Saturday, March 20, 2010

Todos amam Jane. Até os mortos-vivos


Orgulho e Preconceito e Zumbis, que mistura o texto original
de Jane Austen a uma praga de criaturas hediondas, é uma prova
de que a modernidade não afeta os artistas verdadeiramente imortais


Isabela Boscov

Stock Montage/Getty Image
BONS MODOS E SHAOLIN
A heroína Elizabeth Bennet desfere um golpe de kung fu, em uma das ilustrações do romance:
é possível que Jane (à esq.) aprovasse, com orgulho e sem preconceito


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Jane Austen morreu em 1817, aos 41 anos. Logo antes de expirar, disse que nada mais necessitava da vida que não a morte. Talvez fosse resignação, talvez fosse vaidade. Em uma célebre carta a um sobrinho, anos antes, a escritora descrevera seu trabalho como o de alguém que pinta "com um pincel finíssimo sobre um pedacinho de marfim, produzindo quase nenhum efeito depois de muita labuta". Era, enfim, uma autora de perfeccionismo intransigente – e, sendo também dona de um senso crítico implacável, é quase certo que estivesse segura da marca que, não obstante a morte precoce, deixaria na literatura: um livro incompleto, por causa da saúde em declínio; cinco romances perfeitos; e um romance sublime, Orgulho e Preconceito. Em seu breve período produtivo, Jane fora já muito festejada. Nos quase 200 anos desde sua morte, alcançou uma envergadura só um pouco menor que a de William Shakespeare: é a escritora obrigatória para todo autor de língua inglesa com alguma ambição estilística (e deveria ser para os de todas as outras línguas também, com lucros consideráveis para o leitor). Quem não conhece a fundo como Jane Austen manejou o idioma não pode aspirar a domá-lo completamente. Das inovações na pontuação à doutrina da precisão despótica no uso do vocabulário, ela estabeleceu o padrão-ouro. Em outro aspecto, ainda não surgiu quem se iguale a ela: no poder misterioso de emitir julgamentos vastos sobre seus personagens com um mero turn of phrase, como se diz: aquele volteio malicioso que se dá a uma frase para que, embora aparente inocência, ela transpire zombaria, ironia ou cinismo (a desaprovação era uma especialidade sua). O melhor romance dessa autora maravilhosa ganhou uma versão um tanto heterodoxa: o absurdamente divertido Orgulho e Preconceito e Zumbis (tradução de Luiz Antonio Aguiar; Intrínseca; 320 páginas; 29,90 reais), que chega às livrarias no próximo dia 22.

No livro do americano Seth Grahame-Smith (que assina como "coautor", com Jane), o vilarejo de Meryton é o mesmo do texto original, cheio de intrigas, fofocas e demonstrações desavergonhadas de oportunismo social. Mas a Inglaterra convive também com outra praga: os mortos-vivos que se propagam com particular rapidez durante a primavera, quando as chuvas amolecem o solo e lhes tornam mais fácil emergir de seus túmulos. Elizabeth Bennett, a protagonista, conserva a língua afiada – assim como suas espadas e adagas. Treinada por um mestre de shaolin, ela é uma emérita matadora de zumbis e de quem mais a ofenda. Tanto que, quando conhece o arrogante Mr. Darcy e ele a esnoba num baile, cogita decapitá-lo. Acaba esquecendo a ideia porque os convivas são atacados por uma horda repelente e ela tem de ir à luta. "Planejar como inserir os zumbis na história foi um trabalho penoso. Já escrever as cenas foi a coisa mais deliciosa que fiz", disse a VEJA Grahame-Smith. Não deve ser força de expressão: algumas passagens, como aquela em que a feiosa Mrs. Collins, em plena metamorfose, tenta acertar a direção das colheradas de sopa enquanto sonha em mastigar cérebros, são uma mescla tão bem urdida do linguajar de Jane Austen com o humor pop contemporâneo que dá vontade, a qualquer um, de tê-las escrito. E de lê-las: em uma acolhida que não poderia ser calculada, Orgulho e Preconceito e Zumbis chegou ao terceiro posto na lista de livros mais vendidos do jornal The New York Times.

