Sunday, February 17, 2008

Os artigos: Eduardo Graeff -José Dirceu e carta DANIELA PINHEIRO


Vão-se os sonhos, ficam os anéis

EDUARDO GRAEFF

folha SP 24/1

Encarem a realidade: com todo o entusiasmo que proclamam pela Revolução Cubana, hoje o negócio de Lula e Dirceu é outro

"BURGUESIA burocrática" era como o historiador Caio Prado Jr. chamava o empresariado caudatário dos favores do Estado varguista. Fernando Henrique Cardoso falou em "anéis burocráticos" para se referir às relações especiais das grandes empresas com a área econômica do governo no tempo da ditadura. Delfim Netto foi senhor desses anéis, agenciando negócios e distribuindo proteção tarifária e subsídios como todo-poderoso ministro da Fazenda do general Médici. 
Os americanos chamam "crony capitalism" a alavancagem de negócios por relações pessoais e/ou troca de favores entre empresários e altos funcionários públicos. Eles depreciam nesses termos quase todas as variedades de capitalismo que não vestem o figurino liberal, do Japão à América Latina, passando pelos tigres asiáticos e pela África. Não que os Estados Unidos estejam livres da praga. Veja as ligações empresariais do clã dos Bush, para ficar num exemplo atual. 
Tudo isso me vem à cabeça a propósito de duas notícias recentes: reportagem da revista "Piauí" sobre as andanças de consultor internacional do ex-ministro José Dirceu; e a compra da Brasil Telecom pela Telemar, acertada na expectativa de que um decreto de Lula virá legalizar a transação. 
Foi Dirceu quem ligou uma coisa à outra. Ele mencionou para a revista uma conversa que teria tido com Lula sobre os milhões investidos pela Telemar na firma de videogames do filho do presidente. E citou entre seus clientes o empresário mexicano Carlos Slim, cuja Telmex teria sido preterida na compra da Brasil Telecom. 
Lula teria mandado Dirceu não "encher o saco" com o tema da sorte grande de Lulinha. Na certa se irritará de novo se for questionado agora. 
Chateação indelegável, já que precisam da assinatura dele no decreto que beneficia quem beneficiou seu filho. 
Chato mesmo é intuir que isso pode não ser a exceção, mas uma nova regra nas relações do governo com grandes empresas. Veja o que acontece no setor elétrico. 
Questionado sobre sua trajetória de revolucionário a consultor de empresas, Dirceu se queixou de que não teve escolha após perder o mandato de deputado e os direitos políticos. 
Quem sabe ele está esperando a chuva passar, como na encarnação de negociante que teve no interior do Paraná. Quando o sol da revolução voltar a brilhar no horizonte, ele pega um avião para Havana ou Recife e pede para o cirurgião: "Desfaz essa cara de consultor e implanta aí uma barba". 
Bizarro, mas improvável. Encarem a realidade, companheiros e companheiras: com todo o entusiasmo que proclamam pela Revolução Cubana, hoje o negócio de Lula e Dirceu é outro. Em 2002, quando contrataram os serviços de Marcos Valério e Duda Mendonça, fizeram uma opção séria. 
Seu mergulho no mundo dos negócios não é camuflagem passageira, é para toda a vida. Só que o mundo dos negócios que eles têm na cabeça não é bem o capitalismo liberal. Não sei como eles mesmos chamariam. "Capitalismo dos bons companheiros"? 
O sistema emergente pode não ter nome, mas tem justificativa e modelo: Coréia do Sul. Lá, o governo se lixa para a ortodoxia liberal. Intervém no mercado, banca vencedores, subsidia perdedores. A corrupção é grande, dizem. Mas o capitalismo coreano é um sucesso de crescimento e inovação. 
Esprema algum alto funcionário do governo Lula metido em altas transações e ele pode sair com a mesma história de Dirceu na "Piauí": facilitar negócios, abrir portas para investidores, é tudo pelo bem do Brasil. No caso da telefonia, para criar megaempresa nacional que faça frente às estrangeiras. Qualquer outro bônus é secundário perto da satisfação patriótica. 
Não tenho fé no capitalismo liberal. 
Nem sei bem por que o capitalismo não liberal é um sucesso na Coréia, um horror na África e, no Brasil de Delfim Netto, foi do sucesso à crise em dez anos. 
Duas coisas eu sei. Primeiro, a concorrência faz bem ao capitalismo, sobretudo ao consumidor. O sucesso da Coréia tem a ver, parece, com a capacidade que governo e grandes empresas tiveram de se organizarem para concorrer no exterior. Lula poderia assinar decreto para ajudar a Telemar a se expandir... no México, por exemplo. E não detonar as regras de concorrência da telefonia brasileira -herança bendita do governo FHC. 
Segundo, capitalismo não liberal não combina com democracia. Pois não se fia na estabilidade e impessoalidade das regras, mas em favorecimentos pessoais. E é muito arriscado fazer investimentos de longo prazo nessa base se pessoas e partidos no governo mudam a cada quatro ou oito anos. A não ser, talvez, se os negócios alavancados gerarem dinheiro para cooptar aliados, amaciar a imprensa, comprar eleições etc. Mas aí não estamos falando de democracia, não é? 
Não, pelo menos, da democracia pela qual lutamos. Será que esse foi outro sonho do qual os novos senhores dos anéis abriram mão? 


