A escabrosa história das crianças vendidas pelos pais
Quase um mês depois do terremoto, o Haiti já soma 212 000 mortos. Para os que sobreviveram, não há emprego e a comida depende da nem sempre funcional logística das organizações de ajuda humanitária. O desespero e a falta de horizonte estão levando muitos pais ou familiares a entregar crianças a estrangeiros na tentativa de dar a elas algum futuro. Não se conhecem as dimensões dessa prática nem em que bases ela se processa, embora haja indícios de que as famílias em muitos casos recebam dinheiro pelos filhos que cedem para adoção. O que se sabe com certeza é que essas trocas são feitas ao desamparo de qualquer liturgia legal. Isso ficou claro com a prisão, na sexta-feira passada, 29, de dez americanos que tentavam atravessar a fronteira do Haiti com a República Dominicana em um ônibus que dividiam com 33 crianças haitianas com idade entre 2 meses e 12 anos. Os menores não tinham documentos. A operação pareceu inaceitável mesmo em um país com as instituições em frangalhos e corrupção oficializada. Os americanos se identificaram como missionários batistas dispostos a correr riscos para aliviar o sofrimento de órfãos famintos, desidratados e sem esperança. Foram indiciados por sequestro de menores e associação criminosa e podem pegar até quinze anos de prisão. As reais intenções dos missionários são alvo de suspeitas - entre elas a de que a operação tinha objetivo econômico. Laura Silsby é empresária no estado de Idaho, onde há dez anos administra o PersonalShopper.com, um claudicante serviço de internet destinado a orientar mulheres a fazer compras. Silsby responde a diversos processos na Justiça americana por não pagamento de suas dívidas. Ela desembarcou no Haiti e logo em seguida conseguiu apresentar a diversas famílias seu plano, batizado de Refúgio Infantil Vida Nova. Prometia levar as crianças para um orfanato na vizinha República Dominicana. Sua conversa deu resultado. Muitos pais levaram pessoalmente seus filhos ao ônibus e os assentos foram rapidamente preenchidos. O sucesso da operação, soube-se mais tarde, se deveu aos falsos argumentos, todos muito convincentes, usados pelos americanos. Aos pais, disseram que seu trabalho estava autorizado pelo governo haitiano. Deram-lhes a garantia de que poderiam visitar as crianças na República Dominicana quando quisessem. O mais provável é que não tivessem a menor intenção de mantê-las em um orfanato, e sim oferecê-las para adoção como se não tivessem família. Uma evidência forte disso é o fato de os americanos terem declarado aos policiais haitianos que sua carga humana era composta apenas de órfãos. Outra mentira. Pelo menos vinte das crianças embarcadas no ônibus do Refúgio Infantil Vida Nova tinham parentes. Nenhuma das condições exigidas em uma adoção internacional legal foi cumprida pelo grupo. Esse processo, quando feito de acordo com as normas, demora em torno de três anos. As pessoas que querem adotar uma criança são avaliadas por agentes de serviço social. Os parentes biológicos confiam nas instituições e acompanham os trâmites. O grupo flagrado na fronteira haitiana desprezava o caminho legal - demorado e complexo. "A maneira como essas pessoas se conduziram não sugere que estivessem agindo de boa-fé", diz a advogada Maristela Basso, professora da Universidade de São Paulo. As 33 crianças aguardam a decisão sobre seu destino, em Porto Príncipe, capital do Haiti, onde estão sob a guarda da organização europeia Aldeias Infantis SOS. Disse a VEJA Georg Willeit, pedagogo austríaco daquela entidade: "Se o governo autorizar, nós as devolveremos a seus pais. Mas, antes, temos de nos assegurar de que o que se passou com elas não se repetirá". Como todo inferno, o Haiti está cheio de boas intenções.O inferno das boas intenções
A prisão de seus captores americanos pouco significa para o bem-estar
das 33 crianças haitianas que seriam ofertadas ilegalmente para adoção
Duda TeixeiraEliana Aponte/Reuters ALÍVIO MOMENTÂNEO
Crianças que foram resgatadas quando cruzavam a fronteira (à esq.) e americanos presos
(Laura Silsby, à frente): e agora?• Em profundidade: Cobertura da tragédia
no Haiti