Saturday, May 08, 2010

A farsa da nação indígena

da Veja

Na Bolívia, país de maioria mestiça, a ideologia que mistura 
nostalgia inca com marxismo levou Evo Morales ao poder. 
Muitos índios começam a perceber o engano


Duda Teixeira, de La Paz

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Erguida em um vale e nas encostas de uma montanha, La Paz foi feita sob medida para as passeatas, sempre em um único sentido: morro abaixo. Nos últimos quatro anos, a capital da Bolívia foi tomada por demonstrações públicas de apoio ao presidente Evo Morales, à nova Constituição nacional, à expropriação de empresas e aos ataques do governo contra a oposição. Nas últimas duas semanas, ao menos sete manifestações desceram as ruas da capital. Desta vez, porém, as palavras de ordem voltaram-se contra o governo. Entre os que andavam vagarosamente com cartazes em punho estavam centenas de cholas, as descendentes indígenas identificáveis pelas vestes típicas que incluem chapéu-coco, anáguas e saia colorida. Eram mães da cidade de El Alto protestando por ter de complementar o salário dos professores de seus filhos. "Evo deve fazer o que está escrito na nossa Constituição, na qual a educação e o respeito aos índios são uma prioridade", diz o dirigente das juntas escolares Ricardo Huarana, um aimará. Enquanto isso, índios de Caranavi, a 160 quilômetros da capital, bloqueavam uma estrada pedindo a instalação de uma fábrica e a renúncia de um ministro.

A presença de índios nos protestos contra o governo é um fenômeno recente na atual gestão presidencial. Seu crescimento está desmoralizando o nacionalismo indígena, ideologia que nas últimas duas décadas ganhou espaço entre os bolivianos e assumiu uma posição central no discurso populista de Evo Morales. Criado em universidades americanas e europeias e transferido para o altiplano com a ajuda de 1 600 ONGs que atuam na Bolívia, o nacionalismo indígena contém a promessa de tirar da miséria o país mais pobre da América do Sul. O argumento básico dessa forma de indigenismo é a necessidade de eliminar o que os seus ideólogos chamam de "exploração secular de brancos europeus contra índios". Para isso, é preciso empenhar-se em uma luta de classes modificada, na qual o proletariado é substituído pelo índio. "Enquanto o marxismo entende que o operário oprimido possui direitos que estão por cima dos direitos dos demais, o indigenismo concede esse privilégio ao índio", diz o espanhol Alberto Carnero, especialista em América Latina e diretor da Fundação para a Análise e Estudos Sociais, em Madri. No lugar do "capitalismo explorador", o nacionalismo indígena boliviano – o movimento também existe no Peru, no Paraguai e no Equador – propõe o retorno ao Collasuyo, uma das quatro regiões do império inca, que ocupava um terço do território boliviano.

Enfeitada com uma colorida embalagem étnica, essa mistura de mito do bom selvagem de Rousseau com conceitos marxistas deu força a uma linhagem de políticos que até recentemente nunca tinham conquistado mais que 10% dos votos em uma eleição. Um deles foi Evo Morales, um representante dos produtores de folha de coca sem vivência em costumes indígenas, embora descendente de aimarás (veja o quadro abaixo). Morales não falava em retorno ao Collasuyo até 2005, depois de ganhar projeção no país como agitador e de ser descoberto pelas ONGs e pelos teóricos do nacionalismo indígena. Eleito naquele mesmo ano e reeleito em 2009, Morales encampou o indigenismo apenas por conveniência. O verdadeiro ideólogo indigenista do governo é o vice-presidente Álvaro García Linera, um professor universitário que integrou o Exército Guerrilheiro Tupac Katari nos anos 90. O grupo misturava o nacionalismo indígena ao maoismo. Após a posse de Morales, muitos bolivianos que se deixaram encantar por essas ideias começaram a perceber que o discurso nativista era uma farsa. Eles reclamam da falta de abertura democrática, da escassez de perspectivas econômicas e da repressão a dirigentes indígenas.

