Memória: Armando Nogueira
Também tenho sorte. Em junho de 1954, depois da derrota do Brasil para a Hungria na Suíça, eu esperava no vestiário quando ouvi um barulho enorme no túnel. Era uma pancadaria generalizada. Enfiei uma câmera pelo basculante do vestiário e fotografei, sem querer, o Zezé Moreira, que era técnico da nossa seleção, arremessando uma chuteira no rosto do ministro de Esportes da Hungria. Se eu não gostasse tanto da vida, esse seria um bom momento para morrer. Fiquei bastante popular entre os jornalistas. Na madrugada de 5 de agosto, menos de quarenta dias depois, eu estava entrando em casa quando presenciei o atentado contra Carlos Lacerda. Pedi ao Pompeu de Souza, secretário de redação do Diário Carioca, para não fechar a edição. Ele determinou que eu redigisse a reportagem na primeira pessoa do singular. Foi a primeira vez que se utilizou no Brasil essa técnica jornalística. Gosto de política, mas prefiro esporte e, entre todos os esportes, futebol, o mais vibrante universo de paz que o homem é capaz de iluminar com uma bola, seu brinquedo fascinante. Bola é magia, bola é movimento. Brinquedo mágico que se submete suavemente à vontade do homem. Por isso, respeitemos no árbitro, ao menos, o sofrimento de estar ele no meio da brincadeira sem poder brincar. Brincar com a bola é descobrir a harmonia e o equilíbrio do universo. A Terra é redonda (e gira em torno de Pelé). Deus é esférico. A existência de Deus foi confirmada pelas tabelinhas de Pelé e Tostão. O futebol não aprimora os caracteres do homem, mas sim os revela. Futebol é uma religião pagã, em que as pessoas se encontram para adorar a bola. Para entender a alma do brasileiro, é preciso surpreendê-lo no instante de um gol. Nosso povo não canta o hino no dia 7 de setembro, mas sim quando a Seleção joga. É nesse momento que sua manifestação cívica é mais ardente. Amar um clube é muito mais que amar uma mulher. Ao longo da vida, troquei de namorada, sei lá, mil vezes. Jamais trocaria o Botafogo, nem por outro clube nem por nada neste mundo. Um dia, consumido de saudades botafoguenses, escrevi um breve poema sobre Nilton Santos: ‘Tu em campo parecias tantos / e, no entanto - que encanto -, eras um só: Nilton Santos!’. Nilton não era um jogador de futebol, era uma exclamação. Minha memória é um feixe de deslumbramentos. Fui mal acostumado pela contemplação da utopia. Vi Pelé, tão perfeito que, se não tivesse nascido gente, teria nascido bola. Vi Garrincha, para quem a superfície de um lenço era um enorme latifúndio. Driblar com as pernas tortas, e driblar como ninguém, eis o mistério de Garrincha que eu não ouso explicar. E vi Didi, de chute oblíquo e dissimulado como o olhar de Capitu. Vi o Real Madrid dos anos 50, mas vi sobretudo o Santos e o Botafogo da virada daquela década. Nos jornais e na TV, passei a vida procurando palavras, não necessariamente a mais bela, mas a exata. A palavra é como o ser humano: nasce, cresce e morre. Mas tem sobre nós a vantagem do renascer. Sofro tanto no processo da escrita que hoje acho que muito melhor que escrever é ter escrito. A TV conjuga um verbo irresistível que é o verbo mostrar. Fazer o Jornal Nacional tornou-se rotineiro, mas certos fatos obrigam um jornalista a celebrar de joelhos o fato de estar vivo. A chegada do homem à Lua, por exemplo. Ou a vitória do Brasil na Copa de 70. Aquela e a de 58 foram as mais românticas das seleções. Qual teria sido a mais perfeita? Fico com a que triunfou na Suécia. Reluzia e suava. Suava e reluzia. E o ataque juntava nada menos que Pelé e Garrincha. Não sei o que virá depois, mas tenho uma desconfiança: quem morre muda, e quem muda melhora. Tenho notado que os meus amigos que morreram melhoraram com a morte. Eu não a desejo, mas também não vejo na morte o fim do mundo. É só uma grande mudança. E pode ser o começo de outro mundo."(1927-2010)
"Deus é esférico"
Uma colagem de frases do criador do Jornal Nacional resume
a vida, o estilo e a paixão pelo esporte do grande cronistaCarlos Mesquita /Ag. JB
"Achava que estava sem horizonte em Xapuri. Saí do Acre com 17 anos. O Acre é uma magia. É o único estado que é brasileiro por devoção. É uma causa da humanidade. Cheguei ao Rio de Janeiro em setembro de 1944. Nunca tinha visto mar, asfalto, bonde e automóvel. Só tinha conhecido um carro na minha vida. Minha intenção era continuar a carreira de pilotagem, iniciada no aeroclube de Rio Branco. Voar de ultraleve não é um acaso na minha vida. É destino. Troco dois pés em bom estado de conservação por um par de asas bem voadas. Mas tenho a alma, a palma e o coração de jornalista.