EDUARDO GRAEFF, 58, é cientista político. Foi secretário-geral da Presidência da República no governo FHC.

Os sonhos estão mais vivos do que nunca

JOSÉ DIRCEU

folha 13/2

O governo Lula, repito, recebeu uma herança maldita. Ainda são muitas as minas deixadas no caminho pela fatídica gestão anterior

A MENTIRA é um recurso inesgotável na política, desde que seus autores tenham acesso aos meios de comunicação para disseminá-la como fato. O célebre mantra do propagandista-chefe do nazismo, Joseph Goebbels, segundo o qual uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, continua a fazer escola. Fiz a constatação ao ler o artigo com o título "Vão-se os sonhos, ficam os anéis", publicado neste espaço, no último dia 24, assinado por Eduardo Graeff, secretário-Geral da Presidência no governo tucano do presidente Fernando Henrique Cardoso. 
No artigo, Graeff recorre a trecho de reportagem a meu respeito publicada na revista "Piauí", na qual erroneamente é associada ao filho do presidente da República, Fábio Luiz da Silva, critica minha a um jornalista por conta do acompanhamento estapafúrdio que fazia sobre o governo em seu trabalho jornalístico. Evidentemente, ao falar de reportagens erradas, com declarações atribuídas a mim e ao presidente sem que as tivéssemos prestado, eu não poderia estar me referindo a Fábio Luiz, que não é e nunca foi jornalista. 
Na reportagem, a revista registra um fato não ocorrido: uma reclamação minha ao presidente da República sobre negócios entre a empresa de seu filho, Gamecorp, e a Telemar. Desmenti isso à revista e em nota pública. O que fiz foi protestar, em diversos momentos, contra o tratamento leviano que vários meios de comunicação deram ao negócio absolutamente legal entre essas companhias, com o objetivo único de desgastar o chefe de Estado. 
Mas Graeff, em seu artigo, não se contentou em lançar mão de informação desmentida por mim. Ao fazê-lo, inventou episódios que nem sequer estão presentes na reportagem, ressaltando que eu teria mencionado "uma conversa com Lula sobre os milhões investidos pela Telemar na firma de videogames do filho do presidente". Essa mentira vulgar serve de escada para conclusão pré-fabricada pelo ex-secretário-geral da Presidência, de que trocamos, o presidente e eu, nossos compromissos de esquerda pelo "mundo dos negócios". Seu mote, para tanto, é o processo de aquisição da Brasil Telecom pela Telemar, que pode ser chancelado pelo governo nos próximos dias, especulando que tal decisão seria moeda de troca pela publicidade desta companhia na Gamecorp. 
A hipocrisia tucana não conhece limites. Quer dizer que a intervenção do governo na reestruturação da economia e dos monopólios, quando ocorre, é por motivação escusa? O que se deve concluir, então, das privatizações feitas pela administração FHC? Devemos procurar nas contas de ex-ministros e antigos auxiliares os motivos para o governo tucano ter dilapidado patrimônio público, desorganizado o Estado e travado o desenvolvimento do país? Bom assunto para a polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Além do mais, o crime de lesa-pátria, cometido pela coalizão PSDB-DEM ao vender empresas estatais na bacia das almas, é o mais hediondo de todos, porque atenta contra os direitos do povo e ameaça a soberania nacional. Em outras circunstâncias históricas, seria razão suficiente para os responsáveis por esses atentados contra os brasileiros estarem respondendo por suas malfeitorias na Justiça. 
