Todos amam Jane. Até os mortos-vivos
Jane Austen morreu em 1817, aos 41 anos. Logo antes de expirar, disse que nada mais necessitava da vida que não a morte. Talvez fosse resignação, talvez fosse vaidade. Em uma célebre carta a um sobrinho, anos antes, a escritora descrevera seu trabalho como o de alguém que pinta "com um pincel finíssimo sobre um pedacinho de marfim, produzindo quase nenhum efeito depois de muita labuta". Era, enfim, uma autora de perfeccionismo intransigente – e, sendo também dona de um senso crítico implacável, é quase certo que estivesse segura da marca que, não obstante a morte precoce, deixaria na literatura: um livro incompleto, por causa da saúde em declínio; cinco romances perfeitos; e um romance sublime, Orgulho e Preconceito. Em seu breve período produtivo, Jane fora já muito festejada. Nos quase 200 anos desde sua morte, alcançou uma envergadura só um pouco menor que a de William Shakespeare: é a escritora obrigatória para todo autor de língua inglesa com alguma ambição estilística (e deveria ser para os de todas as outras línguas também, com lucros consideráveis para o leitor). Quem não conhece a fundo como Jane Austen manejou o idioma não pode aspirar a domá-lo completamente. Das inovações na pontuação à doutrina da precisão despótica no uso do vocabulário, ela estabeleceu o padrão-ouro. Em outro aspecto, ainda não surgiu quem se iguale a ela: no poder misterioso de emitir julgamentos vastos sobre seus personagens com um mero turn of phrase, como se diz: aquele volteio malicioso que se dá a uma frase para que, embora aparente inocência, ela transpire zombaria, ironia ou cinismo (a desaprovação era uma especialidade sua). O melhor romance dessa autora maravilhosa ganhou uma versão um tanto heterodoxa: o absurdamente divertido Orgulho e Preconceito e Zumbis (tradução de Luiz Antonio Aguiar; Intrínseca; 320 páginas; 29,90 reais), que chega às livrarias no próximo dia 22. No livro do americano Seth Grahame-Smith (que assina como "coautor", com Jane), o vilarejo de Meryton é o mesmo do texto original, cheio de intrigas, fofocas e demonstrações desavergonhadas de oportunismo social. Mas a Inglaterra convive também com outra praga: os mortos-vivos que se propagam com particular rapidez durante a primavera, quando as chuvas amolecem o solo e lhes tornam mais fácil emergir de seus túmulos. Elizabeth Bennett, a protagonista, conserva a língua afiada – assim como suas espadas e adagas. Treinada por um mestre de shaolin, ela é uma emérita matadora de zumbis e de quem mais a ofenda. Tanto que, quando conhece o arrogante Mr. Darcy e ele a esnoba num baile, cogita decapitá-lo. Acaba esquecendo a ideia porque os convivas são atacados por uma horda repelente e ela tem de ir à luta. "Planejar como inserir os zumbis na história foi um trabalho penoso. Já escrever as cenas foi a coisa mais deliciosa que fiz", disse a VEJA Grahame-Smith. Não deve ser força de expressão: algumas passagens, como aquela em que a feiosa Mrs. Collins, em plena metamorfose, tenta acertar a direção das colheradas de sopa enquanto sonha em mastigar cérebros, são uma mescla tão bem urdida do linguajar de Jane Austen com o humor pop contemporâneo que dá vontade, a qualquer um, de tê-las escrito. E de lê-las: em uma acolhida que não poderia ser calculada, Orgulho e Preconceito e Zumbis chegou ao terceiro posto na lista de livros mais vendidos do jornal The New York Times. Jane Austen é hoje uma marca extremamente rentável. Além de um sem-número de filmes declaradamente ou não adaptados de seus romances, há centenas de títulos que se aproveitam de seus personagens e histórias. Orgulho e Preconceito e Zumbis, porém, inaugurou uma nova tendência: o mash-up classic, ou "clássico mistureba", em tradução livre. A mesma editora americana, a Quirk Books, lançou Razão e Sensibilidade e Monstros Marinhos; outras empresas embarcaram na onda com títulos que combinam, sobretudo, Jane a vampiros. Como o filão vem rendendo ouro, muitos outros clássicos devem ganhar versões assim dadaístas. Jane talvez se sentisse insultada com essa carinhosa bagunça com seu trabalho tão laboriosamente escrito e reescrito. Ou talvez não. A imitação (e eventual mutilação) é a maior homenagem que se pode prestar a um artista – e nem orgulho nem senso de humor lhe faltavam. Ao contrário do preconceito, que ela só alimentava para com pessoas aborrecidas, mesquinhas ou, que gafe, sem imaginação.Orgulho e Preconceito e Zumbis, que mistura o texto original
de Jane Austen a uma praga de criaturas hediondas, é uma prova
de que a modernidade não afeta os artistas verdadeiramente imortais
Isabela BoscovStock Montage/Getty Image BONS MODOS E SHAOLIN
A heroína Elizabeth Bennet desfere um golpe de kung fu, em uma das ilustrações do romance:
é possível que Jane (à esq.) aprovasse, com orgulho e sem preconceito• Trecho: Orgulho e Preconceito e Zumbis