Cautela com os estímulos ao crédito - GUSTAVO LOYOLA
O Estado de S. Paulo - 15/10
O Relatório de Estabilidade Financeira, recentemente divulgado pelo Banco Central (BC), trouxe um diagnóstico favorável sobre a atual situação do Sistema Financeiro Nacional (SFN). Segundo o BC, apesar da presença de elevados riscos para a estabilidade financeira global, o nível de capitalização dos bancos brasileiros é confortável, tanto para enfrentar cenários macroeconômicos mais negativos quanto para se adaptar às novas exigências de capital impostas por Basileia III.
Entendimento menos otimista, porém, foi manifestado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em documento divulgado na semana passada, por ocasião de sua reunião anual em Tóquio. Para a instituição, o Brasil precisaria tomar cuidado com o elevado endividamento das famílias e empresas, resultado da rápida expansão do crédito verificada nos últimos anos.
Apesar do alto grau de conforto quanto à resiliência do SFN a cenários macroeconômicos adversos, e igualmente com relação à elevada qualidade da regulação e supervisão bancária no Brasil, as transformações recentes no mercado doméstico de crédito impõem ao regulador e às entidades reguladas novos desafios, notadamente o de lidar com o maior nível de endividamento das famílias e, simultaneamente, menores margens financeiras para absorção das perdas de crédito.
Acredito que o sistema bancário brasileiro está preparado para tal desafio. O bem-sucedido processo de retomada do crédito no Brasil, no período pós-estabilização, mostrou a capacidade de resposta dos bancos ao novo ambiente macroeconômico surgido após o Plano Real. Em especial, reformas no ambiente legal e regulatório propiciaram o lançamento de novos produtos de crédito, como o consignado, e a retomada das operações de financiamento habitacional. Além disso, o crescimento das carteiras de empréstimos e financiamentos das instituições financeiras foi suportado pelo aperfeiçoamento dos processos de concessão de crédito e de constituição de garantias, assim como de captura de informações cadastrais positivas e negativas de seus clientes potenciais.
Ocorre que as recentes e repetidas incursões voluntaristas do governo sobre o setor bancário - que vão muito além do campo da indispensável regulação prudencial - trazem certo grau de preocupação, notadamente porque sinalizam objetivos incompatíveis com a estabilidade financeira no médio e no longo prazos. Em especial, a ideia de utilizar o crescimento do crédito bancário como instrumento de política macroeconômica de curto prazo parece cheia de perigos, pelo risco de criação de bolhas de crédito, cujas consequências podem vir a ser muito negativas para a economia brasileira.
Como se sabe, o Brasil está em pleno processo de adoção das novas recomendações do Comitê de Basileia sobre o capital das instituições bancárias (Basileia III). Assim, nos próximos anos, o nível de capital exigido dos bancos brasileiros deve aumentar, assim como haverá restrições adicionais sobre os instrumentos subordinados de captação que poderão servir como base de capital.
Vale ressaltar que um dos principais objetivos do arcabouço regulatório de Basileia III é amortecer o caráter pró-cíclico do crédito bancário, inclusive pela criação de um colchão de capital nas épocas de bonança que seria utilizado para fazer frente a um aumento das perdas nos períodos de vacas magras. Esse tipo de exigência é decorrência direta das lições aprendidas na crise do subprime, que teve como uma de suas causas principais o relaxamento dos padrões de concessão de crédito pelos bancos no período de grande disponibilidade de liquidez nos mercados financeiros.
Agora, a insistência do Ministério da Fazenda em utilizar a aceleração do crescimento do crédito bancário como instrumento de ativação da demanda agregada, em especial por meio do uso dos bancos públicos, está na contramão do espírito da nova regulação de capital preconizada pelo Comitê de Basileia, ora em adoção pelo BC.
Por exemplo, a farta provisão de recursos a custo zero ou subsidiados pelo Tesouro Nacional às instituições bancárias federais - tanto por aumento de capital quanto por subscrição de dívida subordinada - subverte o princípio macroprudencial de limitação da expansão creditícia nas situações de afrouxamento monetário, inclusive porque distorce a correta precificação das operações de crédito. Tal política, se praticada de forma abusiva, pode induzir à seleção adversa, já que os tomadores de crédito de maior risco tenderiam a migrar para os bancos públicos, notadamente se tais instituições embarcarem numa política agressiva de conquista de market share amparada na abundância de recursos de capital providos pelo Tesouro.
Em suma, as recentes crises bancárias nos EUA e na Europa indicaram claramente a necessidade de manutenção de altos padrões na regulação e na supervisão bancária, além do emprego de instrumentos macroprudenciais para evitar a formação de bolhas de crédito. Ao estimular o crédito numa conjuntura em que este já cresce em torno de 10% reais a cada ano e na qual há um maior comprometimento de renda das famílias, o governo parece ignorar as lições duramente aprendidas pelos países desenvolvidos.