Friday, April 02, 2010

A ciência na mente de quem a faz


Em Criação Imperfeita, o físico Marcelo Gleiser explica por que
jamais se chegará a uma teoria capaz de explicar tudo o que existe
no universo – e por que nem mesmo faz sentido buscá-la


Thereza Venturoli

Luciana Whitaker/Folha Imagem/Folhapress
NADA DE DOGMAS
Gleiser: até a pesquisa mais
brilhante está condicionada
às ferramentas de que se dispõe
em cada momento – e à cabeça
do pesquisador


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Um dos estratagemas tradicionalmente usados em textos de divulgação científica é a inclusão de passagens da vida pessoal do autor. Assim, o cientista perde a aura de semideus, a quem é supostamente conferido acesso privilegiado aos bastidores da natureza. Esse "truque" é usado – com sucesso – pelo físico e astrônomo Marcelo Gleiser em Criação Imperfeita – Cosmo, Vida e o Código Oculto da Natureza(Record; 368 páginas; 49,90 reais), que dias após seu lançamento ocupa já o sexto lugar na lista de livros mais vendidos de VEJA. Falando de suas fantasias da infância (como a convicção de que era um vampiro) e dos tempos de estudante universitário, quando queria comprovar por experimento a existência da alma, Gleiser expõe de maneira acessível e simpática os meandros de sua trajetória intelectual. Ao mesmo tempo, em prosa clara (muito diferente de seus quadros no Fantástico, os mais intransponíveis já exibidos na TV brasileira), decifra o significado de algumas das mais importantes conquistas da ciência e conduz o não iniciado pelos acertos e desacertos de dois milênios de tentativas de "desvendar a mente de Deus". Desacertos, sim: para Gleiser, aquilo que conhecemos por meio da ciência pode parecer sólido e definitivo – mas está sempre prestes a se desmanchar no ar.

Expoente mundial de sua área, Gleiser é há quase duas décadas docente do Dartmouth College, uma das universidades americanas mais conhecidas por sua produção científica. Mas pleiteia uma ciência mais humilde, que leve em conta aspectos intrínsecos da natureza humana, como a imaginação e a fé. Para ele, tudo o que conhecemos se restringe a uma minúscula fração do que de fato existe. Ainda que disponha de instrumentos poderosos de investigação e medição, a física contemporânea é fruto da mente humana e, portanto, limitada à nossa capacidade de ver e interpretar a realidade. Pode-se afirmar que, se a beleza está nos olhos de quem a vê, a ciência está na mente de quem a faz.

Um desses fatos psicológicos da ciência, por assim dizer, seria a ânsia (que ela divide com as religiões) por encontrar no universo um princípio unitário que imponha a ele padrões simétricos e harmônicos. Na física moderna, essa obsessão está representada pela busca de uma Teoria de Tudo – um arcabouço matemático que explique a origem da matéria e a interação entre as forças fundamentais da natureza. E aí Gleiser levanta uma das bandeiras mais polêmicas de Criação Imperfeita:por que buscar uma Teoria de Tudo?, questiona ele. Que "tudo" é esse, e por que procurar unidade num universo que já se sabe guardar tanta diversidade? Gleiser se sente à vontade para desafiar todo tipo de dogmatismo – da concepção de um universo elegante defendida por Brian Greene aos ataques intransigentes do biólogo Richard Dawkins à religião. Não se trata, argumenta ele, de descartar a importância dos avanços científicos alcançados por essa ilusão de beleza simétrica na natureza. Trata-se tão somente de admitir que a verdade não necessariamente é bela e simples. E que a boa ciência é avessa ao dogma – a esse ou qualquer outro.


LIVROS

Trecho de Criação Imperfeira, de Marcelo Gleiser

Criação

Ninguém testemunhou o que estava para acontecer.

O "tempo" não existia;

A realidade existia fora do tempo, pura permanência.

O espaço não existia.

A distância entre dois pontos era imensurável.

Os pontos podiam estar aqui ou ali, suspensos, saltitantes.

Entrelaçado em si próprio,

o espaço aprisionava o infinito.

De repente, um tremor;

uma vibração,

uma ordem que nascia.

O espaço pulsava, ondulando sobre o nada.

O que era perto se afastou. O agora virou passado.

O espaço nasceu com o tempo.

Ao falarmos em espaço, pensamos em conteúdo.

Ao falarmos em tempo, pensamos em transformação.

E assim foi.

O espaço borbulhou; o tempo, incerto, iniciou sua marcha.

Da agitação conjunta do espaço e do tempo surgiu a matéria,

expelida de seus poros.

Mas atenção!

Essa não era uma matéria ordinária feito a nossa.

Ela fez o espaço crescer,

inflar, como um balão.

Esse balão é o nosso Universo.

Esse é o mito de criação da nossa geração. A Santíssima Trindade aqui é o Espaço, o Tempo e a Matéria. Não existe um Criador; nenhuma mão divina guia a transição do Ser ao Devir, a emergência do cosmo a partir de uma existência atemporal. O Universo surgiu por si mesmo, uma bolha de espaço vinda do vazio: creatio ex nihilo, a criação a partir do nada. Essa possibilidade nos parece implausível, já que tudo o que ocorre à nossa volta resulta de alguma causa. Será que o Universo é diferente? Será que tudo pode mesmo surgir do nada? Sem uma causa?