O nacionalismo indígena foi institucionalizado na Bolívia com a aprovação de uma nova Constituição, em novembro de 2007, dentro de um quartel e sem os representantes da oposição. O referendo que endossou a Carta só ocorreu em janeiro de 2009, depois de muitos conflitos. O texto estabelece que a Bolívia é um estado plurinacional constituído por "36 nações originais de camponeses indígenas". "Cumprindo o mandato de nossos povos, com a fortaleza de nossa Pachamama (mãe-terra, a deusa da fertilidade) e graças a Deus, refundamos a Bolívia", diz o preâmbulo da Constituição. São conceitos artificiais, pois a sociedade boliviana é majoritariamente urbana e mestiça (veja o quadro). Os índios representam apenas 17% da população. Os delírios utopistas do documento constitucional, no entanto, são os que menos causam danos à sociedade boliviana. O perigo maior está no fato de o texto promover o caos social interno ao institucionalizar a chamada Justiça comunitária, que não está submetida à Justiça comum. Há séculos, conselhos formados por anciãos indígenas punem ladrões e assaltantes locais obrigando-os a desempenhar trabalhos forçados. Sanções com açoitamentos eram raras até recentemente. Na prática, a inclusão dos julgamentos comunitários na Lei Magna do país teve duas repercussões. A primeira foi propagar linchamentos entre a população, que agora acredita estar livre para fazer justiça com as próprias mãos. Na Bolívia, há em média um linchamento por semana. Pichações com a frase "Ladrão será linchado" podem ser vistas em vários muros e em bonecos pendurados em postes de La Paz e da vizinha El Alto. Os agressores não são presos nem indiciados porque alegam seguir uma tradição autorizada por lei. A segunda consequência foi ter criado uma brutal arma contra a oposição e ex-aliados de Morales.


"LADRÃO SERÁ LINCHADO"
Os adeptos da Justiça comunitária espalham o terror com bonecos enforcados, como este, em La Paz

Ao valorizar a Justiça comunitária, o nacionalismo indígena enfraqueceu a Justiça ordinária, "eurocêntrica", e deu o aval para que militantes do Movimento ao Socialismo (MAS), o partido do presidente, investissem contra seus desafetos impunemente. Com isso, a Bolívia tornou-se uma terra sem lei. Um caso recente é o do aimará Felix Patzi, ex-ministro da Educação do governo Morales. Apesar de estar em vantagem nas pesquisas para as eleições a governador do departamento de La Paz, de abril deste ano, não contava com o apoio de Morales. Flagrado dirigindo bêbado, foi condenado pela Justiça comunitária a fazer 1 000 tijolos. Além disso, teve a candidatura inabilitada. Se Patzi tivesse concorrido ao pleito e vencido, isso tampouco garantiria a sua posse. Em Achocalla, cidade a poucos quilômetros de La Paz que vive da produção de hortaliças, o mecânico Pedro Ninaja, um aimará, venceu as eleições para prefeito com 32% dos votos. O resultado foi divulgado no site da Corte Nacional Eleitoral no dia 10 de abril. Cinco dias depois, os números foram alterados para beneficiar o MAS. Votos de uma urna desapareceram. Ninaja reclamou para a Corte, sem efeito. "As pessoas de Achocalla sabem que é uma trapaça. Se continuar assim, Morales não conseguirá terminar o seu mandato", diz Patzi, que apoiou o cocaleiro nas últimas duas eleições presidenciais. Outras punições anunciadas como sentenças da Justiça comunitária são mais bárbaras. Em 2009, o ex-vice-presidente Victor Hugo Cárdenas, um aimará, teve a casa às margens do Lago Titicaca invadida por militantes do MAS. Ele escapou porque estava dando aulas na capital. Sua filha de 16 anos, seu filho e a esposa tiveram menos sorte e foram golpeados com pau e chicote. "A imagem de que esse governo defende os indígenas está desmoronando mais rápido do que se pensava", desabafa Cárdenas. "Os índios perceberam que a vida não mudou em nada, tampouco conseguiram alguma representatividade política."

