Como fazer...
A imensidão da hidrografia brasileira tem sido descrita desde o descobrimento. Por volta de 1500, o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón batizou o Rio Amazonas de Mar Doce. Não há no planeta mananciais semelhantes. É graças aos seus rios que o país abastece três quartos de seu consumo de eletricidade. Mas, ao contrário de países como a França, que já construiu todas as suas hidrelétricas, o Brasil utiliza, atualmente, apenas 28% da capacidade de gerar energia de seus rios. A região menos explorada é a Norte, devido aos custos de investir ali. Pois hoje são os rios da Amazônia os mais promissores para comportar grandes usinas e atender às necessidades energéticas futuras do país, utilizando uma fonte menos poluente e mais barata do que opções como termelétricas. Daí a importância de retirar do papel a Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, um projeto de mais de trinta anos. Deve ser saudada, portanto, a notícia de que o governo conseguiu fazer, na semana passada, o leilão que selecionou o consórcio que vai construir e administrar a usina, apesar da gritaria (em boa medida, sem nenhuma base) dos ambientalistas de ocasião. O destino da usina, no entanto, segue incerto. Equívocos do governo nas regras da disputa afastaram os principais grupos privados interessados no projeto. A equipe de Lula corre agora para encontrar uma saída que garanta a execução das obras, recorrendo a bilhões de reais em dinheiro público. Não precisava ter sido assim. O governo poderia simplesmente ter se espelhado no sucesso de dois leilões recentes, das usinas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia. Ambos os projetos, apesar de ter estatais como sócias, são liderados por empresas privadas. Ao contrário do modelo usado na construção de Itaipu e de outras grandes hidrelétricas estatais, as empreiteiras de Jirau e Santo Antônio assumirão os riscos e serão remuneradas pela venda de energia. Esse sistema inverte a lógica da ineficiência e do desperdício que imperava no passado. Para os investidores privados, quanto antes girarem as turbinas, mais cedo a usina fará dinheiro. Tanto é assim que Santo Antônio e Jirau deverão iniciar suas atividades em 2012, pelo menos um ano antes do prazo previsto. Mas Lula, que tanto se guia por metáforas futebolísticas, resolveu mexer em time que estava ganhando. O primeiro equívoco foi ter fixado o teto do preço da energia num valor considerado baixo demais. O resultado foi que as duas construtoras mais capacitadas para executar o projeto, a Odebrecht e a Camargo Corrêa, nem chegaram a entrar na disputa. Ofereceram lances apenas dois consórcios. A surpresa maior veio quando saiu o resultado do leilão. O vencedor foi o grupo formado de última hora, liderado pela estatal Chesf, que reúne empresas com poucas credenciais para um projeto de tamanha magnitude. O principal investidor privado é o grupo Bertin, experiente como frigorífico mas neófito no setor de energia. Saiu derrotado o consórcio mais sólido, no qual estavam companhias do porte da Vale, da Votorantim e da Andrade Gutierrez. "Foi a vitória do consórcio estatal sobre o privado", resumiu a VEJA o diretor de uma grande construtora. O consórcio Norte Energia ganhou a disputa ao oferecer 78 reais pelo megawatt-hora, um deságio de 6% em relação ao teto de 83 reais. Por esse valor, diz o próprio governo, o grupo vencedor obterá uma rentabilidade de 8% ao ano pelo capital investido. Para o setor público, pode parecer bom. Os investidores privados, no entanto, exigiam um retorno de ao menos 11%. Senão, argumentam, é melhor deixar o capital aplicado em títulos de renda fixa, sem correr os riscos intrínsecos a uma obra de proporções semelhantes às do Canal do Panamá, e em plena floresta. Segundo as empreiteiras derrotadas, com o preço oferecido pelo Norte Energia, a rentabilidade do negócio deverá ficar em torno de 5%. Isso porque o custo real da obra deverá ser da ordem de 30 bilhões de reais, bem acima dos 19 bilhões da estimativa oficial. Para Mario Veiga, presidente da PSR Consultoria, o resultado do leilão só pode ser justificado pelo que ele classificou de "taxa patriótica de retorno". Diz Veiga: "Belo Monte é uma ótima usina. Poderia ter sido construída pela iniciativa privada, de maneira rentável e sem tantos subsídios. Se o governo tivesse conduzido o leilão de maneira transparente, haveria competição entre os investidores e muito menos confusão". De fato, houve confusão e subsídios de sobra. Para tornar a obra atraente e, ao mesmo tempo, fabricar uma tarifa final artificialmente barata, o governo abriu a mão. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai bancar até 80% da obra, com um financiamento de trinta anos de prazo e juros decrescentes. Para completar, o consórcio vencedor terá um abatimento de 75% do imposto de renda durante uma década. Todo esse esforço para chegar aos tais 78 reais por megawatt-hora, um valor inferior à realidade do mercado. Sem subsídios, o preço de energia das novas hidrelétricas varia entre 100 e 120 reais por megawatt-hora. Para os consumidores, soa como um ótimo negócio pagar 78 reais por algo que chega a valer até 120 reais. Mas isso não passa de um exercício de autoengano econômico. Afinal, os subsídios saem de impostos pagos pelo consumidor. De sua conta de luz, aliás, quase metade (46% do valor) diz respeito a tributos. Nem mesmo todos os incentivos, no entanto, asseguram o futuro de Belo Monte. As construtoras que possuem credenciais para tocar a obra seguem irredutíveis. O governo diz que as queixas não passam de choro de derrotados, e o projeto sairá de qualquer jeito – e, ao que parece, a qualquer preço. "Nós, enquanto estado brasileiro, enquanto empresa pública, faremos sozinhos o que for necessário fazer", afirmou Lula na quinta-feira. O país precisa de 20 bilhões de reais ao ano para expandir a sua capacidade energética. Deixar esses investimentos nas mãos do governo, como sugere Lula, seria um retrocesso injustificável. Com regras claras e bons projetos, não faltarão investidores privados dispostos a assumir riscos. Foi assim com as usinas do Rio Madeira, exemplo aparentemente esquecido pelo governo.
...E como não fazerEquívocos do governo afastaram os maiores grupos privados
da construção de Belo Monte, no Rio Xingu. No Madeira tinha dado certo.
O que separou o sucesso do fracasso?
Com a colaboração de Júlia de Medeiros, André Vargas,
Larissa Tsuboi e Renata BettiClaus Meyer/Tyba NOVOS TEMPOS
Árvores alagadas pela Usina de Tucuruí, construída nos anos 70: acidente ambiental que não deverá se repetir com Belo Monte• Quadro: Nova fronteira energética • Quadro: A terceira maior do mundo