Saturday, October 31, 2009

Matar para Não Morrer, de Mary Del Priore

O gigante humilhado

Este ano marca o centenário da morte de Euclides da Cunha,
autor do portentoso Os Sertões, que acabou assassinado na
patética tentativa de acertar contas com o amante de sua mulher


Jerônimo Teixeira

Divulgação
HONRA SE LAVA COM SANGUE
Euclides da Cunha: vida e obra cheias de tragédia


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Antes de se erigir em líder messiânico do povoado baiano de Canudos, Antonio Conselheiro tentou uma pacata vida familiar. Sua mulher acabou fugindo com um policial. Esse episódio vergonhoso parece ter representado uma inflexão definitiva em sua vida. Conselheiro extraviou-se pelas veredas do Nordeste, ressurgindo como o "anacoreta sombrio" que Euclides da Cunha retrata em Os Sertões, o seu livro portentoso sobre os conflitos dos jagunços de Canudos com três expedições de tropas do governo, entre 1896 e 1897. Em uma dessas ironias tristes da história, a morte do próprio Euclides foi determinada por uma mulher infiel. Em 15 de agosto de 1909, no bairro carioca da Piedade, Euclides da Cunha, de 43 anos, entrou de arma em punho no quarto do cadete do Exército Dilermando de Assis, de 21, amante de sua mulher, Ana Emília da Cunha. Mesmo ferido, Dilermando, exímio atirador, conseguiu atingir e matar Euclides da Cunha.

Entre as obras dedicadas ao autor neste centenário de sua morte, há um ensaio histórico que, de certo modo, busca regenerar a reputação de Dilermando – Matar para Não Morrer (Objetiva; 176 páginas; 29,90 reais), da historiadora Mary Del Priore, autora da biografia Condessa de Barral – A Paixão do Imperador. Dois reputados estudiosos da obra do escritor fluminense lançaram recentemente coletâneas de ensaios – Francisco Foot Hardman, da Unicamp, com A Vingança da Hileia (Editora Unesp; 376 páginas), e Walnice Nogueira Galvão, com Euclidiana(Companhia das Letras; 328 páginas; 52 reais). Foi publicada ainda uma nova biografia literária,Euclides da Cunha: uma Odisseia nos Trópicos (tradução de Geraldo Gerson de Souza; Ateliê; 432 páginas; 72 reais), do americano Frederic Amory. E, daqui a duas semanas, a editora Nova Aguilar lança, em dois volumes, uma nova Obra Completa de Euclides da Cunha, com organização de Paulo Roberto Pereira, professor de literatura da UFF. Pereira diz que a nova edição revela poucos textos novos do autor. "Euclides foi basicamente um jornalista. Tudo o que ele escrevia era para ser publicado", diz. Mesmo assim, há alguns textos inéditos, como os reproduzidos nesta página – um surpreendente poema sobre o Carnaval, quase modernista na sua simplicidade e na sua ironia, e uma carta a Joaquim Nabuco, pedindo seu voto para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (Euclides de fato entrou na ABL em 1903, um ano depois da publicação de Os Sertões).

Militar, engenheiro, jornalista, republicano de primeira hora, explorador, Euclides da Cunha está entre os escritores que interpretaram e definiram o Brasil. Ainda que eivada de preconceitos da época – sobretudo, pelo determinismo racial –, Os Sertões é uma obra pioneira no diagnóstico do descompasso entre o país urbano e o agreste. Livro caudaloso, preciosista nas descrições e dramático nas cenas de batalha, é um dos momentos extremos da literatura em língua portuguesa. Euclides está na categoria de autores como o Padre Vieira, Machado de Assis e Eça de Queiroz: não há como conhecer todas as possibilidades que a língua oferece sem passar por ele. O gigantismo do autor contrasta com as circunstâncias vulgares de sua morte. De certo modo, Dilermando é uma sombra na história literária do Brasil.

O cadete tornou-se amante de Ana, conhecida familiarmente como Saninha, quando tinha 17 anos e ela, 33. No início de 1906, ao voltar de uma excursão de mais de um ano pelo Rio Purus, no Acre, Euclides encontrou a mulher grávida. Esse primeiro filho do casal de amantes morreu pouco depois de nascer, mas Saninha, na sequência, daria à luz Luiz, loiro como Dilermando em uma família de gente morena – "uma espiga de milho em meio a um cafezal", na expressão amarga do marido traído. Humilhado, o escritor decidiu acertar contas com Dilermando e a mulher numa ocasião em que esta passara a noite fora de casa. Conseguiu o endereço de Dilermando – e lá se foi, com o revólver no bolso, para morrer.

