Jerome Kagan
Jerome Kagan, um dos grandes psicólogos do século XX, está de volta à moda. Em cinquenta anos de pesquisas sobre o desenvolvimento infantil, Kagan dedicou-se ao estudo da ansiedade, e, quanto mais a doença aparece na sociedade moderna, mais atenção seu trabalho ganha. Aos 80 anos (parecem 65), ele joga tênis três vezes por semana e, mesmo aposentado desde 2000, segue batendo ponto no seu escritório na Universidade Harvard e mantém a língua afiada de sempre. Nesta entrevista a VEJA, durante a qual psicanaliticamente fumou cachimbo, ele critica pediatras e obstetras, diz que Freud disseminou o equívoco de que a ansiedade é ruim e - para alívio das mães e festa das feministas - afirma que a mãe não é mais influente do que o pai na criação dos filhos. Estamos vivendo a "era da ansiedade"? A incidência hoje não é maior do que era ontem. No século XVI, a ansiedade vinha do risco de morrer antes dos 35 anos de doença infecciosa, ser assaltado na beira da estrada entre uma cidade e outra, ofender Deus e ir para o purgatório. Hoje, estamos ansiosos em relação a coisas diferentes, como status social, sucesso profissional, relação com amigos e cônjuges. O que determina a frequência e a intensidade da ansiedade são os genes, e os genes não mudaram do século XVI para cá. Mas o que determina o alvo da ansiedade é a cultura, e isso mudou. A ansiedade é ruim? Desde que Freud disse que todas as neuroses vêm da ansiedade, passamos a ter um entendimento cultural de que a ansiedade é uma coisa tóxica. Não é. Todos nós somos ansiosos. Faz parte da condição humana, como ficar cansado, errar, sentir-se culpado, frustrado ou envergonhado. Não existe civilização em que ninguém fica ansioso. A ansiedade tem vantagens. As pessoas ansiosas são muito responsáveis e conscientes. Quando eu selecionava meus ajudantes de pesquisa, sempre que possível optava por jovens ansiosos, tímidos e introvertidos, porque eles trabalham com afinco e erram menos. Há pessoas ansiosas simplesmente brilhantes. Albert Einstein era ansioso? Pela biografia dele, eu diria que não, mas T.S. Eliot era seguramente ansioso e ganhou o Nobel de Literatura em 1948. O matemático Paul Dirac era extremamente ansioso e também ganhou o Nobel de Física em 1933. Uma pessoa pode ser intensamente ansiosa, mas, se ela consegue trabalhar, relacionar-se no casamento, cumprir seu papel de pai ou mãe, não há problema. A ansiedade será um problema se atingir um estágio clínico, no qual vira doença, a superansiedade. Do contrário, só será problema para quem acha que é um problema. Conheço indivíduos altamente ansiosos que não interpretam sua condição como problema. Entendem que a vida é assim mesmo e estão satisfeitos. De onde vem a superansiedade? Há dois argumentos. Os biólogos evolucionários dizem que a existência de hipervigilantes entre membros de nossa espécie foi decisiva na luta contra os predadores. Sob esse ponto de vista, portanto, a ansiedade foi uma vantagem adaptativa. O argumento contrário deriva da tese de Stephen Jay Gould (paleontólogo americano, 1941-2002)segundo a qual nem todas as mutações são úteis e positivas. Algumas são simplesmente subprodutos da evolução. O queixo é um exemplo. Ele não traz em si nenhuma vantagem adaptativa. O queixo existe como consequência arquitetônica do desenho da boca, esta sim uma solução evolutiva útil. A natureza simplesmente não saberia como construir uma boca como a nossa sem criar como subproduto o queixo. A tese de Gould pode ser aplicada à superansiedade. Ela seria um subproduto, uma sobra de algum outro arranjo genético positivo. Não sei qual dos dois argumentos é o mais correto, mas ambos fazem sentido. Em meio século de estudos, o que lhe parece mais decisivo no desenvolvimento infantil?Duas coisas. Uma é que, nos primeiros dezoito ou vinte anos, vivemos verdadeiros estágios de maturação. Os dois primeiros anos são um estágio. De 