Hosmany Ramos zomba da lei
Fuga anunciada
Hosmany Ramos, o médico transformado em assassino
e assaltante, anuncia que vai fugir da cadeia e a polícia
nada faz. A quem interessar possa, ele informa que
está a caminho "de um país vizinho"
Laura Diniz
Fotos Alcyr Cavalcanti/Ag. O Globo e arquivo/AE | ASCENSÃO E QUEDA |
Henrique Manreza/Folha Imagem |
O ex-cirurgião plástico Hosmany Ramos, 61 anos, há muito não maneja um bisturi. Ex-bandido perigoso, aposentado por força da última prisão, em 1996, desde então também não pega numa arma. Uma característica, porém, ele mantém intacta desde a década de 70, quando seu nome ainda não havia migrado das colunas sociais para as páginas policiais dos jornais: o gosto por chamar atenção. Exibicionista serial, o ex-pupilo preferido de Ivo Pitanguy, cujo endereço oficial até a semana passada era a Penitenciária de Valparaíso, no interior de São Paulo, convocou entrevista coletiva no último dia 2 para anunciar que não pretendia cumprir o restante de sua pena, de 47 anos. Agraciado com o benefício da saída temporária da cadeia para passar as festas de fim de ano com a família, o ex-cirurgião declarou que, em "protesto contra as condições do sistema prisional brasileiro", havia decidido não voltar ao xadrez. Como a polícia nada fez para evitar que ele cumprisse a promessa, Hosmany deu no pé – e passou a ser considerado oficialmente foragido no último dia 3. Desde então, tem dado, por telefone, entrevistas diárias à imprensa, em que relata seus planos para o futuro. A VEJA, informou candidamente na quarta-feira: "Viajo amanhã para um país vizinho, onde vou trabalhar como médico de uma ONG internacional no atendimento a crianças carentes". Quem o ouvisse pensaria que se tratava de um cidadão livre, pagador de impostos e cumpridor de seus deveres falando – e não de um detento foragido e condenado, entre outras coisas, por homicídio, roubo e sequestro.
Não é a primeira vez que Hosmany "decide" deixar a cadeia. Em 1996, ele não retornou da saída temporária que lhe permitiu deixar o Instituto Penal Agrícola de Bauru para comemorar o Dia das Mães em família. Na ocasião, como agora, uma das primeiras providências que tomou ao se autoconceder a liberdade foi dar uma entrevista. Ao programa Fantástico, da Rede Globo, disse que pretendia fazer um curso de explosivos com o IRA, a então ativa organização terrorista da Irlanda do Norte. Hosmany gosta de parecer louco, mas, ainda que fosse (hipótese que seu prontuário desmente), estaria longe de ser um louco inofensivo. Prova disso é que, durante o período que durou sua primeira fuga, cerca de um mês, o ex-médico não foi visto praticando nenhuma atividade associada aos psicóticos, como rasgar dinheiro, por exemplo. Em vez disso, juntou-se a dois comparsas para improvisar o sequestro de um empresário. Capturado, perdeu o benefício da liberdade condicional a que teria direito em breve e foi condenado a outros 32 anos de prisão.
Como criminoso, pode-se dizer que Hosmany foi um ótimo cirurgião. O fato de ser um dos bandidos conhecidos presos há mais tempo no Brasil – nesse quesito, ele perde apenas para Chico Picadinho e praticamente empata com José Márcio Felício, o Geleião (veja quadro) – mostra que ele nunca teve grande sucesso no mundo do crime. No tempo em que atuava como cirurgião plástico, chegou a fazer, se não fortuna, ao menos fama. A bordo de carrões, frequentava festas da alta sociedade carioca e namorava as mulheres mais ricas e bonitas no Rio de Janeiro. Da sua lista de conquistas, fizeram parte as socialites Becki Klabin,Vera Bocayuva Cunha, Tania Caldas e Yonita Salles Pinto. Quando foi preso pela primeira vez, em 1981, namorava a jornalista Marisa Raja Gabaglia. Entre uma e outra cirurgia plástica, dedicava-se ao roubo (de joias, carros e um avião) e ao contrabando de carros importados. Sua prisão se deveu ao assassinato de dois cúmplices. Em três das muitas vezes em que tentou fugir da cadeia – sem a ajuda do benefício da saída temporária –, arquitetou planos tão pueris que não conseguiu passar do primeiro portão. Numa ocasião, quando se encontrava preso no extinto Complexo do Carandiru, tentou disfarçar-se pintando o rosto com chocolate em pó. Em outra, arrancou parte da (hoje escassa) cabeleira, na esperança de não ser reconhecido pelos guardas. Anos antes, havia tentado escapar vestindo-se de mulher. Todos os planos fracassaram.