Matar para Não Morrer é uma reconstituição envolvente do crime e do rastro de dor que ele lançou sobre todos os envolvidos (com alguns deslizes literários: Mary Del Priore atribui a Coelho Neto o título de "príncipe dos poetas brasileiros", que na verdade pertencia a Olavo Bilac. Coelho Neto – que hoje ninguém mais lê – era o Príncipe dos Prosadores). "Muito se falou sobre o sofrimento da mulher na sociedade patriarcal brasileira. O caso de Euclides e Dilermando ajuda a entender o sofrimento masculino", diz a historiadora. A concepção machista da honra que só pode ser lavada com sangue está na raiz do ato tresloucado de Euclides. Tendo falhado o pai, coube aos herdeiros levar a vingança adiante: em 1916, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, disparou contra seu padrasto Dilermando – que se casara e constituíra família com Saninha – em um cartório no Rio. Dilermando saiu gravemente ferido, mas, mais uma vez, levou a melhor no tiroteio: matou Quidinho.

Dilermando foi inocentado das duas mortes, com a alegação de legítima defesa. A imprensa, porém, nunca o perdoou. Cobrava moralidade de uma Justiça que deixava livre o homem que seduzira uma pobre mulher desamparada e depois matara seu marido e filho. Apesar de tudo, Dilermando faria uma bela carreira militar, chegando a general. Seu irmão mais novo, Dinorah, teve sorte pior: envolvido na briga com Euclides, foi baleado nas costas. Os médicos, a princípio, não viram maior gravidade no ferimento. Poucos dias depois, Dinorah entrava em campo para disputar uma partida de futebol pelo Botafogo. Mas a bala, alojada próximo à coluna, acabaria aleijando o jovem atleta. Com 32 anos, Dinorah suicidou-se em Porto Alegre, atirando-se no Rio Guaíba.

Passados 100 anos, o violento episódio ainda parece capaz de incitar mansas dissensões acadêmicas. Compare-se, por exemplo, o livro de Mary Del Priore com a biografia de Euclides escrita por Frederic Amory, bem mais reticente no retrato de Dilermando. Amory alega até que a invalidez de Dinorah não foi causada pelo tiro de Euclides (não é muito convincente nessa argumentação). Mesmo os grandes homens não estão a salvo da vileza e da vulgaridade – tal parece ser a lição óbvia do assassinato de Euclides. Mas, visto com mais cuidado, mesmo esse enredo de traição suburbana tem lá sua transcendência, reforçada pela verdadeira tragédia grega de Quidinho, morto na tentativa de vingar o pai. "Tudo o que Euclides escreveu, a começar de Os Sertões, tinha essa nota de tragédia. E sua vida foi assim também", diz Paulo Roberto Pereira. Euclides da Cunha era gigante até na baixeza.


Euclides desconhecido

Um poema e uma carta inéditos, que sairão na Obra Completa (Nova Aguilar) do escritor

Nestes três dias esplêndidos...
Nestes três dias esplêndidos
Em que o prazer tudo arrasa
Desde o cristão ao ateu,
Quem se sente neurastênico
Faz como eu,
Fica em casa.

Publicado na revista Fon-Fon em 18/2/1909

A Joaquim Nabuco:
"Lorena — 10-7-903
Exmo. Sr. Dr. Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo,

Saúdo respeitosamente a Vª. Excia. e comunicando-lhe que sou candidato à cadeira que vagou na nossa Academia de Letras em virtude do lamentável passamento do nosso compatriota Valentim de Magalhães – venho, obediente à praxe estabelecida, solicitar o seu voto, agradecendo-lhe de antemão um sufrágio que dará extraordinário brilho à minha investidura. Já tive a honra de enviar à Vª. Excia. o livro com o qual justifico a minha pretensão.

Subscrevo-me com a mais elevada consideração,
De Vª. Excia.
Compatriota crdo. ato. e admdor.
Euclydes da Cunha."

