Saturday, May 22, 2010

Golpes na impunidade


O Supremo pune políticos e o Congresso aprova o Ficha Limpa, que
veta a eleição de condenados em segunda instância. São dois bons
passos rumo à moralidade política. Mas ainda há muito que fazer nesse sentido


Leonardo Coutinho

Miguel Portela/Diário Nordeste
Condenado
Zé Gerardo abriu, espera-se, a fila de punições do Supremo, que ainda deve julgar 231 de seus colegas


O empresário cearense Zé Gerardo tinha tudo para fazer uma carreira política discreta e ser esquecido depois de deixar a vida pública. Eleito deputado três vezes, ele exerceu um único mandato no Executivo: foi prefeito de Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, entre 1997 e 2000. Essa passagem lhe garantiu um lugar na história. Zé Gerardo se tornou o primeiro político a ser condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde a promulgação da Constituição de 1988. No último dia 13, foi sentenciado a pagar uma multa de 50 salários mínimos e a passar dois anos na cadeia, pena que foi convertida em serviços comunitários. O delito de Zé Gerardo foi usar para outras finalidades 500 000 reais reservados para a construção de um açude. Sete dias depois, o Supremo condenou a três meses de prisão pelo mesmo crime o deputado Cássio Taniguchi (DEM-PR). Ex-prefeito de Curitiba, ele pagou precatórios judiciais com dinheiro de obras viárias. Zé Gerardo e Taniguchi ainda podem recorrer das sentenças e, por isso, também podem se reeleger em outubro. O destino político deles poderia ser outro, caso o Senado tivesse referendado o texto do Projeto Ficha Limpa que a Câmara dos Deputados aprovou há dez dias e que impedia todo e qualquer condenado em segunda instância de concorrer a mandatos. Os senadores preferiram dar um passo atrás. Pela versão enviada para sanção presidencial na semana passada, apenas quem for condenado a partir da aprovação final da lei ficará impedido de pleitear cargos eletivos.

A alteração feita pelo senador Francisco Dornelles (PP-RJ) beneficia não só Zé Gerardo e Taniguchi, mas todos aqueles que já receberam alguma condenação. Muitos deles com folhas corridas bem mais longas e escabrosas. Do mesmo partido de Dornelles, o deputado Paulo Maluf (SP) é procurado pela Interpol e pode ser preso se sair do país. Já foi detido por coagir testemunhas e condenado na Justiça paulista por desvio de verba pública. Também responde a processos por formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, ocultação de bens, crimes do colarinho-branco e de responsabilidade. Se o texto original do projeto tivesse sido aprovado na íntegra pelo Congresso, Maluf e outros tão enrolados quanto ele não poderiam concorrer em outubro. Na versão de Dornelles, porém, só valerão as condenações futuras proferidas em segunda instância. A alteração ganhou o apelido de "emenda Maluf" (como se fosse possível emendar Maluf).

Evelson de Freitas/AE


Ainda assim, o Ficha Limpa representa um enorme avanço. A legislação atual permite que políticos processados se candidatem a cargos eletivos até que se esgotem todas as possibilidades de recurso judicial. Eles gozam de uma prerrogativa que não é conferida a nenhum cidadão que se inscreve, por exemplo, num concurso público. Como os expedientes de chicana jurídica são múltiplos - só a quantidade de recursos chega a oito -, a probabilidade de um político ir para a cadeia ou sofrer qualquer outra punição, depois de ser pego com a boca na botija, é praticamente nula. No caso de Taniguchi, por exemplo, o processo se arrastou tanto, mas tanto - treze anos -, que, ao ser condenado, seu crime já havia prescrito. Ou seja, ele permanecerá livre como você, leitor.

O Ficha Limpa reduz o alcance dessas manobras ao tornar inelegível o político condenado em segunda instância. Mas não as elimina. A Associação dos Magistrados Brasileiros(AMB), uma das autoras do projeto Ficha Limpa, afirma que a legislação brasileira, para além dos recursos, admite nada menos que trinta ações protelatórias diferentes. A mais comum consiste em postergar o andamento do processo indicando testemunhas difíceis de ser encontradas. De acordo com o Ministério Público Federal, o deputado Zé Gerardo, por exemplo, lançou mão desse e de outros dezoito expedientes semelhantes. A estratégia de sua defesa fez com que a instrução do processo se estendesse por sete anos. Segundo a AMB, outras ações protelatórias comuns são os pedidos de análises periciais, a substituição de testemunhas e a troca de advogados. "Esses artifícios fazem com que muitos processos se prolonguem por mais de vinte anos. O resultado disso é a impunidade", diz a socióloga Maria Tereza Sadek, da Universidade de São Paulo. Por isso, apenas Gerardo e Taniguchi foram sentenciados pelo Supremo e somente seis políticos foram condenados pelo Superior Tribunal de Justiça, que julga governadores. E, mesmo assim, nenhum foi parar na cadeia.

Foto Tharson Lopes/Jornal do Tocantins


O projeto Ficha Limpa representa um progresso notável também por ter sido concebido e levado adiante por pressão dos pagadores de impostos. Ele chegou à Câmara por iniciativa popular, com 4,6 milhões de assinaturas, colhidas nas ruas, nas empresas e pela internet. Depois de passar pelos deputados, o texto ameaçou encruar no Senado, porque o líder do governo na casa, Romero Jucá (PMDB-RR), se recusava a votá-lo. Jucá, que também responde a processos na Justiça, alegou que a medida não estava entre as prioridades do governo Lula, por ser "um projeto da sociedade". O nome disso, em psicanálise, é "ato falho". Entre os pagadores de impostos, é sem-vergonhice, mesmo. Ele e seus pares se renderam depois dos protestos de várias entidades. Não tiveram saída e fizeram o que precisava ser feito, apesar da "emenda Maluf". A aprovação do Ficha Limpa abre espaço para que sejam discutidas outras alterações na legislação que visem a exterminar a impunidade de políticos desonestos.

Foto Nonato de Souza/Folha da Boa Vista


Para os juízes, a primeira e mais urgente mudança deve ter como alvo as manobras protelatórias. "É preciso reformar a legislação de forma tal a acabar de uma vez por todas com elas", diz o presidente da AMB, Airton Mozart Pires. Sua instituição defende também alterações no instituto do foro privilegiado, que faz com que processos penais envolvendo políticos sejam analisados só em tribunais superiores, e não na Justiça comum. A AMB sugere que o instituto seja, ao menos, flexibilizado. Pela sua proposta, os tribunais passariam apenas a julgar os casos - que seriam instruídos por juízes de primeira instância, assim como ocorre com os dos cidadãos comuns. "O foro privilegiado tornou-se um instrumento em favor da corrupção e dos abusos dos políticos", corrobora o professor de filosofia Roberto Romano. A luta, portanto, continua.

Com reportagem de André Vargas e Vinícius Segalla

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