O diabo ri por último
O Mestre e Margarida (tradução de Zoia Prestes; Alfaguara; 456 páginas; 59,90 reais), de Mikhail Bulgákov - que volta às livrarias depois de mais de uma década, em nova tradução -, está para a ficção russa do século XX como Almas Mortas, de Nikolai Gógol, estava para a do século anterior. Como este, o romance mais recente retrata, pelo viés da sátira, seu país e época de um modo que realismo nenhum seria capaz. Não foi à toa que, principiado em 1928, quando o tempo se fechava na URSS, concluído em 1938, no apogeu do Grande Terror stalinista, e em processo de polimento quando, em 1940, o autor morreu pouco antes de completar 49 anos, o livro permaneceu oculto, em estado de manuscrito, até ser serializado numa revista moscovita nos anos 60. Mesmo assim, sua publicação integral e definitiva teve de esperar até a década de 90. A certa altura da narrativa, o demônio em pessoa afirma que "manuscritos não ardem". A frase confirmou-se no caso do romance. Nascido em Kiev, na Ucrânia, filho de um professor de teologia, Bulgákov estudou medicina e participou da I Guerra como voluntário da Cruz Vermelha. Após a revolução, o jovem médico teve o azar de servir do lado perdedor, o dos "brancos" (ou "contrarrevolucionários"), contingência que o tornaria suspeito aos olhos dos vitoriosos. Isso, bem como traumas de batalha, hipocondria e ataques de pânico, resultou em crises que o impediam frequentemente de trabalhar e até de sair de casa. A carreira literária de Bulgákov (que, em vida, era mais conhecido como dramaturgo) só começou de fato depois dos 30 anos, com um romance sobre a guerra civil que, apesar de, até certo ponto, simpático aos derrotados, agradou, numa versão dramatizada, ao próprio Stálin. Seu talento beneficiou-se da efervescência criativa na Rússia dos anos 20 e 30, a qual, a despeito de ter sido esmagada pelo estado, contou com prosadores geniais como Isaac Bábel, Evgueny Zamiátin e Andrei Platónov. Mas, como escreveu sua obra mais ambiciosa e realizada ciente de que não a veria publicada, o autor pôde dedicar-se a ela sem ter de se preocupar com as restrições oficiais nem se submeter à autocensura. Por mais que se enraíze num lugar e período específicos, O Mestre e Margarida é uma fantasia de alcance universal. A sua trama, ou melhor, tramas, tem como ponto de partida a aparição, num entardecer quente de primavera, do diabo em Moscou, a capital, então, de uma pretensa utopia racionalista que promovia o ateísmo. O demo, acompanhado de figuras esquisitas que incluem um imenso gato preto adepto do xadrez, da vodca e das armas de fogo, ingressa nos círculos literários locais. Serpenteando com humor magistral entre tamanhos e tão diversos despropósitos, o romancista multiplica sabás de feiticeiras num perpétuo carnaval que não apenas satiriza o comunismo e a ideia de uma sociedade perfeita, como põe em xeque toda a condição humana. Como mina que explode décadas após ter sido enterrada, a obra e seu autor conquistaram postumamente uma celebridade que, além de merecida, transpôs as fronteiras de sua terra natal. Consta que Mick Jagger se inspirou em O Mestre e Margarida para compor Sympathy for the Devil. E Salman Rushdie, que, sob sua influência, escreveu Os Versos Satânicos, descobriu, ao ser condenado à morte pelo líder supremo da República Islâmica do Irã, o aiatolá Khomeini, que mexer com o diabo desperta as iras tanto de ateus convictos quanto dos que agem em nome de algum deus.Escrito no período mais férreo do stalinismo, O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, satiriza o comunismo - e a condição humana
Nelson AscherFotos Ria Novosti/AFP e AGK/Latinstock DEMÔNIO EM MOSCOU
Bulgákov (à esq.) e um cartaz de propaganda stalinista: "Os manuscritos não ardem"• Trecho: O Mestre e a Margarida