Tempestade cerebral sob controle
A crise de epilepsia é uma experiência aterradora. Sua vítima perde o controle sobre os movimentos, as sensações e os sentimentos. A boca espuma e os olhos piscam alucinadamente. Quando o ataque cessa (dura dez minutos, em média), o corpo dói como se tivesse sido surrado por horas seguidas. A lembrança da convulsão é forte demais para ser cancelada, e o doente passa a viver na expectativa de que outras ocorram. Com 2 milhões de doentes no Brasil, a epilepsia é caracterizada por um descompasso elétrico nos circuitos cerebrais. Nos momentos de crise, é como se uma tempestade atingisse o cérebro, comprometendo as conexões entre os neurônios. Tida como a doença neurológica mais antiga da qual se tem registro, a epilepsia esteve sempre cercada por mitos, crenças – e preconceitos. Nos últimos anos, a medicina tem obtido conquistas gigantescas no tratamento da doença. Hoje, 90% dos pacientes conseguem se livrar dos acessos epiléticos. Uma das mais promissoras frentes de estudo da epilepsia foi aberta recentemente por pesquisadores italianos do Instituto de Pesquisa Farmacológica Mario Negri, em Milão. Sob a coordenação da neurofarmacologista Annamaria Vezzani, eles comprovaram a associação entre a proteína anti-inflamatória HMGB1 e a ocorrência das crises epiléticas. Publicado na revista científica americanaNature, o trabalho foi feito com ratos de laboratório e mostrou que o cérebro dos animais epiléticos continha HMGB1 em excesso. Além disso, a equipe de Annamaria conseguiu demonstrar que a proteína é capaz tanto de deflagrar uma crise de epilepsia quanto de intensificá-la. Quando a ação da HMGB1 foi bloqueada, as cobaias doentes não foram acometidas por ataques. O próximo passo será estudar os efeitos da proteína em seres humanos. "Nossa descoberta é o primeiro grande passo rumo ao desenvolvimento de remédios com mecanismo de ação completamente diferente dos que existem atualmente para o controle da doença", disse Annamaria a VEJA. Pode estar aí a esperança para os 9% de pacientes que não respondem a nenhum tipo de tratamento. Com os recursos disponíveis, eles conseguem, na melhor das hipóteses, ter as crises minimizadas – ou menos intensas ou mais esporádicas. Há três formas de controle dos ataques epiléticos. A primeira (e à qual respondem 70% dos doentes) é o uso de medicamentos. Dos mais antigos aos mais modernos, os anticonvulsivantes visam a regular a atividade elétrica do cérebro. Alguns estimulam a produção do neurotransmissor Gaba, substância responsável por reduzir o ritmo de funcionamento dos neurônios. Outros inibem a síntese dos neurotransmissores glutamato e aspartato, associados à aceleração da atividade neural. E há ainda os remédios que fazem as duas coisas ao mesmo tempo. A epilepsia é uma daquelas doenças em que o melhor tratamento varia muito de paciente para paciente, em que a escolha da medicação mais adequada é quase sempre resultado de uma sucessão de tentativas e erros. Para se ter uma ideia dos progressos nessa área, nos anos 60, os anticonvulsivantes funcionavam apenas para metade dos doentes. O avanço se deu com a criação de moléculas mais precisas – o que levou a uma redução dos efeitos colaterais. O tratamento com remédios, na maioria das vezes, dura pelo menos cinco anos. "Esse é o tempo mínimo para que o cérebro se habitue à estabilidade elétrica", diz o neurocirurgião Arthur Cukiert, chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital Brigadeiro, em São Paulo. Depois desse tempo, a cura é completa na maioria dos casos. Isso só é possível porque o cérebro é um órgão de enorme plasticidade – ou seja, tem capacidade de se adaptar a novos mecanismos de funcionamento. A mesma lógica vale para a relevância do tratamento precoce. "Quanto antes um paciente começar um tratamento, menos tempo seu cérebro ficará sujeito às descargas elétricas", diz o médico. A outra linha de abordagem das crises epiléticas é a cirúrgica. Indicada para os pacientes refratários aos medicamentos, ela consiste ou na retirada da região cerebral doente ou na implantação de eletrodos próximos ao cérebro ou dentro dele. Tais dispositivos disparam pequenos