E assim se fez Picasso
A exposição mostra que o pintor era mais cuidadoso com seus quadros do que com suas mulheres. A elas, as quais dividia em "deusas ou capachos", Picasso reservou charme ibérico e crueldade narcísica. Com os quadros, era mais detalhista do que se sabia. Pintava-os e repintava-os, mudando formas, ângulos, volumes e, às vezes, até de assunto. Em Arlequim Sentado, que ilustra estas páginas e marcou o início de um estilo próprio do artista, Picasso retrabalhou quase tudo. Em versões anteriores, o encosto do assento do Arlequim era mais baixo e deixava à mostra um pedaço maior do colorido papel de parede ao fundo. A inclinação da cabeça teve vários ângulos, bem como a mão direita, atrás da qual havia um chapéu bicorne. A mão esquerda, que apoia o rosto, chegou a ter todos os dedos dobrados até que o pintor chegasse à posição final. Havia um copo sobre a mesa, depois substituído pelo cinzeiro, e nem a gola nem as mangas do Arlequim tinham o babado de tecido branco-azulado – próprio, na verdade, da fantasia de Pierrô. A novidade se deve ao exame rigoroso feito pelos pesquisadores do Met. Usando técnicas de raios X e reflectografia de infravermelho, os pesquisadores do museu como que "retiraram" a camada mais superficial de tinta e observaram o que está embaixo da pintura definitiva. Foi possível saber até a ordem em que as cores foram sendo aplicadas, desvendando a história de cada quadro. Em A Refeição do Homem Cego, de 1903, auge da fase azul de Picasso, havia originalmente a cabeça de um cachorro no canto inferior esquerdo, depois suprimida inteiramente. Em O Ator, de 1905, que marca o fim da fase azul e o início da fase rosa, Picasso usou o verso de uma tela que trazia uma pintura anterior, retrabalhou pesadamente a posição dos pés da esguia figura central e mudou sua mão direita de lugar, antes mais próxima do queixo. O quadro adquiriu recente notoriedade por um acidente. Uma mulher, em visita ao museu, desequilibrou-se e caiu sobre a tela, abrindo-lhe um rasgo de 15 centímetros. Restaurada, a obra integrará a exposição da semana que vem com uma proteção de vidro. Com 34 pinturas, 58 desenhos e aquarelas, dez placas de cerâmica e duas esculturas, além de centenas de prints, a exposição ficará aberta até 1º de agosto. Não é a maior já feita sobre Picasso, nem inclui as telas que demarcam o início e o fim dos trinta anos considerados os mais geniais de sua carreira – Les Demoiselles d’Avignon, de 1907, e Guernica, de 1937. A mostra reúne só as obras que pertencem ao acervo do Met, daí o nome da exposição – Pablo Picasso no Metropolitan Museum of Art. Mesmo assim, é um conjunto exuberante, que passa por todos os períodos da vida artística de Picasso, indo de um autorretrato desenhado quando ele tinha 18 anos até Nu em Pé e Mosqueteiro Sentado, pintado aos 87 anos. Nesse painel de sete décadas altamente produtivas, pode-se constatar a voracidade com que Picasso transitou pelas influências de outros pintores, absorvendo velozmente o que queria e descartando o que não queria, um canibalismo estético que nenhum outro pintor praticou tão intensamente. Precoce como um Mozart, parecia saber desde sempre aonde queria chegar. Acabou tornando-se uma influência incontornável para os pintores que se seguiram, projetando-se até sobre um estilo que nunca pintou – a arte abstrata. A pintura de Picasso não narra, não contextualiza, não profetiza. Nela, não há uma gota de filosofia, não há um laivo de manifesto. Mesmo em Guernica, sua mais potente denúncia de uma catástrofe política, Picasso não se interessa pelo passado, nem pelo futuro. Sua denúncia, ali, é fotográfica, até nas cores – branco, cinza, preto. Sua pintura parece ser sempre uma tentativa de desvendar o desejo e o sentimento do momento. Nada mais. Mas fez isso com uma força estética assombrosa. Já sobre o seu passado pessoal Picasso teve muito interesse, a ponto de dourar sua trajetória chegando a desmentir a autoria de pelo menos um quadro – Cena Erótica,de 1902 ou 1903, presente na exposição do Met. Com o intenso retrabalho que dedicava aos seus quadros agora descoberto pelos pesquisadores do museu, Picasso, o endiabrado espanhol de Málaga que queria maquiar a própria biografia, revela-se – involuntariamente e talvez por inteiro – como fez a si mesmo.O Metropolitan de Nova York abre nesta semana uma enorme
exposição do espanhol e prova que, mesmo no caso de um
artista tão famoso, há coisas novas a revelar
André Petry, de Nova YorkFotos EFE e Corbis/Latin Stock FAMA EM VIDA
Arlequim Sentado, que Picasso pintou e repintou várias vezes, e o artista na década de 50,
já então festejado e reconhecido
Nem Michelangelo, o gênio supremo do Renascimento que morreu aos 88 anos, foi tão famoso em vida quanto Pablo Picasso. Antes de fazer 60 anos, Picasso já era uma celebridade da pintura ocidental. Quando morreu, aos 91, em abril de 1973, seus quadros eram ícones do modernismo e sua obra era objeto de adoração ou de repulsa. Hoje, ela já foi exposta nos principais museus do mundo e foi vista, no original ou em reprodução, por milhões de pessoas. Para os museus, Picasso representa o mesmo que Angelina Jolie e Brad Pitt representam para os paparazzi – lucro certo. Em Varsóvia, São Paulo ou Bogotá, basta anunciar uma exposição de Picasso que o público faz fila na porta. Por isso, ninguém imaginava que houvesse algo novo para descobrir sobre um pintor tão conhecido. A enorme exposição que o Metropolitan Museum of Art, o Met, de Nova York, abrirá nesta terça-feira, 27, reunindo mais de 300 peças do artista, prova que era engano. Até Picasso tem o que revelar.Fotos Estate of Pablo Picasso/ARS, AP e EFE PAINEL DE UMA LONGA CARREIRA
Três períodos da trajetória de Picasso: à esquerda, a tela A Refeição do Homem Cego, auge de sua fase azul. Ao centro, O Ator, pintura que marca o início da fase rosa. À direita, Nu em Pé..., tela pintada por Picasso quando ele já tinha 87 anos de idade