Sunday, January 10, 2010

Ácido e carinhoso


Um documentário afetivo celebra Paulo Francis - o jornalista
que desancava o senso comum esquerdista e nacionalista


Marcelo Marthe

Nellie Solitrenick
CONTRA A MIOPIA
Paulo Francis: "O Brasil é o único país do mundo em que se leva o comunismo a sério"


Paulo Francis (1930-1997) maneja, desajeitado, uma câmera amadora no seu apartamento em Nova York. Entre closes de seus gatos e de bibelôs kitsch, pontifica: "Estamos aqui fazendo um vídeo caseiro que será bem melhor do que qualquer filme brasileiro feito até hoje". Parte do material de arquivo revelado no documentário Caro Francis (Brasil, 2009), a tirada doméstica ilustra o que fez do personagem o jornalista mais brilhante de sua geração. Em suas colunas nos jornais e comentários na Rede Globo, Francis desancava as falácias do senso comum esquerdista e nacionalista - incluindo aí o culto ao cinema financiado pela Embrafilme. Em cartaz em São Paulo às vésperas do 13º aniversário de sua morte, no mês que vem, Caro Francis tem imperfeições como documentário. A maior delas: sonega informações básicas para o espectador se situar sobre certas passagens da trajetória de Francis. Mas isso não obscurece seus méritos. Dirigido por Nelson Hoineff, amigo do jornalista (e que recentemente abordou o apresentador Chacrinha em Alô, Alô Terezinha), Caro Francis é um filme afetivo. Apresenta o sujeito generoso, algo tímido e sempre gentil com os amigos que havia por trás do comentarista desabusado.

Francis começou sua carreira no teatro, nos anos 50. Ator, diretor e, finalmente, crítico, rompeu com a amenidade então vigente no meio teatral. "Toda cultura tem de ter conflito. É preciso haver gente que ataque autores e atores", dizia. Francis era, àquela altura, um trotskista. No fim dos anos 60, foi preso pela ditadura militar. Mas o fato fundamental de sua trajetória foi a mudança para os Estados Unidos, em 1971. A partir daí, passaria por uma conversão à racionalidade, processo para o qual contribuiu também uma viagem à União Soviética. "Em um dia, você compreendia que aquilo só funcionava na base da polícia", concluiu. Exasperava-se com a miopia da esquerda nacional: "O Brasil é o único país do mundo em que se leva o comunismo a sério".

O filme traz depoimentos até de gente que esteve em sua mira, como o pernambucano Gustavo Krause. Ao ser nomeado ministro da Fazenda, em 1992, ele foi xingado de "jeca" e "provinciano" - para ira de muitos nordestinos. Hoje, o próprio Krause reconhece o valor da incorreção política de seu algoz. "Figuras como Paulo Francis fazem muita falta no Brasil", diz. O documentário se debruça também sobre o embate final de Francis. Em 1996, quando suas intervenções intempestivas movimentavam o programa Manhattan Connection (GNT), ele declarou que a diretoria da Petrobras formava "uma quadrilha" e tinha "contas na Suíça". A leviandade motivou uma ação judicial do então presidente da estatal, Joel Rennó, e outros seis diretores. Para pessoas próximas ouvidas em Caro Francis, como a viúva Sonia Nolasco, o estresse desencadeado pelo processo contribuiu para o ataque cardíaco que o levaria à morte, aos 66 anos. Ele estava no auge da carreira. E, havia um bom tempo, já tinha extrapolado a condição de jornalista. Paulo Francis convertera-se em um personagem da cultura brasileira, tão fundamental quanto divisivo: ou se era contra ou a favor de suas posições. O documentário é uma oportunidade de se deliciar de novo com sua acidez.

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