Saturday, May 22, 2010

Antes da música, muito barulho


Relançado em uma edição especial, Exile on Main St., dos Stones, foi criado em um ambiente de devassidão babilônica.É um dos discos malditos da mitologia roqueira – e a obra-prima da banda


Sérgio Martins

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Era 1971, e o caos reinava numa casa do sul da França que servira de bunker para os nazistas na II Guerra. O anfitrião, entorpecido pela heroína, dirigia perigosamente pelas ruas da cidade e chegou a ameaçar um casal de turistas com uma faca. Sua mulher oferecia drogas até para as babás do filho. E os demais hóspedes formavam uma trupe indômita, que instaurou um clima de vale-tudo sexual. Foi nesse ambiente de devassidão babilônica que o guitarrista Keith Richards – então casado com a modelo Anita Pallenberg – e seus convidados, os Rolling Stones, criaram um dos mais influentes álbuns do rock. Exile on Main St., que acaba de ser relançado em edição especial, com dez faixas inéditas e um DVD com um documentário sobre as gravações (imperdoavelmente ausente na edição brasileira), é um disco emblemático. Poucas vezes o grupo inglês soou tão sujo e sem adornos, em canções que iam do blues ao rock cru. E nunca mais os Rolling Stones reuniriam composições tão espetaculares em um único álbum. Alguns pagaram caro por isso. O guitarrista Mick Taylor chegou limpinho ao refúgio francês. Saiu viciado em heroína. Deixaria a banda três anos depois. Na mitologia do rock, Exile tem seu lugar entre os discos "malditos" – aqueles que são gravados em meio a consumo desenfreado de drogas e choque de egos inflados.

Há exemplos ainda mais lapidares: Smile, dos Beach Boys, é tão maldito que não chegou a ser gravado pela banda. Depois do elogiado Pet Sounds, de 1966, Brian Wilson, líder criativo do grupo, afundou-se nos alucinógenos e não conseguiu mais pôr suas ideias em prática – ou realizou só as piores delas, como gravar latidos de cachorro. No lugar do projetado Smile, em 1967 apareceu Smiley Smile, um álbum irregular feito em parte com sobras de Pet Sounds. Em carreira-solo, Wilson lançaria sua versão de Smile, quarenta anos mais tarde. Poucos anos depois, também os Beatles viveriam dias de tensão para gravar Let It Be – agravada pelas hostilidades palpáveis provocadas pela presença de Yoko Ono, a mulher de John Lennon. Em 1970, quando a gravadora EMI afinal lançou o disco, a banda já se havia desfeito. The Wall(1979), do Pink Floyd, é outra obra de um grupo em vias de dissolução. Do alto de sua egotrip, o baixista Roger Waters demitiu o tecladista Richard Wright e passou a falar com os outros membros da banda por intermédio do produtor Bob Ezrin – que também não estava em seus melhores dias, por causa de um divórcio. O pior dos mundos, porém, se dá quando brigas, estrelismo e abuso de substâncias se combinam, como ocorreu em Be Here Now, do Oasis. O clima era tão ruim que alguns dos músicos tocavam com desleixo apenas para boicotar o arrogante Noel Gallagher, principal compositor do grupo, que andava se achando o gênio do pop.

Talvez não haja disco mais maldito, porém, do que Presence (1976), do quarteto inglês Led Zeppelin. A relação dos músicos até ia bem, mas a bruxa andava solta: o vocalista Robert Plant sofreu um acidente de automóvel na Grécia e, depois de meses imobilizado na cama, gravou em uma cadeira de rodas. O guitarrista Jimmy Page quebrou um dedo e teve de tocar sedado. E a turnê do álbum foi interrompida quando um vírus raro matou Karac, filho de Plant. Presence é um dos trabalhos mais fracos do Led Zeppelin – ao passo que Exile é um título essencial dos Stones. Como em qualquer obra artística, o saldo final, sempre imponderável, não parece depender das circunstâncias da criação. O rock, porém, vive tanto do som quanto da lenda, que se reforça com esses casos de tumulto no estúdio. O barulho, enfim, precede a música.

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