A desilusão com a promessa de uma nação indígena pode ser aferida de várias formas. Quando iniciou seu mandato, em 2006, Morales contava com a adesão das quatro maiores organizações de índios do país. Já perdeu o apoio de duas delas: o Conselho Nacional de Ayullus e Markas do Collasuyo (Conamaq) e a Assembleia do Povo Guarani (APG). Uma terceira está dividida. É a Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB). A perda de apoio entre os índios também pode ser confirmada pelo crescente número de bloqueios em estradas, greves e passeatas. Antes de assumir a Presidência, havia 55 protestos por mês no país, muitos deles organizados por Morales. A situação acalmou-se nos anos seguintes, já que o presidente controlava os baderneiros. Neste ano, contudo, os distúrbios populares voltaram a patamares semelhantes aos de 2005. Por fim, nas eleições regionais de abril, apesar de ter garantido o controle da maioria dos departamentos do país, o MAS só conquistou a prefeitura de três das dez maiores cidades. "Morales perdeu o monopólio do voto indígena", disse a VEJA o antropólogo Ricardo Calla, da Universidade da Cordilheira, em La Paz. "Sua antiga base agora está dividida, e há índios que se consideram de direita, de centro e de esquerda." Mais do que o retorno a um passado pré-colombiano idealizado, o nacionalismo indígena angariou fãs ao prometer um futuro de harmonia e prosperidade. Na Bolívia, a ascensão de uma ideologia assim é compreensível. Apesar de serem minoria no país, os índios formam 65% da camada mais pobre da população. Agora, eles começam a tomar consciência do fato de que foram enganados.

 


Aimará e humanista

Fotos Luiz Maximiano


Jaime Apaza, de 70 anos, é dirigente da Confederação Nacional de Nações Indígenas Originárias da Bolívia (Conniob), uma das maiores entidades do gênero do país. Em 2005, fez campanha para Evo Morales. Apaza achava que o cocaleiro iria devolver à Bolívia a grandiosidade do império inca nos tempos pré-colombianos. Logo percebeu que o projeto de nação indígena era só uma desculpa de Morales para centralizar o poder em suas mãos. A desilusão de Apaza começou quando enviou, em 2006, uma carta na língua do seu povo para o novo presidente, oferecendo conselhos como "irmão aimará". Nunca obteve resposta. O líder indígena também se sentiu incomodado com os insultos de Morales contra os brancos. "As palavras de ódio do presidente não estão de acordo com nossas crenças", diz Apaza. "Somos aimarás e humanistas. Não discriminamos ninguém"



Apartheid indígena



Juan Choque, de 37 anos, mora na comunidade Cantapa, em Tiwanaku, com outros 2 000 índios aimarás. O local fica a 20 quilômetros das ruínas da civilização de mesmo nome, extinta antes do surgimento dos incas. O povoado vive da agricultura de subsistência, com plantações de cevada, quinoa e batata. "Quando Morales disse que acabaria com 500 anos de exploração, acreditamos nele", explica. Logo, no entanto, convenceu-se de que a promessa de aumentar a participação política dos índios não passava de uma farsa. Em 2009, Choque tentou criar um partido de oposição, mas foi impedido por policiais a serviço do MAS, que roubaram os livros de assinaturas e o espancaram a coronhadas. "Vivemos em um apartheid social, em que os índios continuam sem representação política", diz Choque



Açoitado até desmaiar



Marcial Fabricano, de 57 anos, é um índio mojeño, uma etnia com 40 000 pessoas. Funcionário da prefeitura de Trinidad, no departamento de Beni, responde pelo atendimento às comunidades indígenas locais. Como os caciques de um desses grupos alegavam que não estavam recebendo as verbas municipais, Fabricano viajou até o povoado para mostrar os comprovantes de repasse. Ao chegar, foi dominado por oito homens do MAS, partido de Morales, e açoitado até desmaiar. Os linchadores anunciaram que haviam cumprido uma sentença da Justiça comunitária, autorizada pela Constituição do país, de 2009. Fabricano passou duas semanas em uma unidade de terapia intensiva em Santa Cruz de la Sierra. "Agora sei que o princípio da Justiça comunitária foi incluído na Constituição para dar respaldo aos atos de violência dos apoiadores de Evo", diz Fabricano. "A verdadeira justiça indígena respeita as pessoas"