A causa que deu início a tudo, o primeiro elo da longa corrente causal que leva da criação do cosmo ao presente, é tradicionalmente conhecida como a Primeira Causa. Para iniciar o processo de criação, nada pode precedê-la: a Primeira Causa não pode ter uma causa; ela tem que ocorrer por si só. O desafio é como implementar essa misteriosa Primeira Causa, como dar sentido a algo que parece violar o bom-senso. Será que a ciência tem uma resposta? As religiões usam os deuses para resolver o dilema. A estratégia funciona bem, já que as leis físicas e o bom senso não são aplicáveis aos deuses. Sendo imortais, são indiferentes aos processos de causa e efeito: os deuses existem, sobrenaturalmente, além do tempo e de suas inconvenientes limitações. No primeiro livro do Antigo Testamento, Gênese, Deus, eterno e onipotente, manipula o "nada" com o verbo e dá origem à luz. Para os judeus, cristãos e muçulmanos, Ele é a Primeira Causa. Tudo vem de Deus, enquanto Deus, onipresente, não vem de lugar algum. Como Deus é perfeito, Sua criação também deve ser perfeita. E assim foi, até que Adão e Eva comeram a famosa maçã da Árvore da Sabedoria. A lição é simples: o desejo e a curiosidade nos expulsaram do Paraíso, e deixamos de ser como deuses. Desde então, como meros mortais, tentamos de todos os modos nos reconectar com o que perdemos, ascender à perfeição divina. Essa busca, mesmo que nobre, já nos iludiu por tempo demais. Precisamos de um novo começo, de uma nova busca.

Segundo algumas teorias modernas que lidam com a origem do espaço, do tempo e da matéria, existe um "nada quântico", uma entidade de onde universos-bebês podem surgir ocasionalmente chamada de "multiverso" ou "megaverso". Em algumas versões, esse multiverso é eterno e, portanto, não criado: o multiverso dispensa a Primeira Causa. Dessa existência cósmica atemporal, flutuações de energia a partir do "nada" ocorrem aleatoriamente, dando origem a pequenas bolhas de espaço, os universos-bebês. A maioria dessas flutuações desaparece, re tornando à sopa quântica de onde vieram. Raramente algumas crescem. Um equilíbrio entre a força da gravidade e a energia armazenada no espaço permite que os universos-bebês surjam sem qualquer custo de energia. Ou seja, é possível, ao menos em tese, criar um universo a partir do nada:creatio ex nihilo. O tempo inicia a sua marcha quando a bolha cósmica sobrevive e começa a evoluir, isto é, quando existem mudanças que podem ser quantificadas. Se nada muda, o tempo é desnecessário.

As teorias que invocam o multiverso propõem que existimos numa dessas bolhas que conseguiu desprender-se da sopa primordial e crescer, produto de uma flutuação energética tão aleatória quanto a responsável por partículas ejetadas de núcleos radioativos. Nossa bolha, nosso Universo com "U" maiúsculo (para diferenciar de universos hipotéticos ou de partes do universo além dos nossos telescópios e instrumentos de observação), aparentemente tem a rara distinção de haver existido por tempo suficiente para que a matéria em seu interior tenha se organizado em galáxias, estrelas e pessoas: segundo essas teorias da cosmologia moderna, somos resultado do nascimento deveras improvável de um cosmo que, por ter as propriedades certas, foi capaz de evoluir a ponto de gerar criaturas capazes de se perguntar sobre suas próprias origens. Certamente, essa visão científica é um tanto distante da criação premeditada e sobrenatural retratada no Gênese. Mas será que ela é, de fato, capaz de abordar a questão da origem de todas as coisas?

Qualquer versão científica da criação (a ser explorada em detalhe mais adiante), inclusive essa valiosa tentativa de abordar racionalmente o problema da Primeira Causa, precisa ser formulada de acordo com princípios e leis físicas: a energia deve ser conservada; a velocidade da luz e outras constantes fundamentais da Natureza devem ter os valores corretos para garantir a viabilidade do nosso Universo. Ademais, um "nada quântico", com sua sopa borbulhante de universos-bebês, não é exatamente o que podemos chamar de um nada absoluto. O problema é que nós, humanos, não sabemos como criar algo a partir do nada. Precisamos dos materiais; precisamos das instruções. Essa limitação torna- se evidente quando tentamos lidar com a primeira das criações, a do Universo. Não se deixe levar por afirmações ao contrário, mesmo que usem termos inspiradores como "decaimento do vácuo quântico", "supercordas", "espaço-tempo com dimensões extra" ou "colisões de multibranas": estamos longe de obter uma narrativa científica da criação capaz de ser empiricamente validada (ou seja, testada por experimentos). Mesmo se, um dia, formos capazes de construir tal teoria, ela deverá ser qualificada como uma teoria científica da criação, baseada numa série de suposições.

A ciência precisa de uma estrutura, de um arcabouço de leis e princípios, para funcionar. Não pode explicar tudo simplesmente porque precisa começar com algo. Como exemplo desses pontos de partida, cito os axiomas dos teoremas matemáticos — afirmações não demonstradas, aceitas como evidentes e, portanto, como verdadeiras — e, nas teorias físicas, uma série de leis e princípios da Natureza, como as leis de conservação de energia e de carga elétrica, cuja validade é extrapolada muito além dos limites em que podemos testá-las. Como essas leis descrevem eficientemente os fenômenos naturais que podemos observar, supomos que continuarão a ser válidas nas condições extremas prevalentes na vizinhança do Big Bang, o evento que marca a origem do tempo. Porém, não podemos ter certeza se nossas extrapolações estão corretas — e cientistas não deveriam afirmar o contrário — até termos confirmação experimental. Como disse o paleontólogo J. William Schopf, da Universidade da Califórnia, "Asserções extraordinárias necessitam de provas extraordinárias".


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