Jane Austen é hoje uma marca extremamente rentável. Além de um sem-número de filmes declaradamente ou não adaptados de seus romances, há centenas de títulos que se aproveitam de seus personagens e histórias. Orgulho e Preconceito e Zumbis, porém, inaugurou uma nova tendência: o mash-up classic, ou "clássico mistureba", em tradução livre. A mesma editora americana, a Quirk Books, lançou Razão e Sensibilidade e Monstros Marinhos; outras empresas embarcaram na onda com títulos que combinam, sobretudo, Jane a vampiros. Como o filão vem rendendo ouro, muitos outros clássicos devem ganhar versões assim dadaístas. Jane talvez se sentisse insultada com essa carinhosa bagunça com seu trabalho tão laboriosamente escrito e reescrito. Ou talvez não. A imitação (e eventual mutilação) é a maior homenagem que se pode prestar a um artista – e nem orgulho nem senso de humor lhe faltavam. Ao contrário do preconceito, que ela só alimentava para com pessoas aborrecidas, mesquinhas ou, que gafe, sem imaginação.


LIVROS

Trecho de Orgulho e Preconceito e Zumbis
de Jane Austen e Seth Grahame-Smith

Capítulo 1

É uma verdade_ universalmente aceita que um zumbi, uma vez de posse de um cérebro, necessita de mais cérebros. E nunca tal verdade foi mais inquestionável do que durante os recentes ataques ocorridos em Netherfield

Park, nos quais os dezoito moradores de uma propriedade foram chacinados e consumidos por uma horda de mortos-vivos.

— Meu caro Sr. Bennet

— disse-lhe certo dia sua esposa —, já soube que Netherfield

Park foi alugada novamente?

O Sr. Bennet respondeu que não havia tomado conhecimento disso, e continuou absorto em suas tarefas matinais, que consistiam em afiar adagas e limpar mosquetes — já que os ataques dos não mencionáveis vinham aumentando de forma alarmante nas últimas semanas.

— Pois foi — replicou ela.

O Sr. Bennet não comentou.

— E não quer saber quem se mudou para lá? — disse em voz estridente sua mulher, perdendo a paciência.

— Mulher, estou cuidando dos meus mosquetes. Diga as asneiras que quiser, mas me deixe tratar da defesa de minha propriedade! Tal resposta foi como um convite a prosseguir, o que bastou para a Sra. Bennet.

— Ora, muito bem, meu caro marido. A Sra. Long contou que Netherfield

foi alugada por um jovem de grande fortuna; que ele conseguiu escapar de Londres numa charrete de quatro cavalos tão logo a estranha praga rompeu a linha de defesa de Manchester.

— Como ele se chama?

— Bingley.

Um jovem solteiro com quatro ou cinco mil de renda por ano. Que beleza para nossas meninas.

— Como assim? Será que ele pode treiná-las no manejo da espada e do mosquete?

— Como você pode ser tão maçante? É claro que sabe que estou me referindo a ele se casar com uma delas.

— Um casamento? Em tempos como os que vivemos? Certamente o Sr. Bingleynão tem tal intenção.

— Intenção? Ridículo! Como pode dizer uma coisa dessas? É muito provável que ele se apaixone por uma delas. Portanto, você deve visitá-lo tão logo ele chegue.

— Não vejo razão para isso. Além do mais, não devemos utilizar as estradas mais do que o absolutamente necessário, sob o risco de perdermos mais cavalos e veículos para o infeliz flagelo que tem atormentado tanto nosso bem-amado Hertfordshire ultimamente.

— Mas pense em suas filhas!

— É nelas que penso, mulher tola! Preferiria imensamente que estivessem com a mente concentrada nas artes mortais a toldada por sonhos com matrimônio e fortuna, como obviamente acontece com você! Vá visitar esse Bingley, se acha que deve, embora eu a advirta para o fato de que nenhuma de nossas filhas tem muito o que as recomende; são tolas e ignorantes como a mãe delas, à exceção de Lizzy, que, mais do que as irmãs, desenvolveu aquele instinto matador.

— Sr. Bennet!

Como pode insultar suas próprias filhas dessa maneira? Você se delicia em me envergonhar. Não tem nenhuma compaixão pelos meus pobres nervos.

— Interpreta-me mal, minha cara. Nutro intenso respeito por seus nervos. São meus velhos conhecidos. Pelo menos nestes últimos vinte anos é praticamente tudo sobre o que tenho ouvido falar.