Sem independência



Lino Villca, membro da tribo yunga, fundou o MAS com Evo Morales e foi eleito senador da República. Há três meses, Villca criou um partido próprio, com outros cinco ex-parlamentares do MAS, todos indígenas. Mais de 600 pessoas se ofereceram como candidatos do partido, chamado Movimento pela Soberania (MPS). Em quatro prefeituras, o MPS foi impedido de participar do pleito, sem justificativas. Em outras nove, o nome dos candidatos e a foto simplesmente não saíram na cédula. "Os índios são usados por esse governo apenas para fazer passeatas e enaltecer Morales. Se tentam seguir um caminho independente, são reprimidos", diz



Por que Evo não é índio

Mariana Bazo/Reuters

FARSA
Morales ergue os bastões no ritual de posse: dica dos sacerdotes

Evo Morales pode ter cara de índio e nariz parecido com o do condor, como nós. Mas seu cérebro é de branco", diz o aimará Felipe Quispe, que, como o presidente boliviano, se dedicou nos anos 90 a organizar protestos com o objetivo de derrubar governos democráticos. A frase de Quispe ecoa a convicção entre os bolivianos de que Morales, internacionalmente conhecido como "o primeiro presidente indígena da América Latina", não passa de uma farsa. Juan Evaristo Morales Ayma, apesar de ter pai e mãe aimarás, nunca aprendeu a língua dos antepassados e deixou sua cidade natal aos 6 anos de idade. Ele se comunica apenas em espanhol e é solteiro, o que para os aimarás é considerado mau agouro. O desconhecimento dos costumes e das línguas indígenas já rendeu alguns vexames a Morales. Durante um discurso no encerramento das eleições regionais deste ano, na cidade de Achacachi, o público gritava: "Fale em aimará! Fale em aimará!". Morales fez de conta que não era com ele e foi vaiado. Seu candidato à prefeitura da cidade terminou em terceiro lugar na votação. Em janeiro, antes da posse do segundo mandato, o presidente submeteu-se a um ritual para ser ungido guia espiritual indígena, nas ruínas da extinta civilização de Tiwanaku. Após atear fogo às oferendas, deixou o local sem esperar que um sacerdote lesse as mensagens divinas nas chamas, como manda a tradição. Depois, quando algumas crianças lhe entregaram dois bastões cerimoniais, virou-se desnorteado para um sacerdote e perguntou: "O que eu faço com isso?". O que passou pela cabeça de Evo naquele momento é uma incógnita. Na Bolívia, contudo, poucos têm dúvida de que, se ele fosse índio, saberia o que fazer com os bastões... No caso, erguê-los em oferenda aos deuses.


Perseguição aos opositores

07/05/2010 22:25


Ferida aberta

Em 2009, o ex-vice presidente Victor Hugo Cárdenas, um aimará, teve a casa às margens do lago Titicaca invadida por militantes do MAS, o partido de Evo Morales. Ele escapou porque estava dando aulas na capital. Mas sua filha, então com  16 anos, seu filho, a esposa e um sobrinho foram golpeados com paus e chicotes. O crime foi uma retaliação por Cárdenas ter dado declarações contra a nova constituição, aprovada em referendo em 2009. Mesmo dois anos após o ocorrido, sua filha ainda acorda sobressaltada durante a noite com medo de sofrer novas brutalidades. "O terapeuta disse que isso pode durar a vida toda", diz.

O sumiço dos votos

O mecânico de origem aimará Pedro Ninaja concorreu às eleições para prefeito da cidade de Achocalla, nas proximidades da capital La Paz. Ganhou a eleição com 32% dos votos pelo partido local LUS-1S. O resultado foi divulgado no site da Corte Nacional Eleitoral no dia 10 de abril. Cinco dias depois, os números foram alterados para beneficiar o MAS, de Morales. Votos de uma urna desapareceram. Ninaja reclamou para a Corte, sem efeito. "As pessoas de Achocalla sabem que é uma trapaça. Se continuar assim, Morales não conseguirá terminar o mandato", diz ele, que apoiou o presidente nas últimas duas eleições presidenciais.


