Friday, February 12, 2010

O Lobisomem, com Benicio Del Toro

Um monstro em cada homem

O Lobisomem tenta reviver o terror gótico reproduzindo
a sua equação original, que funde o horror à paixão e
o desejo à repulsa. Mas aborrece ao se preocupar mais
com os rudimentos da psicanálise do que com a emoção


Isabela Boscov

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O LADO SELVAGEM
Benicio Del Toro, como o lobisomem, cede ao domínio da lua cheia: bem antes de Freud, a ficção gótica já tentava esquadrinhar as facetas racionais e as instintivas do ser humano


Para criar um enredo gótico, é preciso não descuidar de um punhado de elementos. Em primeiro lugar, é necessário ter uma maldição - uma mulher louca encerrada em um quarto que ninguém visita (como em Jane Eyre, de Charlotte Brontë), um experimento que atenta contra as leis da natureza (Frankenstein, de Mary Shelley), uma praga ancestral (como em Drácula, de Bram Stoker), ou fantasmas que talvez sejam reais, talvez apenas produto de uma mente demasiadamente excitável (A Volta do Parafuso, de Henry James). A maldição, claro, exige vilões que a encarnem, e eles exigem vítimas. Nessa categoria, não têm rival as donzelas que, embora vulneráveis, encontram coragem para se juntar ao vilão/herói desfigurado (na alma, no físico ou em ambos) no desfecho. E o mistério que envolve esses personagens deve, obviamente, se desenrolar em um cenário condizente. O qual costuma incluir castelos em ruínas, corredores labirínticos, charnecas batidas pelo vento ou submersas em bruma, ou ainda vielas escuras e úmidas. Esse aparato não é mera convenção. Testado e aprovado no decorrer de mais de dois séculos, ele tem a função de exacerbar as duas emoções essenciais da ficção gótica: o horror e a paixão. Ou talvez fosse mais certo dizer que elas são uma mesma e única emoção. Nos vários períodos que esse gênero atravessou em sua longa vida, esta foi a sua constante mais nítida: a maneira como repulsa e desejo não apenas se concentram em uma mesma figura, como derivam um do outro e se excitam mutuamente. Essa é a equação que O Lobisomem (The Wolfman, Estados Unidos, 2010), em cartaz no país desde sexta-feira, tenta reproduzir. Exímio no que toca à evocação do cenário, o filme é, entretanto, incapaz de provocar um único arrepio que seja. Sem horror, não há paixão nem mistério - e não há gótico.

Embora date de meados do século XVIII, foi no início do século seguinte, com o movimento romântico (veja o quadro), que a ficção gótica ganhou um de seus contornos mais duradouros - o monstro que é também herói, selvagem na sua primeira personificação e atormentado por sua selvageria na outra. Essa é a feição que a conduziria com imenso sucesso popular e notáveis explosões criativas por toda a literatura do século XIX até o cinema do século XX: o gótico precede a psicanálise de Sigmund Freud em várias décadas, mas foi desde o início intensamente freudiano na maneira como identifica impulsos contraditórios na psique humana, no modo como correlaciona o sexo com instintos indomáveis e até no seu efeito prático, de proporcionar uma válvula de escape socialmente aceitável - por meio do horror e da destruição sempre trágica do monstro - para os instintos dos leitores. Não por acaso, os reprimidos vitorianos devoravam a literatura gótica, tanto a de baixa extração como a de grande qualidade.

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ATRAÍDA PELO PERIGO
Emily Blunt, como a donzela que se apaixona pelo lobisomem: o que mais a seduz, o seu lado animalesco, é o que ela deve destruir


Se a psicanálise se tornou uma ferramenta essencial no estudo da literatura gótica feita antes de Freud, ela se tornou algo ainda mais central na ficção gótica que se produziu depois dele: por ser "a interpretação suprema, no século XX, das compulsões e repressões humanas", como observou o crítico Steven Bruhm, o freudianismo virou sua própria matéria-prima. O problema está em como se valer dessa matéria-prima. Pode-se usá-la para manipular o espectador e submergi-lo no mesmo sufocamento e excitabilidade dos personagens, obrigando-o a compartilhar suas experiências - como faz, por exemplo, o Drácula de Francis Ford Coppola. Ou se pode fazer um uso mecânico dessa matéria-prima, como prefere O Lobisomem. O filme do diretor Joe Johnston é pouco mais que um pequeno manual, lindamente ilustrado mas muito esquemático, dos rudimentos da psicanálise: o filho (Benicio Del Toro) tem de matar o pai (Anthony Hopkins, aqui um ator monstruosamente egoísta, que joga contra o time) para se libertar da maldição; a mulher que ama esse ser ao mesmo tempo protetor e bestial (Emily Blunt, linda e instigante como sempre) tem de aniquilar a parte dele que secretamente a atrai, a animalesca, para se defender; e assim por diante, de conceito em conceito. Essa é a lição que se pode tirar dos góticos originais, que não faziam ideia de que Freud estava por vir para dissecá-los - não é preciso saber como funcionam a repressão e o deslocamento, ou o que são as pulsões de sexo e de morte, para estar sujeito a essas forças. Está-se à sua mercê, e pronto. E, no mergulho em um livro ou um filme gótico, em que a imaginação adquire a qualidade de sonho, o que se quer é tão somente sentir esse empuxo do inconsciente. Nunca, de forma nenhuma, deixar que ele aflore ao intelecto. Aí o encanto se quebra e a maldição perde seu poder - como em O Lobisomem.


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