O governo Lula, repito, recebeu uma herança maldita. Faz parte desse inventário macabro a abertura descontrolada de nossa economia e do sistema de telecomunicação ao capital internacional, a quem os tucanos revelaram inédita submissão. Não está em pauta, evidentemente, a recuperação do controle estatal sobre companhias privatizadas, mas é obrigação do governo intervir para bloquear e reverter a desnacionalização de setores fundamentais da economia. O desastre patrocinado pelo tucanato foi tão grave que, cinco anos após a posse inaugural do presidente Lula, ainda são muitas as minas deixadas no caminho pela fatídica gestão anterior. Esse é o pano de fundo que mobiliza a administração federal na discussão da compra da Brasil Telecom pela Telemar. 
No mais, como pode o senhor Graeff questionar meu direito de trabalhar para viver? Banido da vida institucional no curso da escalada patrocinada pelas forças conservadoras para derrubar o governo Lula, tenho que encontrar meu sustento profissionalmente. Esta é minha obrigação como pai e cidadão. Porque não me afasto das trincheiras e compromissos de toda a minha vida, gente como Graeff talvez preferisse que até esse direito me fosse arrancado, obrigando-me a um novo exílio ou à clandestinidade. 
Minhas contas foram devastadas pela Receita Federal: tenho como patrimônio a casa onde moro e somente sobrevivo se trabalhar, e muito. Ao contrário de tantos tucanos, os petistas não fazem, ao sair do governo, a impressionante mutação de professores e funcionários em banqueiros, financistas e plutocratas. Exatamente porque mantemos nossos compromissos históricos, nossa moral socialista e nossa missão no combate do povo brasileiro por sua libertação.

Painel do Leitor - FOLHA
José Dirceu
"No texto "Os sonhos estão mais vivos do que nunca" ("Tendências/ Debates", 13/2), José Dirceu afirma que cometi um erro numa reportagem publicada na revista "Piauí". 
No artigo, Dirceu sustenta que, quando falou de "Lulinha", ele se referiu a um jornalista, e não ao empresário Fábio Luiz da Silva, filho do presidente da República. Pelo contexto em que foram feitas, porém, as declarações do ex-ministro não davam margem a ambigüidades. Cheguei a lhe perguntar: "O senhor está falando do Lulinha da Gamecorp?". E José Dirceu respondeu: "É". Ele se referiu mesmo ao filho do presidente, e não ao jornalista Luís Costa Pinto, que, aliás, nunca foi conhecido pelo apelido de "Lulinha" por seus colegas e fontes do mundo político. 
O próprio Costa Pinto, numa entrevista à Folha (5/1/2008), disse que já não trabalhava na imprensa antes mesmo de o presidente Lula iniciar o seu primeiro mandato. Logo, era impossível que José Dirceu se referisse a ele, ou a uma reportagem de sua autoria, quando falou de "Lulinha"." 
DANIELA PINHEIRO, repórter da revista "Piauí" (Rio de Janeiro, RJ)

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