Saturday, February 06, 2010

Força Estranha, de Nelson Motta

Vida real, com tempero

Nelson Motta se revela um bom contista ao misturar
ficção e verdade nas histórias de Força Estranha


Okky de Souza

Eduardo Monteiro
EMOÇÕES TURBULENTAS
Motta: mergulho na alma das mal-amadas de Copacabana nos anos 60


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Ainda celebrando os 140 000 exemplares vendidos de Vale Tudo, sua impagável biografia de Tim Maia, o escritor e produtor musical Nelson Motta mudou o foco de sua literatura e decidiu apostar nos contos. É sua segunda incursão no gênero, embora a primeira ele prefira esquecer - o pueril O Piromaníaco,lançado nos anos 70. O conto contém em si uma armadilha. Autores jovens costumam lançar mão dele como ensaio para voos mais ambiciosos no terreno do romance. Esse é um erro comum. É preciso experiência e malícia para contar em poucas páginas uma boa história, daquelas que permanecem na memória do leitor e o fazem saborear as situações contadas por dias a fio. Motta, autor de três romances entre os treze livros que já publicou (sem contar aquele, o maldito), mostra que alcançou, em seu trabalho, a maturidade necessária para enfrentar a prova de fogo do conto. É o que revelam as dez histórias de Força Estranha (Suma de Letras; 152 páginas; 29,90 reais).

Nos contos de Motta, a ficção vem combinada a situações da vida real, algumas protagonizadas pelo próprio autor. Assim descrito, pode-se supor que a ficção entra em cena sempre que Motta julga necessário apimentar a realidade, um recurso fácil. Não é assim. Uma das histórias mais surpreendentes do livro, em que uma senhora da alta sociedade larga o marido para se juntar ao viúvo da filha, morta há pouco, relata um caso que aconteceu de verdade no Rio de Janeiro.

No conto Os Sentidos da Vida, o pano de fundo é um episódio que, de tão mirabolante, parece fruto da imaginação. Mas a história aconteceu com Motta. No período em que morou em Nova York, o autor perdeu o sentido do olfato durante sete anos, e só o recuperou quando fez sessões de acupuntura para curar dores nas costas. Os contos se passam em várias cidades do mundo, mas os cenários do Rio de Janeiro, onde o paulistano Motta foi criado e vive hoje, são aqueles descritos com maior encanto. Como na história de Alzira e Ivonete, duas mal-amadas de Copacabana nos anos 60, uma viúva e a outra desquitada. Certo dia, elas travam amizade com um garotão na praia, o que desencadeia nelas um turbilhão de emoções. Sim, há um toque sutil de Nelson Rodrigues nas situações imaginadas pelo autor. Mais conhecido por seus trabalhos ligados à música, como compositor, produtor e descobridor de talentos como a cantora Marisa Monte, Nelson Motta mostra com seus contos que também sabe fazer boa literatura.



LIVROS

Trecho de Força estranha, de Nelson Motta

O cavalo

O abandono é uma merda. O ser humano aceita tudo — ofensas, injustiças, maldades —, menos rejeição. É isso que dói. Você sabe que ela não vale nada, que não serve para você, que vai fazer a sua infelicidade, mas mesmo assim você a quer. Pior: só porque ela não o quer mais. Todo mundo sabe: é uma estupidez, um sofrimento atroz e inútil, mas não se consegue evitar. Além de rejeitado, você se sente burro.

Era assim que eu estava quando decidi aceitar a ajuda do amigo Britinho e acompanhá-lo ao terreiro de mãe Josefa, em busca de alívio para minhas dores permanentes e intoleráveis.

Não havia remédios e nem drogas, nem bebedeiras e nem análise que dessem jeito naquilo. Durante várias sessões, repetimos os argumentos à exaustão, a inutilidade de tudo aquilo, a impossibilidade de uma volta — concordávamos que seria apenas adiar um desastre ainda maior —, mas eu saía de lá pior do que havia entrado. Ou igual, o que dá no mesmo. Desisti da análise, não apareci mais, sem aviso.

Não conseguia tirá-la da cabeça. E, vá lá, do coração e da memória. Pensava nela 24 horas por dia, havia mais de três, ou quatro, intermináveis meses. Estava possuído. Dialogava imaginariamente com ela todo o tempo, criando os cenários, as perguntas e respostas, dentro de minha cabeça. Caminhava como um zumbi pela calçada da orla, do Rio Vermelho ao Porto da Barra, vendo-a em todos aqueles corpos jovens tostando ao sol. No meu mundo de sombras, com acamiseta empapada de suor, imaginava-a ali, ao alcance de meus olhos e de minha voz. Mesmo sabendo que ela estava longe, numa praia distante, com seu novo namorado. É dura a vida de corno.

Não havia pior momento para ficar desempregado. Fui mandado embora do jornal sem motivos graves, além de atrasos habituais, desatenção ao trabalho e um certo número de faltas injustificadas. Corte de despesas, oficialmente. De certa forma, eu já esperava por isso. Mas não tão cedo, e muito menos naquele momento. Paciência. Saquei o fundo de garantia, consegui uma graninha do seguro-desemprego e arranjei uns frilas de futebol para um jornal de esportes dePortugal e para um jornalzinho de Feira de Santana.