Entrevista Víctor Hugo Cárdenas
"O índio sou eu"

O líder da oposição boliviana diz que o presidente
Evo Morales é um indígena de fachada e que seu
governo incentiva um racismo às avessas,
contra os não índios


Duda Teixeira

Martins Alipaz/EFE 

"Sou aimará, respeito minhas tradições, mas não posso permitir açoitamentos em praça pública"


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• Os problemas da Constituição boliviana

Vice-presidente da Bolívia no primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, nos anos 90, o professor universitário Víctor Hugo Cárdenas desempenhou papel decisivo na introdução da educação bilíngue nas escolas, que passaram a ensinar tanto o espanhol quanto as línguas indígenas. Aimará nascido em um vilarejo à beira do Lago Titicaca, Cárdenas foi um dos porta-vozes da campanha pela rejeição do projeto de Constituição do presidente Evo Morales. Hoje ele está entre os nomes da oposição com melhores chances para as eleições presidenciais de dezembro. O texto constitucional, que acabou aprovado em referendo em janeiro, dá a 36 etnias indígenas autonomia judiciária para julgar e punir segundo as leis tribais. Cárdenas foi um dos primeiros a sofrer a arbitrariedade dos caciques. No início de março, sua casa no Lago Titicaca foi saqueada por indígenas partidários de Morales. Sua mulher, seus filhos e outros parentes foram golpeados com paus e chicotes. Aos 57 anos, de La Paz, Cárdenas deu a seguinte entrevista a VEJA.

Por que o senhor, um aimará, teve a casa invadida e familiares espancados por um grupo de índios? 
Essa ação não foi perpetrada por pessoas de minha comunidade aimará, mas por ativistas do partido do presidente Evo Morales, o Movimento para o Socialismo (MAS). Os principais instigadores da invasão da minha casa são quatro integrantes desse partido, assessorados por um ex-membro da Assembleia Constituinte da região de Oruro, que fica a 200 quilômetros daqui. Só um deles é de minha comunidade.

Por que eles tomaram essa atitude violenta?
Por trás da agressão está a mão negra do governo. Foi um ato de vingança, uma represália política para tentar calar minha voz. Nos últimos meses, participei de uma intensa mobilização contra a nova Constituição ao lado de profissionais liberais, estudantes e advogados. Visitei todos os estados bolivianos, dei entrevistas para a televisão e jornais. Apesar de não termos sido vitoriosos no referendo, diminuímos bastante o apoio ao governo. Então, eles planejaram essa retaliação.

"Morales é apenas uma inteligente criação do marketing político. Com muita artimanha, converteram um dirigente cocaleiro em um indígena. Proeza semelhante seria transformar o metalúrgico Lula em um jogador de futebol"

Pessoas que invadiram sua casa e atacaram sua família alegaram que estavam em área indígena e agiam segundo a nova Constituição...
Nenhuma reunião de camponeses ou de indígenas pode tomar decisões que não respeitem os direitos fundamentais dos cidadãos bolivianos. No meu caso, essa "justiça comunitária" foi usada como pretexto para atacar minha família. A nova Constituição fragmentou a Justiça comum com a criação de 36 sistemas judiciais indígenas, nos quais não haverá direito de apelação. Mas esses tribunais não podem funcionar ainda, pois é necessário que sejam promulgadas leis para regulamentá-los. Apesar disso, algumas pessoas atuam como se eles já estivessem em vigor.

O senhor pode ser considerado a primeira vítima da nova Constituição boliviana? 
A primeira vítima foi a democracia, pois essa nova Carta criou uma dupla cidadania, em que uns têm mais direitos que outros. O MAS inaugurou um racismo ao revés, em que os indígenas leais ao partido ou moradores de área rural têm mais direitos que os outros. Com isso, eles ganham privilégios e são usados como massa de manobra. Pessoas que não são indígenas passaram a ser odiadas porque são consideradas perversas por natureza. A Constituição fala a todo momento de "nações e povos indígenas originários camponeses". São os índios que vivem no campo e somam 30% da população do país. Os outros 70% que estão nas cidades e são majoritariamente indígenas foram totalmente ignorados. Para o MAS, não há indígenas na cidade. Há uma razão para isso. Os índios rurais são menos informados e podem ser facilmente manipulados.

