Saturday, January 30, 2010

A morte de J.D. Salinger

Formador de leitores

Morto na semana passada, depois de mais de quarenta anos
de reclusão e silêncio, J.D. Salinger criou Holden Caulfield,
o personagem imortal que até hoje seduz jovens para a literatura


Jerônimo Teixeira

AP
BRILHANTE E EXCÊNTRICO
Salinger, em uma de suas raras
fotos: "Há uma paz maravilhosa
em não publicar"

Jerome David Salinger foi um exímio contista, capaz de profunda observação social em poucos traços. Também tinha um ouvido afinado para os ritmos da fala cotidiana – seus personagens se expressam com um coloquialismo que poucos estilistas alcançam. Todas essas são qualidades de um bom escritor. Mas Salinger foi além. Ele pertence ao restrito grupo de autores cuja assinatura se imprime não só no campo literário, mas na cultura de seu tempo. Esse feito não se deve a seu estilo ou a uma obra em particular. A grande realização de Salinger foi a criação de um personagem: o adolescente Holden Caulfield, desajustado protagonista e narrador de O Apanhador no Campo de Centeio, lançado em 1951. Inquieto, desconfiado da autoridade adulta mas igualmente deslocado entre os colegas de sua idade, Caulfield deixa a escola de elite de onde foi expulso por causa das notas muito ruins para fazer uma peregrinação incerta e perigosa por Nova York. Errante, sem lugar no mundo, ele representava as angústias difusas dos jovens no pós-guerra. E segue encontrando leitores entre os adolescentes até hoje. Sua inquietude e sua revolta sem objeto anteciparam a cultura jovem contestadora das décadas seguintes. De J.D. Salinger, o criador de Caulfield, pode-se dizer, sem medo do exagero ou do clichê, que deu voz à sua geração – e depois escolheu se calar: por mais de quarenta anos, viveu recluso, sem publicar novos livros, em Cornish, cidade do estado de New Hampshire. Foi lá que ele morreu, na quinta-feira 28, aos 91 anos.

Uma nota da agência literária de Salinger, Harold Ober Associates, informou que o escritor morreu de causas naturais, e que, afora uma fratura na bacia no ano passado, esteve sempre com boa saúde até um súbito declínio nas últimas semanas. O isolamento de Salinger, parte indissociável de sua mística, teve início em 1953, quando o escritor, até então vivendo em Nova York, sua cidade natal, se mudou para Cornish. Depois de O Apanhador..., publicou só mais três livros – Nove Estórias (1953); Franny & Zooey (1961); e Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour: uma Apresentação (1963). Uma das poucas declarações – se não a única – que fez à imprensa foi para justificar seu esforço para impedir a publicação de uma coletânea de contos não autorizada, em 1974. "Há uma paz maravilhosa em não publicar. A publicação é uma terrível invasão da minha privacidade", disse a um repórter.

Naturalmente, esse isolamento radical fez crescer a curiosidade em torno do autor. Por muito tempo, jornais e revistas mandavam fotógrafos a Cornish, na esperança de conseguir um novo flagrante do escritor famoso – que, para se resguardar, erguera muros altos ao redor de sua propriedade. Os piores ataques à privacidade de Salinger vi-riam de pessoas próximas: uma antiga amante, Joyce May-nard, e sua filha, Margaret, escreveram livros para revelar supostas esquisitices do autor. Falavam de dietas estranhas, de uma obsessão por tratamentos de saúde ho-meopáticos e de uma confusa devoção às mais variadas religiões, da cientologia ao zen-budismo.

A inegável excentricidade de Salinger não deve obscurecer o fato fundamental: ele foi um grande escritor, reconhecido como influência fundamental por sucessores como John Updike e Philip Roth. No Brasil, Salinger foi publicado nos anos 60 pela Editora do Autor, dos escritores Rubem Braga e Fernando Sabino – ainda hoje mantida por um terceiro sócio, o advogado Walter Acosta, a Editora do Autor já está na 16ª edição de O Apanhador no Campo de Centeio. "Esse é um livro para formar leitores. Antes dele, não havia literatura adolescente com aquela qualidade. A gente tinha de sair de Monteiro Lobato direto para Dostoievski", avalia o escritor Cristovão Tezza, de 57 anos. Outros símbolos da rebeldia juvenil hoje parecem datados e até um tanto ridículos (veja-se, por exemplo, o personagem de James Dean no filme Juventude Transviada, de 1955). Confuso, errante, irresponsável, Holden Caulfield ainda se mantém como uma incógnita – o que exatamente ele quer? Como pode ser tão privilegiado e tão infeliz? Só os leitores adolescentes às vezes têm a ilusão de entendê-lo.

Com reportagem de Sérgio Martins

Morris Engel/getty Images
JUVENTUDE TRANSVIADA
Estudantes americanos
nos anos 50: Salinger captou
as angústias dos adolescentes
do pós-guerra – mas sua obra
ressoa até hoje


Na beira do precipício

"Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto — quer dizer, ninguém grande — a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. (...) Se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho de agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer."
Trecho de O Apanhador no Campo de Centeio

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