Um crime em aberto

O que estava em jogo na troca de tiros que resultou na morte de Euclides da Cunha – e é tema do livro Matar para Não Morrer, de Mary Del Priore


1 - Dilermando de Assis,

militar (1888-1951)
Acusação: exímio atirador, matou, com a ajuda do irmão Dinorah, Euclides da Cunha – de cuja mulher era amante
Defesa: agiu em legítima defesa, pois Euclides entrou atirando em seu quarto
Veredicto: foi inocentado no julgamento – mas não pela opinião pública, que o perseguia como assassino. "Ele foi um grande injustiçado", diz a historiadora Mary Del Priore

2 - Euclides da Cunha,
escritor (1866-1909)
Acusação: tentou matar Dilermando de Assis e seu irmão Dinorah, que acabou hemiplégico em consequência do tiro
Defesa: o autor de Os Sertões agiu em defesa da honra, manchada pelo adultério de sua mulher, Ana, com Dilermando
Veredicto: Euclides procedeu de acordo com as imposições sociais de seu tempo. "Ele foi muito humilhado e chegou a uma situação-limite", diz o crítico Paulo Roberto Pereira


LIVROS

Euclides da Cunha: Uma Odisseia nos Trópicos, de Frederic Amory

I Cenas da Infância

Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, autor de um dos maiores livros jamais escritos nas Américas mas, ironicamente, pouco apreciado fora do Brasil1, nasceu em 20 de janeiro de 1866, na fazenda dos avós, chamada Saudade, em Santa Rita do Rio Negro, distrito do município de Cantagalo, no nordeste do Estado - então província - do Rio de Janeiro. O local de seu nascimento era um povoado do vale do Baixo Paraíba, banhado pelo rio de mesmo nome que corre na direção leste por todo o interior do Estado. Segundo nos informa Aires do Casal no início do século XIX2, alguns lugares do município de Cantagalo, na data em que foi alçado a município (1814), ainda eram habitados por remanescentes dos índios coroados, depois desta data "poucos em número, pusilânimes, e aliados com [seus] conquistadores", ou seja, os descendentes dos mineiros vindos do porto do Rio, em busca de ouro em Cantagalo, nos meados do século xviii. Em estado selvagem, os índios da localidade, os coroados e seus inimigos naturais, os agressivos puris, inicialmente haviam oposto feroz resistência à tentativa de colonização dos homens brancos, os cariocas, como eram chamados na língua tupi. No entanto, os colonos brancos acabaram por conquistar os coroados e, em aliança com estes, venceram os puris; daí por diante, não foram mais perturbados em seu trabalho de batear ouro e escavar, por meio século, os morros de Cantagalo à procura do precioso metal; e saquearam todos os veios auríferos até que exauriram a terra, onde, no começo do século XIX, vivia na miséria uma população mista de índios, mamelucos, brasileiros portugueses e escravos negros. Na segunda década desse século, porém, a terra cobriu-se de cafezais, e o café, cuja produção triplicou no Vale do Paraíba da década de 1830 à de 18603, tornou os antigos assentamentos mineiros do interior da província do Rio muito mais ricos do que tinham conseguido com o ouro.