Como foi o ataque a sua esposa e a seus filhos?
Minha mulher, minha filha de 16 anos, meu filho de 24 e minha cunhada foram apedrejados e golpeados com paus e chicotes. No dia da tragédia, pela manhã, meu sobrinho de 24 anos foi reconhecido na rua, atacado com paus e chicoteado em praça pública. Fizeram isso com ele apenas porque era meu parente. Depois do ataque, minha família esteve hospitalizada por dez dias para tratar contusões e hematomas. Meu filho ficou muito machucado e está com uma hemorragia interna na região do olho esquerdo. Mas o pior dano é o psicológico. Minha filha é menor de idade, uma adolescente. Ela ainda tem dificuldade para dormir. De vez em quando, chora sozinha. Eu estava dando aulas em La Paz e não fui ferido.

A justiça indígena de que fala a Constituição inclui a adoção de castigos corporais, como o uso de chicotes?
As punições com chicotes ainda acontecem em várias comunidades indígenas na Bolívia, o que é lamentável. Por mais que seja indígena, essa prática não respeita os direitos humanos. Sou aimará, respeito minhas tradições, mas não posso permitir açoitamentos em praça pública.

As reuniões para decidir sobre a invasão de sua casa foram previamente anunciadas nos jornais. O que fez a polícia?
As autoridades não deram importância às denúncias e não atenderam minhas chamadas telefônicas horas antes da tragédia. Assim, a polícia não pôde agir a tempo. Naquele sábado, dia 7, o estado boliviano decidiu desproteger minha família. Nos dias seguintes, o governo nos encheu de insultos e declarações cúmplices com a violência desses assaltantes. O vice-presidente Álvaro García Linera afirmou que eu deveria me perguntar o que fiz de errado para merecer tal injustiça. O presidente Evo Morales disse que sou culpado pelo ocorrido por ter mudado meu sobrenome indígena.

Como assim?
Esse governo tenta desqualificar minhas credenciais indígenas, enquanto sustenta que Evo Morales é um índio. Nenhuma das coisas faz sentido. Nos anos 40, meu pai precisou trocar o sobrenome aimará, que era Choquehuanca, para Cárdenas porque queria estudar topografia. Naquela época, o racismo era muito forte e nenhum indígena podia cursar a educação superior. Nunca neguei minha identidade étnica. Em 1992, quando fiz campanha para a Vice-Presidência, falei desse fato publicamente. O curioso é que, assim como meu pai, que precisou mudar de sobrenome no passado, hoje eu também sou vítima de discriminação. Mas, desta vez, os racistas são os índios.

"Ao defender a folha de coca e eliminar mecanismos de controle, Morales dá espaço para que os narcotraficantes possam atuar com liberdade. São eles que se beneficiam quando o país mergulha no caos"

Evo Morales também é um aimará com nome espanhol, não é? 
Apesar de ter pais indígenas, Morales nunca aprendeu sua língua materna, não viveu na comunidade nem pratica seus valores. Não vive no mundo aimará. Também é solteiro, o que para um indígena significa ser uma pessoa pela metade. Morales é apenas uma inteligente criação do marketing político, que foi muito bem aceita no exterior. Com muita artimanha, conseguiram converter um dirigente cocaleiro em um indígena. Proeza semelhante seria transformar o metalúrgico Lula em um jogador de futebol. Essa façanha midiática acabou por usurpar a onda de um crescente movimento indígena autêntico. Morales só adotou o discurso étnico na sua última campanha eleitoral. Graças a ele, temos dois indigenismos hoje na Bolívia. Um que usa os indígenas como força de choque contra opositores e outro que propõe uma democracia intercultural com menor desigualdade e sem injustiças.