2 a 5, outro estágio. De 5 a 7, outro. E, quando passamos de um estágio ao outro, parte do que ocorreu antes desaparece sem deixar vestígios. Não carregamos toda a bagagem conosco. As experiências da primeira infância simplesmente somem, são transformadas ou eliminadas. Antes, pensava-se que não perdíamos nada, que tudo ficava registrado. Não é verdade. A outra coisa é que a natureza humana é como uma cebola. Trocamos as camadas externas com facilidade. São as crenças, o comportamento. As camadas internas, mais próximas do centro, são difíceis de mudar. São os sentimentos, a ansiedade, a raiva, o orgulho. Carl Jung (psiquiatra suíço, 1875-1961) entendeu isso com seu conceito de "persona" e "anima". "Persona" é a camada externa, é o que nós vemos um no outro. "Anima" é o que está dentro da cebola, e nós não vemos. A biologia é destino? Depende. Há doenças, pouquíssimas doenças, que quase certamente vão se desenvolver em quem tiver determinados genes. É o caso de Huntington (doença degenerativa do sistema nervoso central). Felizmente, menos de 1% da população tem os genes de Huntington. No outro extremo, há doenças, muitas doenças, que só se desenvolverão, mesmo em quem tiver os genes errados, caso numerosos fatores externos se combinem para deflagrar a moléstia. São muitas as pessoas com esses genes, mas é provável que nunca tenham as doenças. Portanto, a resposta é não: biologia não é destino. Pais ansiosos terão filhos ansiosos? Se a ansiedade dos pais decorre de uma característica de sua natureza, a probabilidade de que seus filhos sejam ansiosos é um pouco mais alta. Isso porque estamos falando de hereditariedade. Mas, se a ansiedade dos pais tiver origem no ambiente, no meio em que vivem, a possibilidade de passar a ansiedade para os filhos será menor. Qual a influência dos pais sobre o temperamento dos filhos? No caso do temperamento que tem origem genética, os pais podem ajudar a mudar o comportamento, ou seja, a forma como esse temperamento se manifesta. Eles podem ajudar seu filho a reduzir ou silenciar a intensidade com que o temperamento aparece, mas a vulnerabilidade estará sempre lá. Na minha pesquisa com bebês, há dois casos muito evidentes. (A pesquisa começou em 1986, com 500 bebês, dos quais 20% se revelaram inibidos e ansiosos, e são acompanhados até hoje por seguidores e Kagan.) Uma das garotinhas pesquisadas, a quem chamamos de Mary, vem de uma família que lhe dá muito apoio e incentivo. Hoje, aos 24 anos, Mary está na faculdade e vai muito bem. Outra pesquisada, Baby 19, veio de uma família de pais divorciados e está tendo muitos problemas. As duas, Mary e Baby 19, têm o mesmo temperamento, mas as famílias fizeram a diferença. O nível educacional e a classe social dos pais têm muita influência sobre o futuro dos filhos? Tem mais influência do que a genética. O melhor indicador de doença mental, de qualquer doença mental, é a classe social, e não os genes. Por hipótese, suponhamos que há um grupo de 1 000 bebês lá fora. Você e eu vamos pesquisá-los para determinar quais bebês poderão estar sofrendo de depressão aos 30 anos de idade. Você só pode examinar os genes dos bebês. Eu só posso examinar a educação e o nível de renda dos pais dos bebês. Meu resultado será mais exato do que o seu. Os que ocupam o topo da pirâmide social, em termos de educação, trabalho e renda, têm menos doença mental, vivem sete anos a mais e seus filhos são mais saudáveis. Em resumo, são pessoas mais felizes. O amor da mãe é condição necessária para a saúde mental da criança no futuro? É conversa fiada. As crianças tomam consciência de si mesmas por volta dos 2 anos de idade. Quando isso acontece, a criança, para crescer mentalmente saudável, precisa acreditar que pelo menos um dos pais a valoriza. Pode ser a mãe ou o pai, não necessariamente a mãe. Observe: eu usei o verbo valorizar, não o verbo amar. A criança precisa se sentir