Euclides da Cunha nasceu e foi criado numa época de grande prosperidade para sua família; no entanto, teve a infância seriamente perturbada por tragédias familiares. A mãe, Eudóxia Moreira da Cunha, filha de pequeno cafeicultor de Cantagalo, morreu ainda jovem de tuberculose, deixando o filho Euclides com três anos de idade e a filha Adélia com apenas doze meses. As duas crianças foram entregues aos cuidados da tia materna, Rosinda de Gouveia, que as levou para a vila serrana de Teresópolis, um belo lugar ao sul de Cantagalo; no entanto, Dona Rosinda também veio a falecer menos de um ano depois e, desse modo, em 1871, a outra irmã Moreira, Laura Garcez, assumiu os cuidados dos dois órfãos ao lado de seus dois filhos (um destes adotado), na grande Fazenda São Joaquim em São Fidélis, vila situada um pouco acima e a leste de Cantagalo. A morte da mãe perturbou para sempre as lembranças que Euclides guardava dela. Já no funeral, para espanto das pessoas mais velhas da família, chorou copiosamente junto ao caixão: em sua dor e incompreensão, imaginava que iriam levá-la para ser enterrada viva4. Mais tarde, por volta de seus trinta anos de vida, uma pós-imagem da mãe como a "dama de branco" influenciou-lhe a visão. Seu distúrbio psíquico, mesmo quando não estava "vendo coisas," tornou-o um homem excepcionalmente supersticioso, ainda mais se levarmos em conta que gostava de ser considerado, profissionalmente, um homem de ciência, o que na verdade era, se não por natureza, pelo menos por ser formado em engenharia e ter recebido uma boa educação geral. Amigos e conhecidos próximos dignos de confiança dizem que Euclides tinha medo de fantasmas, principalmente da fantasmagórica figura materna que lhe apareceu num meio-dia, quando ia para o trabalho em São José do Rio Pardo (São Paulo), onde reconstruía uma ponte, e outra vez em Manaus, em seu retorno da expedição de reconhecimento ao alto Amazonas5. Além desses sintomas neuróticos de um trauma de infância, desenvolveu na escola militar uma moléstia pulmonar com complicações tuberculosas, que o deixou várias vezes acamado no período de 1887 a 1899, mas que não lhe foi fatal, como fora no caso da mãe. "Ele era um homem doente", dizia um colega nos meados da década de 1890, "talvez um 'doente imaginário', mas de fato doente"6.

O pai de Euclides, Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, que sobreviveu à esposa e ao filho, é originário de família luso-brasileira de comerciantes de escravos de Salvador, Bahia. O avô paterno da família Cunha, o velho Manuel Rodrigues, era um português dono de um navio negreiro, o "Pestana", que na primeira metade do século xix realizou frequentes e infames viagens entre as costas da África Ocidental e os portos de Salvador e Rio de Janeiro. Sua esposa, Teresa Maria de Jesus, era uma fazendeira baiana com quem, diziam, o neto Euclides se parecia no físico e no temperamento. Esse casal luso-brasileiro tinha uma boa situação financeira, o suficiente para realizar constantes viagens de lazer a Portugal, até que, numa dessas jornadas ao país natal, o marido morreu inesperadamente. Dona Teresa logo contraiu novas núpcias - com um baiano, Joaquim Pereira Barreto - mas os dois filhos mais velhos do primeiro casamento, Manuel e Antônio, não se entenderam muito bem com o padrasto e acabaram deixando a casa, por volta de 1860, para tentar a sorte na então florescente província do Rio de Janeiro. O comércio de escravos com a África Ocidental fora abolido a partir de 1850 por proibição da Inglaterra, secundada por leis brasileiras, mas isso não interrompeu o plantio de café na província do Rio, realizado agora por escravos que antes eram empregados nas minas de ouro de Cantagalo. Manuel empregou-se como guarda-livros e perito contador da nova riqueza agrícola no vale do baixo Paraíba, enquanto o irmão Antônio foi trabalhar como amanuense numa empresa da comunidade financeira da Corte, tal como o Rio era conhecido na época. Nas suas andanças de fazenda em fazenda na região cafeicultora de Cantagalo, como auditor financeiro, Manuel acabou encontrando a filha de Joaquim Alves Moreira, Dona Eudóxia, com quem veio a casar-se. No dote que a jovem trouxera para o casamento vinha incluída uma pequena fazenda em Santa Rita do Rio Negro. Sem dúvida, o jovem guarda- -livros baiano não tinha intenção de ficar para sempre contando o dinheiro dos outros no vale do baixo Paraíba, mas a morte prematura da esposa, que dispersou sua família, alterou qualquer intuito que pudesse ter tido de tornar-se, como o sogro, um cafeicultor em Santa Rita. Durante a doença final de Dona Eudóxia, quando ela já não podia permanecer em casa e o casal e os filhos tinham de ficar com as irmãs dela, Manuel vendeu a fazenda de Santa Rita7.

