Saturday, June 19, 2010

Uma vitória da vida


Como os avanços notáveis nos tratamentos estão
derrotando o câncer e fazendo com que ele perca
a imagem sombria de predador. Para a sua desmitificação,
contribuem – e muito – os depoimentos de gente famosa,
como José Alencar, Hebe Camargo, Christina Applegate e
Lance Armstrong, que resiste à doença com bravura e otimismo


Adriana Dias Lopes

Istockphoto



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O câncer é aquele ônibus que
ninguém quer mas com que
se conta; não se corre atrás
dele, mas quando ele passa se toma

Os versos acima são de João Cabral de Melo Neto, morto em 1999 – não de câncer, mas de causas associadas a uma doença degenerativa. Poeta virtuoso, um dos maiores da língua portuguesa, João Cabral conseguiu condensar seu tema numa imagem cotidiana, de alcance universal: para além do alto grau de incidência da doença, a fatalidade com que o diagnóstico de câncer costuma ser recebido. De fato, está longe de ser uma banalidade ouvir que se é hóspede de um tumor maligno. Mas também é verdade que isso deixou de significar, necessariamente, a emissão de um atestado de óbito. Pegue-se, a título de exemplo, o caso do vice-presidente José Alencar. Em setembro do ano passado, em entrevista a VEJA, ele disse: "Estou preparado para morrer". Naquela ocasião, Alencar iniciava sua 11ª batalha contra um câncer na região abdominal, detectado em 2006. Com um prognóstico sombrio, a declaração à revista soou como a rendição de um homem até então otimista. De lá para cá, no entanto, Alencar apareceu mais 28 vezes nas páginas de VEJA – em meio, principalmente, a notícias políticas e econômicas. A quimioterapia a que ele vem sendo submetido tem dado resultados positivos. Os médicos não falam em cura, mas Alencar tem levado uma vida praticamente normal. Foi padrinho de casamento do irmão e chegou até a cogitar candidatar-se ao Senado nas eleições de outubro. O quadro clínico do vice-presidente ilustra não só a sua resistência física e emocional, como a evolução impressionante da medicina diante do câncer nos últimos dez anos.

Lailson Santos
Sobrevida (muito) maior
Em janeiro, a apresentadora Hebe Camargo, de 81 anos, foi diagnosticada com um câncer no peritônio, a membrana que reveste os órgãos da região pélvica e abdominal. A doença está controlada graças ao tratamento quimioterápico ao qual ela foi submetida. Dos anos 90 para cá, com o surgimento de medicações mais precisas contra esse tipo de tumor, as chances de sobrevida aumentaram 50%

"O câncer moldou a sua própria mitologia de um predador obsceno e demoníaco, um caçador sombrio e invencível", definiu o biólogo inglês Mel Greaves. A aura de obsceno, demoníaco e sombrio é difícil de cancelar, em que pese o comportamento de pessoas corajosas como Alencar. Invencível, contudo, o câncer não é mesmo, enfatize-se. Hoje, 75% dos casos flagrados em estágio inicial podem ser curados. Quarenta por cento a mais em relação ao que ocorria na década de 70. Isso, na média. O índice de remissão total no tratamento de um tumor como o de fígado, antes altamente letal, hoje é de 85% – contra 35% na década passada. Resultados tão exuberantes estão fazendo com que os pacientes comecem a falar abertamente da doença, com uma esperança que aviva em si próprios e em seus semelhantes a disposição para enfrentar o câncer – melhorando, assim, o grau de adesão às terapias, num círculo virtuoso que ajuda a elevar as estatísticas de cura. Nesse sentido, as celebridades atingidas pela doença têm dado um bom exemplo ao expor sua luta. "A batalha contra o tumor trouxe um novo sentido à minha vida", disse, em 2008, a atriz americana Christina Applegate, então com 36 anos, à rede de televisão ABC. Na entrevista que emocionou milhões de americanos, ela contou que havia sido submetida à extirpação total das duas mamas em decorrência de um câncer de origem hereditária. No ano seguinte, ela recebeu uma homenagem da revista americana People: foi capa da publicação na condição de "a mulher mais bonita do mundo". Recentemente, foi a vez de a apresentadora brasileira Hebe Camargo, de 81 anos, dar seu testemunho, relatando, "toda serelepe", como enfrentou a quimioterapia a que foi submetida para eliminar um câncer no peritônio, a membrana que reveste os órgãos da região abdominal. "Descobri que a doença não é o monstro de que tanto falam. É preciso acabar com essas besteiras", disse Hebe a VEJA.