Rogerio Marques/Valeparaibano/Pagos |
FIM DA FESTA |
Na penitenciária de Valparaíso, onde estava desde agosto, Hosmany costumava receber apenas esporadicamente visitas de familiares. Seu advogado, Marco Antônio Arantes de Paiva, disse não ter notícias de namoradas do ex-cirurgião nos últimos anos. "Acho que desde a morte da Marisa, em 2003, ele não se interessou mais por nenhuma mulher", afirmou. Desde 2006, Hosmany se corresponde com Anna Flávia Schmitt, de 28 anos, professora de ensino infantil e fundamental de Santa Catarina. Ela nega que seja namorada do detento e diz que ainda não o encontrou pessoalmente: "Sou vocacionada para a vida religiosa". A professora afirma que decidiu entrar em contato com Hosmany pela primeira vez com o objetivo de "consolá-lo", logo depois de vê-lo na TV durante a rebelião ocorrida na penitenciária de Araraquara.
Todos os anos, uma média de 7% dos presos beneficiados com a saída temporária de Natal e Ano-Novo no estado de São Paulo não retornam para a prisão |
A defesa do ex-cirurgião tenta diminuir sua pena alegando na Justiça que o tempo que ele dedicou para escrever seus oito livros deve ser contado como dias de trabalho. Por telefone, Hosmany disse que a "dificuldade para escrever na cadeia" pesou na sua "decisão" de novamente descumprir a lei e não voltar da saída temporária. Na penitenciária em que estava anteriormente, em Presidente Bernardes, ele ocupava uma cela individual. Transferido para Valparaíso, passou a dividir um alojamento com mais de oitenta presos. "Não conseguia mais me concentrar para escrever", reclamou. Hosmany também ficou insatisfeito ao ter negados seus pedidos de transferência para a capital.
Assim, no dia 23, deixou a prisão decidido a não mais voltar. Foi direto encontrar o filho Erik, que vive na Noruega e veio ao Brasil passar o Natal e o réveillon com ele. No dia 26, acompanhado do filho e da neta, filha de Erik, passou pela sede da editora que publica seus livros e retirou 200 dos cerca de 25 000 reais que tem a receber da empresa por direitos autorais. De lá, o grupo seguiu para Governador Valadares (MG), onde reside parte da família do ex-cirurgião, e, depois, para uma praia no Espírito Santo. A mãe de Hosmany, Anésia, que mora em Palmas (TO), não foi visitada. De volta a São Paulo, Hosmany contratou um assessor de imprensa, que convocou a entrevista coletiva na qual ele anunciou, por telefone, que não voltaria à cadeia. A polícia ignorou o aviso. A Secretaria de Segurança Pública justificou-se dizendo que não poderia prender Hosmany com base em uma declaração e que a outra opção, a de monitorá-lo, não foi considerada, dado que ele "não é o criminoso número 1 do estado" para merecer tamanho esforço. A economia de nada adiantou, já que, diante da repercussão do caso, a polícia foi obrigada a designar uma equipe especialmente para capturar o ex-cirurgião.
A saída temporária é um benefício previsto em lei para presos em regime semiaberto que apresentem bom comportamento e já tenham cumprido um sexto da pena (no caso dos primários). A cada ano, cerca de 7% dos beneficiados (20 514 no estado de São Paulo, neste ano) não retornam à cadeia. A fuga anunciada de Hosmany Ramos, bem como a estulta reação da polícia diante dela, não deverá ajudar a reduzir as estatísticas nos próximos anos.
Os bandidos brasileiros que, como Hosmany Ramos, estão presos há mais de duas décadas têm em comum a condenação por homicídio. Entre os mais conhecidos, o campeão de permanência na cadeia é Chico Picadinho, preso aos 23 anos
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Com reportagem de Kalleo Coura