Seu relacionamento com os filhos após a morte da esposa tornou-se cada vez mais esporádico. É verdade que sempre manteve contato com eles enquanto se mudavam de uma tia materna para a outra, mas, segundo parece, nunca viveram sob o mesmo teto enquanto os filhos eram menores. Em São Fidélis, Dona Laura e o marido, coronel Magalhães Garcez, administravam uma grande fazenda, onde Euclides e sua irmã foram criados ao lado dos primos. No verão, a família se mudava para a casa da cidade, onde o coronel, que chefiava uma facção local do abolicionista Partido Liberal, fazia seus contatos políticos. Manuel, que prestava serviços de guarda-livros para três firmas da cidade, limitava-se a visitar os filhos na residência dos Garcez. Quando, em 1874, Euclides iniciou os estudos primários com os dois primos em São Fidélis, é possível que o pai o tenha visto com mais frequência, mas três anos depois a família Cunha voltou a dispersar-se. Manuel, convencido pelo irmão, assumiu um cargo lucrativo num banco da Corte; Euclides, por desejo da avó paterna, foi mandado a Salvador por um ano (1877-1878) para estudar e Adélia permaneceu com dona Laura em São Joaquim. Data desse ano o poema, ora perdido, escrito por Euclides com o significativo título de "O Órfão"8. Em 1878 ou 1879, Euclides acompanhou o pai à cidade do Rio de Janeiro para frequentar outras escolas e, como sempre, ficou alojado com parentes, dessa vez com o tio paterno Antônio e sua esposa Carolina da Cunha. Somente depois que Manuel conseguiu poupar com seu trabalho no banco e na contadoria dinheiro suficiente para comprar, por volta de 1890, uma fazenda de café, Trindade, em Belém do Descalvado, a cerca de duzentos quilômetros ao norte da capital de São Paulo, é que ele e sua família tiveram um lar próprio. Satisfeita sua ambição na vida, Manuel passou o resto dos dias curtindo sua viuvez em Trindade.

As constantes remoções do jovem Euclides de lar adotivo para lar adotivo e de escola para escola na provinciana Rio de Janeiro e em Salvador (Bahia) estabeleceu o padrão do chamado "nomadismo" de sua vida profissional adulta, em contraste com a estabilidade da vida do pai. Após mais de um ano de viagem numa expedição de reconhecimento ao alto Amazonas, seu pai tardiamente admoestou-o por carta (13 de dezembro de 1906) sobre sua presteza em viajar para qualquer lugar do interior do Brasil, numa missão qualquer, sem se preocupar com o sustento e o cuidado da esposa e dos filhos, ou do velho pai9. Não obstante, este mesmo vivera longe dos filhos ganhando seu sustento como guarda-livros, e também mostrara desejo de que o filho se formasse em engenharia militar na Escola da Praia Vermelha. No que diz respeito às ausências do lar, apesar desta falsa impressão de contraste entre pai e filho, os dois tiveram algo em comum na juventude: escrever poesia. Manuel, que tinha sensibilidade literária e boa cabeça para números, compusera uma comovedora elegia pela morte de Castro Alves (†1871), o popular "poeta dos escravos" e o incensado "poeta condoreiro," cuja imagem na elegia é a de uma águia que voa nas alturas10.

1. A aceitação de Os Sertões pelos leitores estrangeiros foi pequena antes e depois da onda de traduções desse livro no final da Segunda Guerra Mundial. Vejam-se, por exemplo, os raros estudos de norte-americanos e ingleses, tchecos e alemães sobre o livro e seu autor, que vêm relacionados em Irene Monteiro Reis, Bibliografia de Euclides da Cunha (Rio de Janeiro, 1971), sob os números 1518, 1847, 1886-1889, 2531-2532, 2738. Um recente tributo prestado a Os Sertões no exterior, após a publicação de sua tradução em espanhol em 1938, é o romance do escritor peruano Mario Vargas Llosa, La Guerra del Fin del Mundo (Barcelona, 1981), uma versão ficcionalizada de seu tema, a "guerra" entre o governo republicano do Brasil e um líder religioso, Antônio Conselheiro, e seus seguidores nos sertões da Bahia. Sobre a intertextualidade de Os Sertões e La Guerra, cf. Leopoldo M. Bernucci, Historia de un Malentendido (un Estudio Transtextual de La Guerra del Fin del Mundo de MarioVargas Llosa), New York, Peter Lang, 1989; R. R. Mautner Wasserman, "Mario Vargas Llosa, Euclides da Cunha and the Strategy of Intertextuality", PMLA, 108(3), pp.: 460-473, May, 1993. Até agora, foi a tradução espanhola de Os Sertões aquela que alcançou maior receptividade. Cf. a judiciosa conclusão do ensaio de Gilberto Freyre, "Euclides da Cunha, Revelador da Realidade Brasileira", que aparece como introdução de Obra Completa de Euclides da Cunha, ed. A. Coutinho, vol. I, p. 31.