Como é a vida em sua comunidade indígena?
Estamos a cerca de 90 quilômetros de La Paz, nas margens do Lago Titicaca. É uma região turística, onde vivem cerca de 100 famílias. A terra não é boa para a agricultura ou para o gado. Então, muitos foram viver nas cidades. Tornaram-se taxistas, comerciantes, carpinteiros ou professores, como eu. Nos fins de semana ou nos dias de festa, muitos retornam para encontrar parentes e celebrar as tradições. Falo aimará, aprendi um pouco de quíchua e estou estudando guarani.

O senhor diria que o espírito democrático, o respeito e a tolerância são característicos da comunidade aimará?
Posso dizer claramente que esses valores são cultivados pela minha comunidade. Mas os indivíduos podem se comportar de diferentes maneiras. Na Bolívia, o MAS criou a imagem de que os indígenas são pequenos anjos. Uma espécie de reserva moral e ética da humanidade. É uma visão etnocentrista, segundo a qual a cultura aimará é superior às outras. Isso é falso. Essa ideia desmoronou, com os múltiplos casos de corrupção e assassinatos que estremeceram o país. Muitos indígenas que entraram no governo se apropriaram inescrupulosamente dos recursos públicos. Um deles é Santos Ramírez, ex-presidente da companhia Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB). Foi preso quando se descobriu que ele estava para receber uma mala com 450 000 dólares. Ramírez era professor rural, fundador do MAS, e braço direito de Morales. É impossível que o presidente não soubesse de suas operações ilícitas. Qualquer instituição pública hoje está impregnada de corrupção.

É necessário defender o cultivo da folha de coca para usos tradicionais e medicinais, como faz Evo Morales no exterior?
Defendo o uso tradicional da folha de coca, em tratamentos medicinais e no chá. Para tais fins são necessários apenas 12 000 hectares de terra. Não mais. É o que está na lei. Esse governo quer ampliar a superfície de plantação de coca para 30 000 hectares. Isso não faria sentido porque o mercado tradicional está muito bem abastecido e não cresce tanto. O que provavelmente se quer é ampliar o cultivo para a produção de cocaína. São folhas diferentes. A que vai para o narcotráfico é maior e mais grossa. Não serve para o uso tradicional. É esse tipo que se encontra em 95% das terras do Chapare, região cocaleira de Morales. Ao defender a folha de coca e eliminar mecanismos de controle, o presidente dá espaço para que os narcotraficantes possam atuar com liberdade. São eles que se beneficiam quando o país mergulha no caos.

O Departamento de Estado americano parabenizou o povo boliviano pelo referendo que aprovou a nova Constituição. Lula afirmou que foi ato decisivo para refundar a democracia no país. O que o senhor acha desse apoio externo à Constituição?
Não conheço essas declarações. Do meu ponto de vista, o referendo não reuniu as mínimas condições de um evento democrático. Os artigos que a compõem mal foram discutidos. Quando a Constituição foi aprovada, primeiramente em um recinto militar fora de Sucre, apenas o índice foi lido. Na votação detalhada que ocorreu em Oruro, também não se discutiu artigo por artigo. Pesquisas de opinião mostraram que sete em cada dez bolivianos desconhecem o conteúdo do texto.

O regime democrático pode sobreviver a governantes como Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa?
Isso depende da decisão de nossos povos. Na Bolívia, iniciamos um movimento cidadão para salvar o país do autoritarismo centralizador e socialista que está sendo aplicado por um grupo de oportunistas. A situação está ficando insustentável. O governo de Morales agravou a divisão social, regional, cultural e ideológica do país. A pobreza piora porque se construiu uma blindagem da economia contra qualquer investimento nacional ou estrangeiro. Sem capital não se pode produzir riqueza para solucionar o desemprego, a fome, a baixa qualidade da educação ou a precariedade dos hospitais. Morales assumiu dizendo que não haveria um único morto por motivos políticos em seu governo. Quase cinquenta pessoas já morreram por questões políticas desde então. É muito difícil que um cenário assim se prolongue. Há um ditado popular que diz que "não há governo que dure 100 anos nem povo que o aguente".

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