Vovelle lembra, porém, que o purgatório, com sua ênfase na salvação individual e sua flexibilidade na relação com os mortos, é menos draconiano do que o além duramente bipartido dos protestantes. O historiador sugere que o sucesso da literatura gótica (e até do cinema de horror B) em países de tradição protestante seria uma espécie de válvula de escape para a repressão imposta ao mundo dos mortos. É a especulação mais arriscada – e duvidosa – de As Almas do Purgatório. Não resta dúvida, porém, de que o terceiro lugar não pode ser fechado com facilidade: mesmo os mais racionalistas têm de fazer as pazes com seus mortos.

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