A ciência na mente de quem a faz
Em Criação Imperfeita, o físico Marcelo Gleiser explica por que
jamais se chegará a uma teoria capaz de explicar tudo o que existe
no universo – e por que nem mesmo faz sentido buscá-la
Thereza Venturoli
Luciana Whitaker/Folha Imagem/Folhapress![]() | NADA DE DOGMAS Gleiser: até a pesquisa mais brilhante está condicionada às ferramentas de que se dispõe em cada momento – e à cabeça do pesquisador |
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• Trecho: Criação Imperfeita |
Um dos estratagemas tradicionalmente usados em textos de divulgação científica é a inclusão de passagens da vida pessoal do autor. Assim, o cientista perde a aura de semideus, a quem é supostamente conferido acesso privilegiado aos bastidores da natureza. Esse "truque" é usado – com sucesso – pelo físico e astrônomo Marcelo Gleiser em Criação Imperfeita – Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza(Record; 368 páginas; 49,90 reais), que dias após seu lançamento ocupa já o sexto lugar na lista de livros mais vendidos de VEJA. Falando de suas fantasias da infância (como a convicção de que era um vampiro) e dos tempos de estudante universitário, quando queria comprovar por experimento a existência da alma, Gleiser expõe de maneira acessível e simpática os meandros de sua trajetória intelectual. Ao mesmo tempo, em prosa clara (muito diferente de seus quadros no Fantástico, os mais intransponíveis já exibidos na TV brasileira), decifra o significado de algumas das mais importantes conquistas da ciência e conduz o não iniciado pelos acertos e desacertos de dois milênios de tentativas de "desvendar a mente de Deus". Desacertos, sim: para Gleiser, aquilo que conhecemos por meio da ciência pode parecer sólido e definitivo – mas está sempre prestes a se desmanchar no ar.
Expoente mundial de sua área, Gleiser é há quase duas décadas docente do Dartmouth College, uma das universidades americanas mais conhecidas por sua produção científica. Mas pleiteia uma ciência mais humilde, que leve em conta aspectos intrínsecos da natureza humana, como a imaginação e a fé. Para ele, tudo o que conhecemos se restringe a uma minúscula fração do que de fato existe. Ainda que disponha de instrumentos poderosos de investigação e medição, a física contemporânea é fruto da mente humana e, portanto, limitada à nossa capacidade de ver e interpretar a realidade. Pode-se afirmar que, se a beleza está nos olhos de quem a vê, a ciência está na mente de quem a faz.
Um desses fatos psicológicos da ciência, por assim dizer, seria a ânsia (que ela divide com as religiões) por encontrar no universo um princípio unitário que imponha a ele padrões simétricos e harmônicos. Na física moderna, essa obsessão está representada pela busca de uma Teoria de Tudo – um arcabouço matemático que explique a origem da matéria e a interação entre as forças fundamentais da natureza. E aí Gleiser levanta uma das bandeiras mais polêmicas de Criação Imperfeita:por que buscar uma Teoria de Tudo?, questiona ele. Que "tudo" é esse, e por que procurar unidade num universo que já se sabe guardar tanta diversidade? Gleiser se sente à vontade para desafiar todo tipo de dogmatismo – da concepção de um universo elegante defendida por Brian Greene aos ataques intransigentes do biólogo Richard Dawkins à religião. Não se trata, argumenta ele, de descartar a importância dos avanços científicos alcançados por essa ilusão de beleza simétrica na natureza. Trata-se tão somente de admitir que a verdade não necessariamente é bela e simples. E que a boa ciência é avessa ao dogma – a esse ou qualquer outro.