Matar para Não Morrer, de Mary Del Priore
O gigante humilhado
Este ano marca o centenário da morte de Euclides da Cunha,
autor do portentoso Os Sertões, que acabou assassinado na
patética tentativa de acertar contas com o amante de sua mulher
Jerônimo Teixeira
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HONRA SE LAVA COM SANGUE Euclides da Cunha: vida e obra cheias de tragédia |
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• Trecho: Euclides da Cunha, de Frederic Amory |
• Trecho: Matar para Não Morrer, de Mary Del Priore |
Antes de se erigir em líder messiânico do povoado baiano de Canudos, Antonio Conselheiro tentou uma pacata vida familiar. Sua mulher acabou fugindo com um policial. Esse episódio vergonhoso parece ter representado uma inflexão definitiva em sua vida. Conselheiro extraviou-se pelas veredas do Nordeste, ressurgindo como o "anacoreta sombrio" que Euclides da Cunha retrata em Os Sertões, o seu livro portentoso sobre os conflitos dos jagunços de Canudos com três expedições de tropas do governo, entre 1896 e 1897. Em uma dessas ironias tristes da história, a morte do próprio Euclides foi determinada por uma mulher infiel. Em 15 de agosto de 1909, no bairro carioca da Piedade, Euclides da Cunha, de 43 anos, entrou de arma em punho no quarto do cadete do Exército Dilermando de Assis, de 21, amante de sua mulher, Ana Emília da Cunha. Mesmo ferido, Dilermando, exímio atirador, conseguiu atingir e matar Euclides da Cunha.
Entre as obras dedicadas ao autor neste centenário de sua morte, há um ensaio histórico que, de certo modo, busca regenerar a reputação de Dilermando – Matar para Não Morrer (Objetiva; 176 páginas; 29,90 reais), da historiadora Mary Del Priore, autora da biografia Condessa de Barral – A Paixão do Imperador. Dois reputados estudiosos da obra do escritor fluminense lançaram recentemente coletâneas de ensaios – Francisco Foot Hardman, da Unicamp, com A Vingança da Hileia (Editora Unesp; 376 páginas), e Walnice Nogueira Galvão, com Euclidiana(Companhia das Letras; 328 páginas; 52 reais). Foi publicada ainda uma nova biografia literária,Euclides da Cunha: uma Odisseia nos Trópicos (tradução de Geraldo Gerson de Souza; Ateliê; 432 páginas; 72 reais), do americano Frederic Amory. E, daqui a duas semanas, a editora Nova Aguilar lança, em dois volumes, uma nova Obra Completa de Euclides da Cunha, com organização de Paulo Roberto Pereira, professor de literatura da UFF. Pereira diz que a nova edição revela poucos textos novos do autor. "Euclides foi basicamente um jornalista. Tudo o que ele escrevia era para ser publicado", diz. Mesmo assim, há alguns textos inéditos, como os reproduzidos nesta página – um surpreendente poema sobre o Carnaval, quase modernista na sua simplicidade e na sua ironia, e uma carta a Joaquim Nabuco, pedindo seu voto para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (Euclides de fato entrou na ABL em 1903, um ano depois da publicação de Os Sertões).
Militar, engenheiro, jornalista, republicano de primeira hora, explorador, Euclides da Cunha está entre os escritores que interpretaram e definiram o Brasil. Ainda que eivada de preconceitos da época – sobretudo, pelo determinismo racial –, Os Sertões é uma obra pioneira no diagnóstico do descompasso entre o país urbano e o agreste. Livro caudaloso, preciosista nas descrições e dramático nas cenas de batalha, é um dos momentos extremos da literatura em língua portuguesa. Euclides está na categoria de autores como o Padre Vieira, Machado de Assis e Eça de Queiroz: não há como conhecer todas as possibilidades que a língua oferece sem passar por ele. O gigantismo do autor contrasta com as circunstâncias vulgares de sua morte. De certo modo, Dilermando é uma sombra na história literária do Brasil.