2. Manuel Aires do Casal, Corografia Brasílica (1817; reimpr. São Paulo, 1943), vol. ii, p. 40.

3. Alguns dados sobre a produção aparecem em Sylvio Rabello, Euclides da Cunha, 2. ed., Rio de Janeiro, 1966, p. 10. Todavia, com a exaustão do solo, a produção cafeeira do vale do Paraíba caiu verticalmente na década de 1880; cf. Emilia Viotti da Costa, Da Senzala à Colônia, São Paulo, 1966, p. 212.

4. Historieta relatada em Eloy Pontes, A Vida Dramática de Euclydes da Cunha, Rio de Janeiro, 1938,

5. Sobre sua grande superstição, cf. o sumário da família, "A Família de Euclydes: Testemunhos", Dom Casmurro, 10, p. 16, maio de 1946, e Olímpio de Sousa Andrade, História e Interpretação de "Os Sertões", 3. ed., São Paulo, 1966, pp. 223-224.

6. Disse-o Teodoro Sampaio, em 1919, num discurso proferido no Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, "À Memória de Euclides da Cunha no Décimo Aniversário de sua Morte", Revista do Instituto Geographico e Histórico da Bahia, n. 45, 1919, p. 254. Sobre a constante hemoptise de Euclides, cf. Sousa Andrade, op. cit., p. 77; Dilermando de Assis, A Tragédia da Piedade, Rio de Janeiro, 1952, pp. 152-153; e carta inédita da esposa de Euclides, Ana Ribeiro da Cunha (4 de fevereiro de 1899, coleção Família Escobar): "Euclydes tem estado bem doente, teve uma congestão pulmonar pondo muito sangue pela boca. Durante a noite elle passa bem, porém fica muito nervoso".

7. Sousa Andrade (op. cit., p. 12) é o único dos biógrafos de Euclides que junta a fazenda Saudade, a propriedade de seus avós e seu local de nascimento, ao sítio de seus pais em Santa Rita.

8. Fato particularizado em "A Família de Euclydes", Dom Casmurro, loc. cit.

9. O texto dessa carta aparece em Dilermando de Assis, pp. 119-120.

10. Composto em 1874 e publicado, no ano seguinte, no Almanaque Luso-Brasileiro, impresso em Portugal, o poema inteiro aparece em "A Família de Euclydes", Dom Casmurro, loc. cit.


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LIVROS

Matar para Não Morrer, de Mary del Priori

Capítulo I
"Deus os fez e o Diabo os ajuntou"

Ana Emília da Cunha era filha de um dos líderes do movimento que derrubou a Monarquia. Em 1905, estava casada há 15 anos com Euclides da Cunha, jornalista e engenheiro. Viviam uma relação marcada por disputas domésticas, segundo Roberto Ventura, biógrafo do escritor. Tinham três filhos. Os mais velhos moravam em colégios internos longe da capital e o menor vivia em companhia da mãe. O pai deslocava-se constantemente em função de seu trabalho. Não tinham residência fixa e dona Saninha, como era chamada, sentia-se mais segura morando junto a pessoas amigas. Uma delas, conhecida de São Paulo, viúva e mãe extremosa, recomendou-lhe a companhia de suas irmãs, no Rio de Janeiro. Eram duas. Os laços de amizade permitiam-lhe chamá-las "comadres". Para o então cadete Dilermando de Assis, elas eram as "tias".

Tias Lucinda e Angélica. Estado civil? Solteiras. Aos olhos da época, devia haver boas razões para terem "ficado no caritó" numa cidade com mais homens do que mulheres. Em 1890, por exemplo, na população total, a predominância do sexo masculino era de 56%. Numa sociedade em que as mulheres nasciam, cresciam e casavam para ter filhos, a donzelona era aquela que não cumpria as regras. Que se colocava fora do lugar certo. Que falhara. E tudo isso com tanta discrição que era como se não existisse. Quanto mais idade, pior.