O Sr. Bennet era um misto tão peculiar de perspicácia, humor sarcástico, reserva e autodisciplina que a convivência de 23 anos havia sido insuficiente para que a esposa lhe entendesse o temperamento. Já a mente dela apresentava menos dificuldades à compreensão. Tratava-se de uma mulher de escassa inteligência, pouca instrução e gênio instável. Quando estava insatisfeita com algo, fazia-se de doente dos nervos. Quando estava de fato nervosa — o que era seu estado constante, desde o primeiro surto da estranha praga, ainda em sua juventude —,só obtinha consolo apegando-se a tradições que agora pareciam supérfluas para os demais.

O Sr. Bennet dedicava sua própria existência a manter as filhas vivas.

A Sra. Bennet, a lhes conseguir casamento.

Capítulo 2

O Sr. Bennet foi uma_ das primeiras pessoas a visitar o Sr. Bingley. Aliás, visitá-lo sempre fora sua intenção, apesar de, até o último momento, garantir à esposa que não deveria fazê-lo; assim, até o final da tarde após a visita, ela ainda não tomara conhecimento do ocorrido. E tudo foi revelado da maneira que se segue.Observando sua segunda filha empenhada em entalhar o brasão dos Bennet no punho de uma espada nova, ele subitamente se dirigiu a ela, dizendo:

— Espero que o Sr. Bingley aprecie isso, Lizzy.

— Não estamos em condições de saber do que o Sr. Bingley gosta — disse a mãe da moça em voz ressentida —, uma vez que não chegaremos a visitá-lo.

— Ora, mamãe — replicou Elizabeth —, você esquece que iremos encontrá-lo no próximo baile.

A Sra. Bennet não se dignou a responder, mas, incapaz de se conter, começou a repreender uma das filhas:

— Pelo amor de Deus, Kitty! Pare de tossir desse jeito. Soa como se você tivesse sido contaminada.

— Mãe! Que coisa pavorosa de se dizer, com tantos zumbis nas redondezas

— retrucou Kitty, perturbada. — Quando será esse seu próximo baile, Lizzy?

— De amanhã a quinze dias.

— Ah, sim, precisamente — gritou a mãe. — E será impossível apresentar o Sr. Bingley a minhas filhas, já que eu própria não fui apresentada a ele. Ah, desejaria jamais ter escutado o nome Bingley!

— Lamento ouvir isso — disse o Sr. Bennet.

— Se já o soubesse esta manhã, certamente não teria ido visitá-lo. Que infelicidade. Mas o fato é que fui visitá-lo, e agora não há como escapar às apresentações.

O espanto das mulheres era exatamente o efeito que ele desejava causar; e o da Sra. Bennet superou o de todas as demais. No entanto, quando o primeiro frêmito de alegria passou, ela se apressou a declarar que era exatamente isso o que esperava.

— Que bondade de sua parte, meu caro Sr. Bennet!

Mas eu sabia que acabaria por persuadi-lo. Sabia que ama suas filhas de tal modo que não negligenciaria a necessidade de travar relações com esse senhor. Ora, estou muito contente, e que brincadeira fez de tudo isso, saindo logo cedo,pela manhã, sem dizer nada até agora.

— Não confunda minha indulgência com qualquer relaxamento de nossa disciplina — disse o Sr. Bennet.

— As meninas devem continuar seu treinamento, com ou sem Bingley.

— Claro, claro — apressou-se a assentir a Sra. Bennet.

— Elas devem se tornar mais letais do que nunca.

— Agora, Kitty, pode tossir à vontade — caçoou o Sr. Bennet;

Deixando o aposento enfastiado com os excessos da esposa.

— Que pai magnífico têm vocês, meninas — disse ela quando a porta se fechou. — Alegrias como essa são cada vez mais raras desde que o bom Deus decidiu fechar os portais do Inferno e condenar os mortos a vagar entre nós. Lydia, minha adorada, apesar de você ser a mais jovem, ouso dizer que o Sr. Bingley dançará com você no baile.

— Oh! — exclamou Lydia, deslumbrada. — Isso não me amedronta.

Embora seja a mais jovem, sou a mais experiente na arte de atrair o sexo oposto. Mãe e filhas passaram o restante da noite em conjeturas sobre quãobrevemente o Sr. Bingley haveria de retribuir a visita do Sr. Bennet e tentando decidir quando já seria apropriado convidá-lo para jantar.


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