choques de modo a regular a atividade elétrica dos neurônios. Victoria Miranda Costa teve sua primeira crise aos 7 anos. Desde então e até o fim de 2008, quando completou 9 anos, a menina sofria de dois a três ataques por dia, apesar dos medicamentos. Os acessos vinham sem aviso. Aluna aplicada, por causa da doença, Victoria perdeu o 2º ano do ensino fundamental. Causada por um estreitamento dos vasos sanguíneos cerebrais, a epilepsia da menina só foi controlada com cirurgia. "Agora sou outra garota", diz Victoria. "Eu não tenho mais vergonha de ir à escola ou passear com minhas amigas, porque sei que não corro mais o risco de entrar em crise." Mesmo os pacientes submetidos à cirurgia têm de manter os medicamentos por pelo menos três anos – em doses, no entanto, muito menores. Depois de ter passado por uma operação para a retirada da porção cerebral doente, a secretária Sueli Mesquita, de 47 anos, tem dois motivos para comemorar. "Não só estou livre das crises, como também dos efeitos colaterais dos remédios", conta ela. "Por causa deles, eu vivia sonolenta, dormindo pelos cantos." As crises de epilepsia podem ser causadas por qualquer tipo de lesão no cérebro – de um tumor ou um derrame a um problema congênito ou um trauma. "Por alguma razão ainda não completamente explicada, o aumento da atividade elétrica é uma forma de os neurônios reagirem a uma agressão", diz Luís Otávio Caboclo, neurologista da Universidade Federal de São Paulo. Ao longo da história, na maior parte do tempo, a epilepsia esteve associada a possessões demoníacas. Na Bíblia, no Evangelho de Marcos, um garoto epilético é levado a Jesus. "Mestre, trouxe-te o meu filho, que está possuído por um espírito mau", disse-lhe o pai. O menino, de acordo com o texto bíblico, agitava-se com violência, revolvia-se e espumava. Jesus o tomou pelas mãos e o ergueu, curando-o, de acordo com o relato. Na Idade Média, a epilepsia era confundida com feitiçaria. Os historiadores defendem que muitas das mulheres jogadas nas fogueiras da Inquisição como bruxas eram epiléticas. Em meados do século XIX, muitos médicos acreditavam que a epilepsia fosse causada pelo hábito da masturbação. O primeiro medicamento efetivo contra a doença foi descoberto, aliás, em função de sua ação sobre a libido. O médico inglês Charles Locock, em 1857, escreveu que o brometo de potássio seria um ótimo anticonvulsivante porque inibia o desejo sexual. A substância, como se veria mais tarde, deixava o doente inapetente para o sexo por causa de seu poder sedativo – o que explica sua eficácia no controle das crises. A manifestação clássica dos ataques epiléticos, aqueles em que o doente sofre convulsões, ocorre apenas quando o cérebro não consegue frear o descompasso elétrico e ele se espalha por todo o órgão. O ato de piscar em ritmo acelerado é sinal de que a descarga elétrica está passando pelo tronco cerebral, a estrutura responsável pelos movimentos primitivos, incluindo o das pálpebras. A espuma que sai da boca, ainda considerada "contagiosa" por muita gente, nada mais é do que o acúmulo de saliva causado pela superestimulação das glândulas salivares. Ela representa os últimos momentos da convulsão, quando o organismo está retomando suas funções. Nesse momento, a faringe relaxa, liberando a passagem do ar – que, misturado à saliva, forma a espuma. No Hospital Brigadeiro, em São Paulo, 10% dos acompanhantes dos pacientes epiléticos têm os dedos feridos com alguma gravidade na tentativa de segurar a língua do doente para que ele não morra engasgado. Há que frisar que esse perigo não existe. Durante um ataque, a língua continua presa em seu lugar. Ela só enrijece – assim como ocorre com todos os músculos do corpo. Na imensa maioria das vezes, as crises epiléticas não danificam os neurônios. Em 3% dos casos, porém, os ataques têm duração superior a meia hora ou ocorrem um atrás do outro. Nessas situações, há o risco de perda de neurônios e, assim, do surgimento de sequelas. Foi o que aconteceu com Lauren Axelrod, filha de David Axelrod, conselheiro político do presidente americano Barack Obama. Hoje com 28 anos, Lauren teve sua primeira crise aos 7 meses. Chegou ao