O maior problema do meu desemprego não é a falta de dinheiro. É o excesso de tempo de que disponho para sofrer com o abandono e a rejeição. Me sinto como um doente. Como deve se sentir um viciado em heroína em síndrome de abstinência. Não sei como é, mas imagino. Uma amiga do ramo me disse que, com a heroína, você não tem vontade de nada, não pensa em nada, não quer nada — sexo, poder, amor, comida, carinho —, você não precisa de nada, se sente em um estado de vazio pleno, de conforto total. O problema começaquando a onda passa. O tombo é proporcional à altura do coqueiro. Talvez por isso, diante de vários oferecimentos, eu nunca tenha experimentado. Vai que eu gosto? Preferi não arriscar. Eu me conheço, ia gostar tanto que não conseguiria me livrar dela nunca mais. Era uma viagem sem volta: tudo que era prazer se tornaria dependência e sofrimento mil vezes multiplicados. Como um apaixonado que é abandonado.

Achei melhor parar com tudo. Menos o álcool. Maconha me deprime, acentua minha paranoia, me leva à confusão mental, a auto críticas devastadoras e a delírios persecutórios. Em vez de afastá-la de minhas lembranças, a faz mais presente e dolorida. Cocaína, nem pensar. A última coisa de que preciso agora é ficar ligado, excitado, aceso e agudo, falando sem parar, falando qualquer besteira para qualquer pessoa, ouvindo estranhos falarem compulsivamente sobre assuntos que não me interessam, quase sempre sobre eles mesmos. Porque só um assunto me interessa. Não posso imaginar pior pesadelo do que ficar acordado, rolando na cama, vendo o dia clarear na janela, pensando nela. Exausto, devastado pela tristeza, querendo desesperadamente apenas dormir. De preferência, sem sonhar. Porque ela também povoa meus sonhos, que, de uma forma ou de outra, são vividos sempre como pesadelos. Ou quando os sonho, ou quando acordo deles.

Remédios, detesto. Evito sempre, mas tentei alguns hipnóticos e antidistônicos no início, com algum sucesso. Eles me davam uma acalmada, mas eu continuava pensando nela obsessivamente, sem descanso. Fazia alguma coisa ou falava com uma pessoa, mas o pensamento estava sempre nela, como uma vida paralela. Um tormento. Não havia remédio capaz de me livrar daquilo. Os antidistônicos serviriam para se tornar mais uma dependência. Não valiam o custo-benefício.

Já o velho e bom álcool cumpre sempre a sua missão: embebeda, tonteia, torna inconsciente, apaga, obnubila. Funciona. Por isso, a sempre bem-sucedida associação entre cornos e bêbados. Beber para esquecer, velho clichê sempre confirmado. Talvez seja o único alívio possível para uma situação como a minha. Prisioneiro de uma obsessão, escravo de uma memória, vítima de meus própriossentimentos. De meu temperamento. De minha paixão pelo excesso. De minha mente conturbada. De minha burrice.

Era assim que eu me sentia quando o Britinho tocou o interfone e desci para irmos ao terreiro de mãe Josefa. Vou lhes poupar de uma longa, ou mesmo breve, descrição do terreiro. Por melhor que seja, soará sempre como macumba para turista ou documentário terceiro-mundista mil vezes visto. Vamos direto ao que interessa.

Parece que dei sorte, porque era o dia da comemoração de um santo, de uma entidade do candomblé, então a noite seria de festa e celebração. Podia até me dar uma aliviada, pensei, a caminho do terreiro, sempre pensando nela, a cada música que tocava no rádio do táxi, a cada paisagem que passava na janela. Britinho contava uma história atrás da outra sobre as vibrações do terreiro e os poderes e feitos de mãe Josefa e de seus orixás. Eu fingia que ouvia.

Abrindo caminho entre um monte de gente que se espremia em frente à porta da casa branca, Britinho conseguiu entrar no salão de piso de cerâmica e nos levar até a corda que separava os devotos do espaço sagrado onde os orixás dançariam incorporados em seus "cavalos", as filhas de santo, chamadas de iaôs. No fundo da sala, como uma rainha africana, mãe Josefa sentava-se majestosa e obesa em um trono pintado de azul e dourado e puxava os cantos de devoção aos orixás, com o coro das filhas de santo. Ao seu lado, quatrohomens repicavam os atabaques com vigor e fé.

Estavam todos de branco e descalços.

Os devotos repetiam os cantos, as filhas de santo se prostravam diante de mãe Josefa e depois deslizavam pelo salão em passos miúdos e ritmados, de olhos fechados, convocando as divindades a se incorporarem em seus corpos. A batida dos atabaques crescia, os cantos se repetiam como mantras nagôs, os fiéis cantavam juntos e acompanhavam com palmas, o salão vibrava.

De repente, uma filha de santo e logo em seguida outra se sacudiram como quem recebe um choque elétrico, fizeram caretas e esgares pavorosos, começaram a dançar de outra maneira e pareciam, não há como negar, possuídas por alguém ou alguma coisa. Tinham recebido um santo. Eram eles que dançavam dentro de seus corpos, que falavam pela sua voz, que olhavam pelos seus olhos. Se não eram eles, então quem seriam? Elas não faziam aquilo sozinhas.

Eu não acreditava em nada disso, fetiçaria barata, engana-trouxa, conversa fiada. Estava ali como quem vai a Lourdes em busca de uma cura milagrosa para uma doença do coração. E, vá lá, da mente.

Bonito, era. Também meio assustador, um pouco selvagem e primitivo demais para o meu gosto. Mas gostava da batida dos atabaques, dos cantos e das danças; cada orixá tem a sua, com seus passos, sua coreografia. Era bonito de ver e ouvir.

A batida dos atabaques e os cantos me hipnotizavam, comecei a sentir uma tonteira, tentei me apoiar no Britinho, mas fui arrebatado para o centro da roda por alguns braços e uma força estranha e desconhecida, a sala começou a girar, as lâmpadas piscavam, o ritmo dos atabaques e o volume das vozes cresciam, ondas de calor emanavam dos fiéis que lotavam o terreiro. Daí para diante não me lembro de mais nada.


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