Saturday, June 12, 2010

O preferido dos falsários


Um novo levantamento mostra que nenhum pintor brasileiro
foi alvo de tantas falsificações quanto Portinari. As cópias
chamam atenção não só pela quantidade, como pela péssima qualidade


Marcelo Bortoloti

Fotos Acervo Projeto Portinari
IMITAÇÕES TOSCAS
Em Meninos com Baú (à esq.), o personagem mais alto tem uma perna maior que a outra; já o quadro Retrato de Mulher (à dir.) peca pela falta de perspectiva


Poucos pintores no país produziram tantos quadros e desenhos quanto o paulista Candido Portinari (1903-1962), o mais popular entre os modernistas brasileiros. Nos anos mais prolíferos de sua carreira, entre 1930 e 1960, ele chegou a pintar, em média, uma nova tela a cada três dias, perfazendo uma coleção de 5 075 obras – duas centenas delas avaliadas hoje em mais de meio milhão de reais. É justamente pela extensão de seu trabalho e pelo valor alcançado por suas telas que Portinari se tornou também o pintor brasileiro mais falsificado de todos os tempos. Um novo levantamento conduzido pelo Projeto Portinari, sediado no Rio de Janeiro com o propósito de catalogar e conferir selos de autenticidade às obras do artista, traz à luz um número espantoso: foram interceptadas nada menos que 672 telas falsificadas do pintor, que, no ranking dos mais copiados no Brasil, vem seguido de Tarsila do Amaral e Alfredo Volpi (veja o quadro na pág. 144). Tais cópias chegaram ao Projeto Portinari pelas mãos de colecionadores, marchands e até pelas dos próprios falsários, todos em busca da autenticação das telas – alguns deles desavisados, outros tantos de má-fé. Foi ali que os quadros passaram pelo crivo de um grupo de técnicos aptos a atestar sua veracidade. À frente do projeto, o matemático João Candido Portinari, o único filho do pintor, diz: "É surpreendente como tantas falsificações malfeitas conseguiram se passar por telas verdadeiras no mercado".

O conjunto de cópias de Portinari expõe uma indústria de falsificações no Brasil que nem de longe se aproxima da profissionalização das grandes quadrilhas internacionais – tão primários são os erros nos quadros. O atual levantamento chama atenção para o fato de parte dos criminosos revelar completo desconhecimento dos métodos do artista. Entre as décadas de 30 e 40, por exemplo, Portinari cultivava o hábito de confeccionar suas próprias telas, combinando tecido de algodão e uma mistura de gesso com cola. A despeito disso, muitos falsários usaram como base para suas imitações as telas tradicionais. Eles também abusam de tinta acrílica, outro absurdo. Hoje largamente utilizada, essa tinta só aportou no Brasil em 1963, quando Portinari já havia morrido. Veem-se ainda frequentes deslizes quanto às cores e às proporções das figuras. No rol de cópias do pintor, emergem dois tipos de falsificação: aquelas que se apropriam dos traços e da temática do artista para criar um quadro inteiramente novo e as que apenas imitam uma tela já existente – estas mais fáceis de detectar.

O flagrante amadorismo em ambos os casos faz refletir sobre o estágio incipiente de evolução do mercado brasileiro de artes plásticas. Afirma a especialista Cristina Penna: "Espanta como tantos marchands inexperientes compram essas falsificações primitivas achando estar realmente diante de uma peça verdadeira e, depois, as vendem a colecionadores com menos cultura ainda na área". Nesse cenário, é bem-vindo o recente surgimento no Brasil dos chamados catálogos raisonnés, em que aparecem listados cronologicamente e em detalhes todos os trabalhos de autoria comprovada de um artista. No mercado internacional, esses catálogos foram se tornando peças cruciais à medida que emergia um novo grupo de investidores em artes (tão ávido quanto desinformado), incentivado pela rápida e expressiva valorização da pintura a partir dos anos 80. "Não há maneira mais simples e acessível de aferir a veracidade de um quadro", resume Jones Bergamin, diretor da Bolsa de Artes. Já existem 1 000 desses catálogos no mundo, abarcando nomes como Renoir, Modigliani, Jackson Pollock e Picasso. O primeiro brasileiro contemplado com uma publicação do gênero foi justamente Portinari, em 2004. Trata-se de uma coleção de cinco volumes, que somam mais de 2 000 páginas.

Quanto mais alto o valor que a obra de um pintor atinge no mercado, maior o risco de ele se tornar vítima dos falsários. É o que explica o fato de Pablo Picasso, autor de Nu, Folhas Verdes e Busto– quadro que alcançou neste ano o maior preço já registrado num leilão, 106 milhões de dólares –, figurar entre os artistas mais copiados. Picasso ombreia com o catalão Salvador Dalí, que, no fim da vida, mantinha o estranho costume de assinar telas em branco. Foi sobre muitas delas que, mais tarde, os falsários viriam a fazer suas pinturas, cravando um número superior a 2 000 obras fajutas. Figura do impressionismo francês, Camille Corot é bem menos valorizado que Picasso ou Dalí, mas encabeça o ranking mundial das falsificações, com surpreendentes 10 000 quadros, por duas peculiaridades de sua obra, para as quais os especialistas lançam luz: dedicados a temas bucólicos, seus quadros não só vendem mais rapidamente que a média como, em razão de seu estilo, são mais fáceis de imitar. Sob a mira de críticos que o tachavam de monotemático, pelo abuso das telas em que retrata o trabalhador como um sujeito oprimido, Portinari morreu intoxicado pelas tintas, aos 58 anos, já como um dos mais valorizados artistas da história da pintura brasileira. Tornou-se assim um alvo natural para os falsários. O novo levantamento mostra que há pelo menos quatro décadas cópias toscas de suas telas circulam no mercado – crime que até hoje ficou impune.

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