impressionante número de 25 ataques por dia. "Ela acordava depois de uma crise apenas a tempo de sentir o próximo chegando e gritar de pavor para mim: ‘Mamãe... Não... Faça isso parar’", lê-se num artigo publicado por sua mãe, Susan, na revista americana Newsweek. Até os 17 anos, Lauren experimentou 23 tipos de remédio e foi submetida a uma cirurgia para a implantação de eletrodos. As crises só foram aplacadas em 2000, quando a jovem foi medicada com levetiracetam, um remédio recém-chegado ao mercado. Com a tempestade cerebral sob controle, Lauren pôde enfim conhecer uma vida livre de convulsões. Tratamentos mais precisos e novas frentes de pesquisa estão mudando o perfil dos pacientes com epilepsia. Hoje, 90% deles conseguem se livrar das crises
Adriana Dias LopesManoel Marcos O tormento ficou para trás
"Minha mãe presenciou a maioria dos meus ataques. Ela dizia que eu permanecia estática, piscando sem parar, durante uns cinco minutos. As crises se repetiram ao longo de dezoito anos. Perdi muitos empregos por causa disso. Há oito anos, fui submetida a uma cirurgia e me tornei outra pessoa."Ethan Hill/Contourphotos/Getty Images Vida plena
"A epilepsia entrou em nosso cotidiano há 27 anos. Em uma manhã, quando fui pegar minha filha Lauren no berço, ela estava azul e com o corpo mole. Aos 7 meses, havia sofrido sua primeira crise epilética, durante a noite. Os ataques chegaram a
25 por dia. Eles só cessaram em 2000, com a chegada ao mercado de um medicamento. Hoje, apesar das sequelas cerebrais decorrentes das muitas crises pelas quais ela passou, Lauren é capaz de viver a vida plenamente."
Susan Axelrod, mulher do assessor de Barack Obama, David Axelrod, sobre Lauren (no centro), em artigo publicado na revista americana NewsweekManoel Marques Surpresa em sala de aula
"Eu estava na classe quando tive minha primeira crise. Tinha 7 anos. Mas só percebi que alguma coisa estava errada comigo quando acordei no hospital, com muita gente em volta de mim. Sentia uma grande confusão na minha cabeça. Passei muitas vezes por isso depois. Minha vida só voltou ao normal há um ano, quando fui operada."
Victoria Miranda Costa, de 10 anosMontagem sobre fotos Jefrey Johnson E SPL/Latinstock PERSONAGENS ILUSTRES QUE TINHAM EPILEPSIA
Fotos AKG/Latinstock Júlio César (100 a.C. — 44 a.C.)
No livro A Vida dos Doze Césares, o historiador romano Suetônio (69—141) conta que o tirano foi acometido pela epilepsia já adulto. Apesar do medo de sofrer uma crise, Julio César, segundo o biógrafo grego Plutarco, "nunca se serviu da fraqueza de seu corpo como um pretexto para delicadezas e comodismo em sua vida"Gustave Flaubert (1821-1880)
A doença do autor de Madame Bovary foi diagnosticada quando o escritor francês tinha 22 anos. No fim da vida, foi medicado com brometo de potássio, mas não se deu bem com o remédio. Reclamava de seus efeitos colaterais, sobretudo a lentidão de pensamento e os lapsos de memória: "Estou desperdiçando muito papel e tenho a sensação de que as sentenças surgem muito lentamente"Fiodor Dostoievski (1821-1881)
As primeiras crises do escritor russo surgiram quando ele tinha 25 anos e só terminaram com sua morte, aos 60. Dostoievski falava abertamente sobre a epilepsia: "Sim, eu tenho a doença das quedas, que não é causa de vergonha para ninguém". No livro O Idiota, de 1869, o príncipe Míchkin é epilético e os ataques são descritos como "um curto estado de êxtase, de felicidade absoluta logo seguida por uma profunda tristeza e melancolia".Em Os Irmãos Karamazov, de 1879,o personagem Smerdiákov é acometido por crises convulsivasMarc Ferrez/MS Machado de Assis (1839-1908)
O escritor brasileiro evitava pronunciar o nome de sua doença. Em carta ao escritor Mário de Alencar (1872-1925), Machado escreveu, em alusão às convulsões: "O muito trabalhar destes últimos dias tem-me trazido alguns fenômenos nervosos". O jornalista e poeta Carlos de Laet (1847-1927) presenciou uma das crises do escritor: "Machado dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Sabendo que de tempos em tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bonde das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até sua casa"