Chris Floyd/Camera Press/Other Images
Genética contra os tumores
Aos 36 anos, em 2008, a atriz americana Christina Applegate anunciou ter passado por uma mastectomia bilateral – a retirada da mama onde o tumor foi encontrado e a extração preventiva da outra, sadia. Christina tomou essa decisão radical por ser portadora de uma alteração genética que funciona como uma condenação ao câncer de mama. Hoje, graças à profilaxia genética, a probabilidade de ela ter uma recidiva da doença gira em torno de 1% (sempre sobram células mamárias depois da mastectomia).

As notícias estão melhores também para os pacientes sem chance de cura. Hoje, no Brasil, há cerca de 170 000 homens e mulheres nessa condição. "Pelo menos a metade deles consegue manter uma rotina razoavelmente normal, por causa das novas medicações desenvolvidas pela oncologia", diz Sergio Simon, oncologista do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ou seja, podem tocar o dia a dia livres de dor e com mais autonomia. Um dos tumores mais agressivos e resistentes a tratamentos é o de pulmão em fase de metástase, quando já se alastrou para pelo menos outro órgão. Mesmo assim, a média de sobrevida de um paciente nessas condições pulou para dois anos. Na década de 90, era de apenas sete meses."Qualquer tempo a mais é essencial para que o doente tenha a oportunidade de apaziguar-se, pondo em ordem a vida prática, familiar e emocional", diz o oncologista Bernardo Garicochea, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul. Pode parecer pouco, mas a possibilidade de antever o fim da própria existência com tranquilidade é algo belo – desde que se adote a perspectiva do pensador romano Cícero, ecoada pelo francês Montaigne, segundo a qual "filosofar não é outra coisa que preparar-se para a morte".

Um dos caminhos de tratamento contra o câncer mais investigados pela medicina refere-se à criação de vacinas terapêuticas – medicamentos que estimulam o sistema imunológico no combate às células cancerosas. Há dois meses, a FDA, a agência americana de controle de remédios, aprovou a primeira dessas vacinas. Desenvolvida pelo laboratório Dendreon, a Provenge é destinada a pacientes com câncer de próstata. Nos testes, doentes com tumor em estágios avançados ganharam, em média, cinco meses a mais de uma vida relativamente boa. O entusiasmo dos médicos com a Provenge não se explica apenas pelo aumento da sobrevida dos pacientes. "Só de se revelar eficaz, essa vacina simboliza um marco nas terapias anticâncer", diz o oncologista Gustavo Guimarães, do Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. O maior feito dos inventores da Provenge foi ter vencido um grande obstáculo no desenvolvimento das vacinas terapêuticas: o de levar o organismo a identificar apenas as células cancerosas como agentes nocivos e, assim, passar a tentar destruí-las. "O corpo tem extrema dificuldade em reconhecer o câncer como um ser estranho, já que ele surge de células sadias", explica o médico Marcello Fanelli, também do Hospital A.C. Camargo.

A frente imunológica de combate ao câncer foi inaugurada nos anos 70, com a chegada ao mercado do interferon. Lançado originalmente para o combate de viroses respiratórias, o remédio logo teve seu uso ampliado para pacientes com tumores malignos, por ter se mostrado um potente estimulador do sistema de defesa do organismo. Mas, apesar de todas as esperanças depositadas no interferon, ele não se revelou eficaz. Ao contrário das novas vacinas, desenhadas para facilitar o reconhecimento das células cancerosas, ele não conseguia deter a proliferação dos tumores, porque sua ação era muito difusa. O interferon só é usado hoje como ultimíssima cartada contra tipos raros de câncer. Entre esses tumores estão alguns linfomas e o melanoma. O seu efeito, no entanto, é muito limitado.