Uma mulher de trinta anos era considerada "moça velha" e, portanto, não mais "amável". Não sendo capaz de conquistar um casamento, ela também não impunha respeito. Com o tempo escorrendo na ampulheta da vida, elas davam adeus ao riso, às brincadeiras, aos amantes sonhados e à beleza. Muitos juristas concebiam o celibato como um estado indecente. E os médicos consideravam-no a porta para uma grave doença: a histeria.

Lucinda e Angélica estudaram, se achavam superiores e, por isso, eram ambiciosas e antipáticas. Cultivavam relações com dona Saninha e o marido por os julgarem importantes, como ficou registrado nas memórias do sobrinho Dilermando. Um dia, foram ricas. Mas o pai, um genovês viúvo, outrora armador, teve uma doença severa e perdas financeiras que o transformaram num homem irascível. Ele fizera de sua filha mais velha, a mãe de Dilermando, a responsável pela educação dos filhos menores, entre os quais Lucinda e Angélica. Enquanto uma costurava, as outras faziam a Escola Normal.

As moças que se considerassem feias e retraídas eram "chamadas" para o magistério. Ser professora constituía trabalho aceitável para as mulheres sós. Um único turno, salário modesto e exigência de bons costumes. Aquelas a quem a maternidade física fora vedada cumpriam suas funções como "mães espirituais". A professora solteirona era de poucos sorrisos. Sua afetividade ficava escondida. Severidade e secura, óculos, coque, roupas escuras, pelos no rosto: as caricaturas dos jornais as representavam assim. Na literatura, não faltavam autores para descrever os defeitos das "moças velhas":

"O pior, para uma mulher, é não casar. O celibato feminino é uma fábrica ativíssima de monstros. A mulher é um ser profundamente afetivo. Nasceu para amar - seja a um homem, a um santo ou a um gato. Muitas, vítimas de namoros malogrados, refugiam-se no seio acolhedor da Igreja. São milhares e milhares de devotas místicas, exaltadas no sentimento religioso, que encontram aos pés da Cruz um consolo para sua felicidade perdida. Outras dedicam-se ao professorado - e infernizam a alma terna das crianças (devia ser proibida a existência de professoras solteiras!). Como não casaram, descarregam nos petizes todo o fel acumulado em longos anos de renúncia. Outras, por fim, dedicam-se a falar da vida alheia, a intrigar, a pôr veneno na vida dos conhecidos, a começar pelos parentes", admoestava o jornalista Berilo Neves na Revista da Semana.

Quando, recém-chegado de São Paulo, Dilermando foi visitar as tias no Rio de Janeiro, deve ter se lembrado dos maus tratos que, de acordo com as memórias familiares, elas impingiam à sua mãe. Segundo ele, a mãe era o "burro de carga que lhes preparava com esmero as toilettes" com que frequentavam a escola. Mas a juventude é a idade de todos os possíveis, e ele talvez tenha abafado as más lembranças. Lucinda e Angélica refaziam de certa forma o círculo familiar com a linguagem que ele conhecia e que diferenciava a família Ratto, ou seja, a de sua mãe, do resto do mundo. O reencontro se deu numa pequena pensão familiar, situada no bairro carioca do Flamengo.

Como qualquer parente depois de longa separação, as tias devem ter-lhe elogiado o porte, a força física, o avanço nos estudos. Sem dúvida, daria "grande general", projetando o nome da família que já dispunha de tantos militares notáveis, desde o século XIX. D. Saninha aproximou-se para contar que conheceu seu pai ainda jovem, solteiro. Que os filhos dela, Sólon e Quidinho, continuavam a estudar em São Paulo. Que também cresciam, como ele. Tinham brincado todos juntos nas saídas do pensionato Sagrado Coração. Agora, eram homens.

Homem: a palavra despertava arrepios na pensão Monat, onde moravam tantas senhoras. Homem não entrava na vida de uma mulher solitária. E dona Saninha estava só. Seu marido fora nomeado, pelo barão do Rio Branco, chefe da comissão brasileira de reconhecimento do Alto Purus, palco desde 1902 de conflitos entre tropas peruanas e seringueiros brasileiros. Em dezembro de 1904, no porto do Rio de Janeiro, ele tomou o vapor Alagoas em direção à Amazônia. O caráter maligno da região, infestada de riscos e doenças, não o atemorizava. Ele ia para o "Inferno Verde", deixando outro inferno na capital. Os conflitos entre dona Saninha e sua família eram graves. Os irmãos não queriam acolhê-la em casa. Dona Túlia, sua mãe, já viúva, sofria. O relacionamento entre marido e mulher piorou durante os anos em que moraram no interior de Minas Gerais e, depois, São Paulo. E a genialidade dos livros e artigos para jornais que ele escrevia não minorava os constantes atritos conjugais descritos por todos os seus biógrafos.

