Sunday, January 03, 2010

Recordando e vivendo num boteco do Leblon JOÃO UBALDO RIBEIRO

-Esse clima de festa de fim de ano não te deixa meio deprê, não? Acho que mais triste que eu só o peru do Natal.

— Ah, nem me fale, cara, cada ano fica pior. Eu hoje quase nem venho aqui, só vim mesmo porque a Leninha faz questão que eu passe a tarde de sábado no boteco.

— É, você já me contou. Pelo menos isso, companheiro, poucos podem se orgulhar de que a mulher é que insiste que ele vá para o boteco.

E depois tu diz que a Leninha não te compreende.

— Continuo dizendo. Ela me bota pra fora para eu não atrapalhar o carteado dela, pergunte a ela. Mas hoje quase que eu fico em casa mesmo assim.

Eu me trancava no quarto, botava uma ampola de uísque e um balde de gelo perto da cabeceira da cama, ligava a televisão num canal com filme de bicho e ia esquecer tudo, inclusive o carteado, por mim ela podia perder até a casa de Búzios, não estou ligando pra mais nada, essa é que é a verdade.

— Pera aí, também não é assim. Está certo que no fim do ano se cria essa atmosfera meio melancólica, mas tem o outro lado. Mais um Natal na companhia da família, mais um ano se iniciando...

— Menos um ano, você quer dizer.

— Como assim? Não entendi.

— Tu ainda conta um ano a mais no réveillon? Mas é claro que não é um ano a mais, é um a menos, pode ir ticando no calendário da tua vida: menos um, cada dia está mais perto a passagem pela catraca. Você só tem menos dois anos que eu, também pegou latim no ginásio. Eu fui aluno do velho Messias, que era um terror, mas sabia ensinar e até hoje eu sei uns troços em latim. Tu sabe aqueles relojões antigos, de corda e pêndulo? Eles costumavam ter no mostrador uma frase em latim que o velho Messias repetia e a gente não ligava, mas hoje eu ligo muito, todo dia eu me lembro dessa frase.

— Tempus fugit, eu me lembro.

— Não, essa aí é mole, isso qualquer um diz. A que o velho Messias ensinou não se refere ao tempo, se refere às horas, a cada hora. Diz assim: “Omnes feriunt, ultima necat”.

Sacou? Claro que não sacou, tu não foi aluno do velho Messias. Quer dizer: “Todas ferem, a última mata”.

Tu conhece coisa mais terrível? Todas as horas ferem e a última mata, é isso mesmo. Cada horinha que passa é menos uma hora. Menos uma hora, menos uma hora...

— Isola, cara, e tu ainda fica olhando o relógio enquanto fala? — É, a gente pode se enganar como quiser, mas da verdade ninguém escapa.

E nem que eu quisesse escapar, não podia, tudo conspira em contrário, inclusive esse final de ano.

— É, mas por causa da tua interpretação, com essa ideia do menos um.

— Não tem nada de interpretação, é a realidade sem filtro. Esse ano eu fui pela primeira vez à reunião que minha turma de faculdade faz de cinco em cinco anos. Era de dez em dez, mas me disse o Gominhos, que é quem organiza tudo, que de dez em dez dava tempo demais para morrer uma porção, menos griloso é de cinco em cinco. Bem, eu nunca fui a nenhuma, mas este ano, 45 anos de formado, a Leninha também quis ir e aí eu fui. Triste decisão, devia ter continuado sem ir.

— Eu sei como são essas coisas, a gente chega lá e não se lembra nem do nome da maioria.

— Não, comigo não teve esse problema, eu não esqueço o nome de ninguém, lembrei todos, falei com todos. E o problema não era o nome, isso não seria problema, mesmo se eu esquecesse. Mas tu te lembra da Marcinha? — Eu me lembro, o pessoal dizia que ela não tinha calcinha, tinha portajoias, Ipanema inteira vivia aos pés dela, claro que eu me lembro. Deve estar meio velhusca, ainda é bonita? — Um pouco menos que a Brigitte Bardot depois de velha, tu já viu a Brigitte depois de velha? Pois a Marcinha conseguiu embuchar mais que a Brigitte, a cara dela parece um pergaminho de banheiro do Tutancamon.

Uma coisa tristíssima, tudo despencado, eu quase não conseguia olhar.

— É, tem gente que cai muito com a idade.

— Tem gente, não, todo mundo.

Daquelas gatas de nosso tempo, não tem uma que não perca para uma ameixa seca em matéria de aparência, parece praga.

— É, mas elas devem estar dizendo o mesmo de você. Eu também conheci você na juventude com o apelido de Meio Quilo e hoje você tem meio quilo por centímetro cúbico de barriga.

— Olha quem fala! Quem tem mais pelanca no pescoço de toda a turma de nossa faixa aqui é você, parece até aquelas golas roulées de antigamente. E tua barriga já está dando a segunda volta por cima do umbigo, não vem botar banca em cima de mim, não.

— Tudo bem, mas isso só confirma que a gente nota a decadência dos outros e não vê a nossa, a gente tem de se enxergar.

— E por que é que você pensa que eu quase não desci hoje? Eu fiquei me olhando nos espelhos. Na suite lá de casa, os armários embutidos têm espelho nas portas, a porta do banheiro tem espelho, só não tem espelho no teto. Aí eu estava de cueca, me olhando assim e a Leninha sentada na cama e aí eu me avaliei, aquelas pernas finas e sem cabelo, aquela careca, aquela bunda chocha... aí eu falei: “Leninha, vocês mulheres comem qualquer coisa”.

— Graças a Deus, bebamos a isso.

Como é mesmo a frase latina?

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