valorizada. Na cultura escandinava, os pais não beijam nem abraçam os filhos, nem dizem "eu te amo". Mas estão sempre reforçando nos filhos a ideia de que eles são valorizados. Beijar e abraçar o filho não faz diferença? Depende da interpretação e do contexto cultural da criança. Uma criança que cresce no Brasil talvez não acredite no amor de seus pais caso eles não a abracem e beijem. Mas não é a mesma coisa na Escandinávia. Há anos, tive um aluno, filho de mexicanos, criado na Califórnia. Não conhecia a Nova Inglaterra até se matricular em Harvard. Quando completou seu primeiro ano aqui, perguntei o que lhe havia chamado mais atenção. Ele riu e disse: "É estranho que os pais dos meus colegas venham visitá-los e não deem um abraço nem um beijo nos filhos". É cultural. Ele, filho de mexicanos, de origem latina, não entendia a indiferença física. As famílias da Nova Inglaterra não beijam nem abraçam seus filhos, mas os filhos sabem que os pais os valorizam. O pediatra Berry Brazelton diz que a presença e o amor dos pais são fundamentais para criar crianças saudáveis e seguras. Ele está errado? Brazelton não está errado, mas os pediatras exageram o papel da afeição no primeiro ano de vida. Claro que os pais têm importância. Agora, é preciso entender que a criança que tem laços com seus pais está mais inclinada a fazer o que os pais querem que ela faça do que a criança que não tem os mesmos laços. É um contrato. A criança recebe carinho e afeição e, em troca, dá o que lhe pedem. Mas suponhamos que um pai carinhoso e amoroso queira que sua filha, em pleno século XXI, cresça como uma menina do século XIX, sem pensamentos de natureza sexual, calada e conformada. Isso será bom para a filha quando tiver 20 anos? Não. Portanto, se os pais usam os laços afetivos a serviço de bons valores, ótimo para a criança e seu futuro. No caso de valores inadequados, seria preferível que os laços não existissem. É disso que Brazelton não fala. Não seria porque partimos do princípio de que os pais fazem o melhor para seus filhos?Mas essa é uma premissa errada. Os pais às vezes promovem valores errados. Em O Caçador de Pipas, Baba, o pai, amava seu filho Amir, mas queria que fosse um bravo, um valente, e não um escritor. O resultado foi que, com todo o amor, Baba criou um filho ansioso e que se sentia rejeitado pelo pai. Então, o amor funciona quando os pais promovem valores que servem para a criança no futuro. No início da vida da criança, o pai e a mãe são igualmente significativos? Se a cultura disser que são, então eles serão. Mas a nossa cultura não diz isso. Ela nos diz que a mãe tem de amar seu filho. Nas últimas linhas de Narciso e Goldmundo, de Hermann Hesse, Goldmundo está morrendo nos braços de Narciso e então diz: "Mas como poderás morrer, Narciso, se não tens mãe? Sem mãe, não se pode amar. Sem mãe, não se pode morrer". Essa é a visão ocidental. É, de novo, uma questão cultural. Na Europa renascentista, o pai era considerado mais vital do que a mãe. Michel de Montaigne (escritor e ensaísta francês do século XVI) escreveu que o pai era a força mais relevante, pois a mãe era exageradamente emocional. O ideal, dizia Montaigne, era afastar logo a criança da mãe "e usar uma cabra para amamentá-la". Todo casal hoje valoriza e registra em vídeo o momento em que o obstetra entrega o bebê nos braços da mãe assim que nasce... Bobagem. Isso parece bruxaria. Mas a mãe amamentar o filho pele com pele também é dispensável? Isso não. Além de a amamentação ser recomendável, o contato do bebê com a pele da mãe traz benefícios para a saúde de ambos. Falamos da pele da mãe apenas porque o pai não amamenta. Se amamentasse, podia ser a pele do pai.A ansiedade pode ser boa
O psicólogo que passou meio século estudando o
desenvolvimento infantil diz que a mãe não é mais influente
do que o pai e alerta para o erro de tentar suprimir a ansiedade
André Petry, de Boston