Doutor Euclides a deixou instalada na rua das Laranjeiras, número 76. Meses depois, ela seguiu para São Paulo, onde internou os filhos num colégio inglês. Sentindo-se abandonada e recebendo poucas notícias do marido, decidiu mudar-se para a pensão Monat. Lá, pelo menos, tinha companhia: Lucinda e Angélica.

Nesta época, "ser feliz" no casamento significava dividir afeto com o cônjuge, ter estabilidade familiar dando carinho aos filhos e vivendo com segurança financeira. Era comum que a correspondência de época desvendasse os sentimentos entre casais separados por motivos de trabalho. Mulheres revelavam as saudades de maridos que trabalhavam em outra cidade, e eles, por sua vez, sentiam remorsos por afastar-se de suas companheiras. Amor conjugal e amor familiar se davam as mãos, numa ciranda em que dona Saninha e o marido não entravam. Não há registros da falta que sentiam um do outro.

No início do século, o cumprimento dos papéis - ser bom marido e devotada esposa - não podia ser ignorado sob pena de severas sanções sociais. Responsabilidades eram exigidas de parte a parte pela sociedade: conduta dominadora e virtuosa do homem. E castidade e submissão da mulher. Qualquer ameaça ao poder masculino tornava-se fator de desentendimento. Se os valores tradicionais fossem ameaçados, o marido reagia. E devia fazê-lo sob pecha de ser considerado "corno manso". Por outro lado, o abandono do lar, as ausências prolongadas ou desmandos eram considerados motivos de desonra. Sua primeira obrigação: ser provedor e exercer a maior vigilância sobre a mulher. Ai da má esposa ou mãe! As "honestas" não saíam nunca à rua sem companhia. Eram vistas como seres frágeis e recatados. Suas faculdades afetivas tinham que predominar sobre as intelectuais. O mais alto valor feminino? A reputação.

Em casa, um homem era tudo. O direito, a filosofia, a política contribuíam, então, para assentar sua autoridade. Ele é quem dava o sobre nome e a luz, pois, segundo alguns juristas, "o nascimento jurídico era o único verdadeiro". O Código Civil estabelecia a superioridade absoluta do marido no lar, e do pai na família. Esta onipotência se estendia aos filhos: mesmo maiores de idade tinham que ter "respeito sagrado pelo autor dos seus dias". O pai podia mandar prender os filhos e recorrer às prisões do Estado para puni-los. Só ele dominava o espaço público, pois era o único a gozar de direitos políticos e domésticos: senhor do dinheiro, vigia dos passeios e da correspondência feminina, provedor de decisões fundamentais ou pedagógicas, cabia-lhe até escolher os estudos para os filhos.

Mas ele se impunha no cotidiano também. Tinha seu espaço, o escritório ou a biblioteca, onde os filhos entravam tremendo. Qualquer decisão do pai ou marido se fundava nos argumentos da ciência e da razão. Contra a mulher, considerada na época um ser devoto e tacanho, influenciável pelos sentimentos, tentado pela paixão, espreitado pela loucura, o pai - o homem - devia defender os direitos da inteligência. As questões domésticas eram importantes demais para ficar só nas mãos das mulheres. O poder ameaçado de um pai ou marido podia levá-lo a cometer crimes, sem manifestar por isso qualquer culpa.

No refúgio da pensão Monat, longe do marido e entre as amigas Lucinda e Angélica, dona Saninha vivia um casamento atípico para o período. Estava só. Também à rua Senador Vergueiro, número 14, começaram a se repetir visitas na folga do rapaz "alto, louro, desempenado e garboso em sua apertada farda de cadete da Escola Militar [...] feitas as apresentações, a esposa de Euclides, desde logo perturbada com a atraente presença do rapaz, fez-lhe várias perguntas [...] Dá-lhe conselhos: não devia sacrificar a saúde. A pensão Monat era ótima e barata. Podia morar aí entre pessoas amigas"


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