Bravura e uma dezena de tratamentos
Desde 2006, quando recebeu o diagnóstico para o câncer na região abdominal, o vice-presidente José Alencar, de 78 anos, vem resistindo bravamente à doença. Está no seu 11º tratamento. Ele já foi submetido a cirurgias agressivas, sessões de radioterapia e até a um medicamento ainda em fase experimental. Os médicos não falam em cura, mas Alencar tem conseguido levar uma vida praticamente normal. Dez anos atrás, mesmo um paciente com tanta coragem como ele não teria como enfrentar a doença

Para desenvolverem a vacina Provenge, seus idealizadores escolheram trabalhar com a célula CD54, uma proteína do linfócito responsável por disparar o alarme do sistema imunológico contra a presença de um corpo estranho no organismo. Eles a marcaram com uma proteína criada em laboratório muito semelhante à PAP, encontrada em 95% dos tumores de próstata. Ao ser injetada no paciente, a CD54 modificada ensina as outras células de defesa a identificar como agente agressor aquelas que contêm a proteína PAP. A Provenge representa uma conquista e tanto, mas ela demorará a se tornar um tratamento de rotina. Suas três doses custam 98 000 dólares. Isso porque seu processo de fabricação é complicado, visto que as CD54 a ser modificadas precisam ser retiradas de cada paciente.

Estudam-se vacinas terapêuticas para glioma, o tipo mais comum e letal de tumor de cérebro (que vitimou o senador americano Ted Kennedy), melanoma e cânceres de pulmão e mama. Elas foram um dos assuntos de maior destaque durante o 46º Congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco), realizado há três semanas em Chicago, nos Estados Unidos. Um dos trabalhos que alvoroçaram os participantes foi o da vacina ipilimumabe, contra o melanoma, do laboratório Bristol-Myers Squibb. Os últimos resultados mostraram que a ipilimumabe pode dobrar a expectativa de vida de pacientes vítimas da doença em estágios avançados. Isso significa dois anos a mais, em média, em comparação com os doentes submetidos a tratamentos convencionais. A vacina contra o glioma, batizada pelo laboratório Pfizer de CDX-110, impediu a progressão da doença por, em média, cinco meses. Vale repetir: por enquanto, o grande mérito de tais vacinas, muito mais do que o aumento da sobrevida em si, é a comprovação de que a imunoterapia é um caminho viável na luta contra o câncer.

Além das vacinas, existem 295 novos medicamentos em estudo contra os mais diversos tipos de câncer – o triplo em relação há dez anos. Eles são quimioterápicos e, em grande parte, pertencem ao grupo das terapias-alvo – que impedem a proliferação das células tumorais, sem afetar as células saudáveis. Com esse mecanismo, reduzem-se enormemente os efeitos colaterais. Os primeiros remédios dessa classe surgiram no início dos anos 2000. Entre os mais utilizados estão o Avastin (contra os tumores de intestino, mama e rim), o Erbitux (intestino), o MabThera (linfoma), o Herceptin (mama), o Nexavar (fígado e rim) e o Sutent (rim).

Com o aprimoramento da análise genética dos tumores, tais medicamentos da terapia-alvo são o primeiro passo rumo ao tratamento individualizado – um sonho dos oncologistas, visto que, não bastasse haver 802 tipos de neoplasia, tumores idênticos podem responder de formas diferentes a um mesmo procedimento. Veja-se o caso do Erbitux. Em 2007, um ano depois de ter sido lançado, descobriu-se que os pacientes com câncer de intestino em fase avançada portadores de uma mutação no gene KRAS, específica de alguns tumores no órgão, não respondem ao medicamento. Quatro em cada dez doentes apresentam essa alteração genética. Ou seja, ao abandonarem um tratamento ineficaz, eles não perdem tempo para tentar buscar armas mais efetivas contra o seu problema. Na conferência em Chicago, foram apresentados resultados de um estudo com o remédio crizotinib, contra câncer de pulmão. Fabricado pelo laboratório Pfizer, ele está na fase dois de pesquisa, aquela que atesta a eficácia e a segurança do produto. O novo medicamento destina-se a pacientes cujo tumor possui uma mutação no gene ALK. Diz o oncologista Paulo Hoff, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo: "A personalização dos tratamentos pode ser a peça que faltava para entender esse quebra-cabeça complexo chamado câncer".

Jeff Ridel/Contourphotos.com/Getty Images
A cura possível
Aos 25 anos, o ciclista Lance Armstrong era um dos maiores campeões do seu esporte, quando foi diagnosticado com câncer nos testículos A doença já estava em fase avançada e havia atingido o cérebro, os pulmões e a região abdominal. Armstrong, então, passou por duas cirurgias: uma para a retirada de tumores nos testículos e uma no cérebro. Além disso, foi submetido a quatro meses de quimioterapia. Pacientes como Armstrong, dez anos antes, não sobreviveriam a esse quadro. A cura do ciclista se deve em grande parte ao aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas e à ação mais específica dos medicamentos modernos – que, catorze anos depois, estão ainda mais eficientes.

Com reportagem de Carolina Romanini

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