Saturday, May 01, 2010

Se for fácil não vale



Uma sul-coreana tornou-se, na semana passada, a primeira mulher
a escalar os catorze picos mais altos do mundo – pelo menos é o que ela diz.
Falta convencer os outros alpinistas e uma velhinha de Katmandu


Juliana Cavaçana

Divulgação


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Como em toda disputa esportiva de alto nível, no alpinismo cada conquista inédita serve de parâmetro para os próximos desafios. Por isso, os puristas do esporte torceram o nariz para a cena, transmitida ao vivo pela TV da Coreia do Sul na terça-feira passada, da sul-coreana Oh Eun-Sun fincando a bandeira de seu país no topo do Monte Annapurna I, de 8 091 metros, no Nepal. Oh reivindicou, com esse feito, o título de primeira mulher a escalar todas as catorze montanhas do mundo com mais de 8 000 metros de altitude. Isso pode até ser aceito pelos livros de compilação de recordes, mas não pela comunidade internacional de alpinistas. A conquista de Oh é contestada por três razões principais. A primeira é que, nas subidas e descidas, ela respira com o auxílio de tubos de oxigênio para compensar a falta desse gás no ar rarefeito das altas montanhas. O italiano Reinhold Messner já provou que esse recurso é desnecessário ao se tornar, em 1986, o primeiro homem a subir os catorze picos mais altos do mundo, todos sem o uso de oxigênio suplementar. A segunda razão pela qual Oh é criticada refere-se à falta de provas confiáveis da sua ascensão ao Kanchenjunga, de 8 586 metros, no ano passado. O terceiro motivo para desconfiança é que Oh nunca conversou com a americana Elizabeth Hawley, uma senhora de 86 anos que mantém o registro mais confiável das expedições no Himalaia. Todo alpinista que quer ser respeitado pelos seus pares, após voltar das escaladas, se submete ao crivo de Elizabeth.

Outras duas esportistas, a espanhola Edurne Pasabán e a austríaca Gerlinde Kaltenbrunner, disputam o privilégio de ser as primeiras a completar o Grand Slam do alpinismo. Gerlinde, para quem ainda faltam dois picos de mais de 8 000 metros por alcançar, é a preferida dos puristas. Ela escala sem tubos de oxigênio, opta sempre pelas rotas menos usadas e faz questão de carregar o próprio equipamento – o que demanda muito mais energia na subida. Bem diferente de Oh, sempre acompanhada de sherpas, como são chamados os nepaleses contratados para carregar o equipamento da expedição. Oh também dava preferência às rotas mais fáceis e costumava chegar de helicóptero aos acampamentos-base, situados no limite entre a rocha e a neve. Isso lhe dava mais agilidade para ir de uma montanha a outra, enquanto Gerlinde e, em algumas ocasiões, Edurne gastavam dias de viagem a pé. Tanto apoio logístico permitiu que a sul-coreana subisse nove dos catorze cumes em dois anos, em comparação à média de dois ou três picos por ano das adversárias. "Subir os catorze picos tem seus méritos, seja do modo que for, mas não acho que Oh tenha estabelecido um recorde", diz Waldemar Niclevicz, o primeiro brasileiro a conquistar o Everest, ao lado de Mozart Catão e com ajuda de oxigênio suplementar. "O fato de ela ter chegado primeiro não significa que seja a primeira", avalia Niclevicz, também empenhado em completar o circuito dos 14+ (faltam-lhe sete picos).

A espanhola Edurne Pasabán, que na semana passada se preparava para escalar sua 14ª montanha da lista, foi uma das que mais se empenharam em questionar a conquista da sul-coreana. Edurne pôs em dúvida a veracidade da fotografia de Oh no cume do Kanchenjunga. A imagem divulgada pela sul-coreana mostra uma pessoa totalmente escondida sob uma roupa de frio, máscara e óculos, em meio a uma nevasca. É impossível ver o rosto de Oh, tampouco reconhecer o cenário. A acusação foi repetida pelo alpinista sul-coreano Huh Young-ho, que também desconfiou da velocidade de ascensão da conterrânea. Oh afirma ter escalado os últimos 500 metros do Kanchenjunga em três horas e meia, sem o auxílio de tubos de oxigênio e debaixo de uma nevasca. Para Huh, isso é impossível. "A não ser, é claro, que estejamos diante de uma supermulher", disse ele. O alpinismo é propício para a briga de egos porque se trata, provavelmente, do único esporte em que o árbitro é o próprio atleta. Para obter o reconhecimento internacional, o que conta é a palavra do esportista, mais algumas provas refutáveis, como o testemunho de guias e fotografias tiradas no cume – sujeitas a manipulações.

Como não existe uma Fifa do alpinismo para dar objetividade à definição dos verdadeiros recordistas e campeões da modalidade, Elizabeth Hawley, uma jornalista americana radicada no Nepal há cinquenta anos, tornou-se uma espécie de juíza honorária das expedições no Himalaia. Embora nunca tenha alcançado o pico de uma montanha, Elizabeth entrevista todos os alpinistas que reivindicam a subida aos cumes mais altos da cordilheira e consegue saber, durante a conversa, se alguém está mentindo. Seu questionário inclui perguntas sobre o clima no momento da escalada e sobre o que o montanhista viu pelo caminho. A americana é tão respeitada que o prefácio de sua biografia foi escrito pelo neozelandês Edmund Hillary, o primeiro homem a pisar no topo do Everest, em 1953. (Na verdade, um dos dois primeiros, já que estava acompanhado do sherpa Tenzing Norgay.) "Nunca falei pessoalmente com Oh Eun-Sun", disse Elizabeth a VEJA. "Estou aguardando sua visita para descobrir por que os outros alpinistas duvidam dela." A sul-coreana pode até conseguir convencer a todo-poderosa Elizabeth da conquista do Kanchenjunga. Só não poderá evitar que seu feito seja catalogado pela americana como tendo sido realizado com a ajuda de oxigênio – um demérito, obviamente. Os tubos de oxigênio influenciam tanto no sucesso da escalada que, até dezembro passado, eram considerados doping pela Agência Mundial Anti-Doping. O equipamento foi retirado da lista proibida para evitar acidentes. Acima dos 8 000 metros de altitude, a quantidade de oxigênio disponível no ar é um terço da existente no nível do mar. Por isso, há o risco, muitas vezes letal, de o esportista sofrer um edema cerebral ou pulmonar. Esse fato não faz com que a façanha de Oh seja mais respeitada. "Há pessoas que sobem com gente empurrando por trás e gente puxando pela frente", diz o alpinista brasileiro Guilherme Setani. Para ter mérito, é preciso ser difícil.

Fotos Raul Urbina/Getty Images e Divulgação








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