O cadete tornou-se amante de Ana, conhecida familiarmente como Saninha, quando tinha 17 anos e ela, 33. No início de 1906, ao voltar de uma excursão de mais de um ano pelo Rio Purus, no Acre, Euclides encontrou a mulher grávida. Esse primeiro filho do casal de amantes morreu pouco depois de nascer, mas Saninha, na sequência, daria à luz Luiz, loiro como Dilermando em uma família de gente morena – "uma espiga de milho em meio a um cafezal", na expressão amarga do marido traído. Humilhado, o escritor decidiu acertar contas com Dilermando e a mulher numa ocasião em que esta passara a noite fora de casa. Conseguiu o endereço de Dilermando – e lá se foi, com o revólver no bolso, para morrer.
Matar para Não Morrer é uma reconstituição envolvente do crime e do rastro de dor que ele lançou sobre todos os envolvidos (com alguns deslizes literários: Mary Del Priore atribui a Coelho Neto o título de "príncipe dos poetas brasileiros", que na verdade pertencia a Olavo Bilac. Coelho Neto – que hoje ninguém mais lê – era o Príncipe dos Prosadores). "Muito se falou sobre o sofrimento da mulher na sociedade patriarcal brasileira. O caso de Euclides e Dilermando ajuda a entender o sofrimento masculino", diz a historiadora. A concepção machista da honra que só pode ser lavada com sangue está na raiz do ato tresloucado de Euclides. Tendo falhado o pai, coube aos herdeiros levar a vingança adiante: em 1916, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, disparou contra seu padrasto Dilermando – que se casara e constituíra família com Saninha – em um cartório no Rio. Dilermando saiu gravemente ferido, mas, mais uma vez, levou a melhor no tiroteio: matou Quidinho.
Dilermando foi inocentado das duas mortes, com a alegação de legítima defesa. A imprensa, porém, nunca o perdoou. Cobrava moralidade de uma Justiça que deixava livre o homem que seduzira uma pobre mulher desamparada e depois matara seu marido e filho. Apesar de tudo, Dilermando faria uma bela carreira militar, chegando a general. Seu irmão mais novo, Dinorah, teve sorte pior: envolvido na briga com Euclides, foi baleado nas costas. Os médicos, a princípio, não viram maior gravidade no ferimento. Poucos dias depois, Dinorah entrava em campo para disputar uma partida de futebol pelo Botafogo. Mas a bala, alojada próximo à coluna, acabaria aleijando o jovem atleta. Com 32 anos, Dinorah suicidou-se em Porto Alegre, atirando-se no Rio Guaíba.
Passados 100 anos, o violento episódio ainda parece capaz de incitar mansas dissensões acadêmicas. Compare-se, por exemplo, o livro de Mary Del Priore com a biografia de Euclides escrita por Frederic Amory, bem mais reticente no retrato de Dilermando. Amory alega até que a invalidez de Dinorah não foi causada pelo tiro de Euclides (não é muito convincente nessa argumentação). Mesmo os grandes homens não estão a salvo da vileza e da vulgaridade – tal parece ser a lição óbvia do assassinato de Euclides. Mas, visto com mais cuidado, mesmo esse enredo de traição suburbana tem lá sua transcendência, reforçada pela verdadeira tragédia grega de Quidinho, morto na tentativa de vingar o pai. "Tudo o que Euclides escreveu, a começar de Os Sertões, tinha essa nota de tragédia. E sua vida foi assim também", diz Paulo Roberto Pereira. Euclides da Cunha era gigante até na baixeza.
Euclides desconhecidoUm poema e uma carta inéditos, que sairão na Obra Completa (Nova Aguilar) do escritor Nestes três dias esplêndidos... Publicado na revista Fon-Fon em 18/2/1909 A Joaquim Nabuco: Saúdo respeitosamente a Vª. Excia. e comunicando-lhe que sou candidato à cadeira que vagou na nossa Academia de Letras em virtude do lamentável passamento do nosso compatriota Valentim de Magalhães – venho, obediente à praxe estabelecida, solicitar o seu voto, agradecendo-lhe de antemão um sufrágio que dará extraordinário brilho à minha investidura. Já tive a honra de enviar à Vª. Excia. o livro com o qual justifico a minha pretensão. Subscrevo-me com a mais elevada consideração, |
Um crime em abertoO que estava em jogo na troca de tiros que resultou na morte de Euclides da Cunha – e é tema do livro Matar para Não Morrer, de Mary Del Priore
2 - Euclides da Cunha, |